Sempre causou incômodo na doutrina o debate acerca dos vícios da investigação e se esses vícios têm ou não o condão de contaminar a fase processual. Há corrente no sentido de que eventual irregularidade no inquérito policial não gera reflexos na ação penal, sendo essa a corrente majoritária. Por outro lado, é minoritário o entendimento de que tais vícios contaminam a fase subsequente.
Essa provocação foi parar nos tribunais superiores. O comportamento desses tribunais foi no sentido de imunizar o processo para protegê-lo dos vícios da fase investigativa. Na ótica do Supremo Tribunal Federal, eventuais vícios formais concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subsequente processo penal condenatório. As nulidades processuais concernem, tão-somente , aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória [1]. O Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, afirmou que, como o procedimento investigativo é dispensável, se o procedimento estiver viciado, os vícios ficam restritos à investigação e não terão o condão de contaminar a fase processual [2], além de mencionar, em outra oportunidade, que eventual irregularidade ocorrida na fase do inquérito policial não contamina a ação penal dele decorrente, quando as provas serão renovadas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa [3].
Nesse sentido, "Tem prevalecido tanto nos tribunais como na doutrina que, sendo o inquérito dispensável, algo que não é essencial ao processo, não tem o condão de, uma vez viciado, contaminar a ação penal. Em outras palavras, os males ocorridos no inquérito não têm a força de macular a fase judicial. A irregularidade ocorrida durante o inquérito poderá gerar a invalidade ou ineficácia do ato inquinado, todavia, sem levar à nulidade processual. Ex.: havendo prisão em flagrante ilegal durante o inquérito, ela deve ser relaxada; todavia, este fato não leva à nulidade do futuro processo contra o suposto autor do fato" [4]. Assim, consagrou-se o entendimento de que os vícios do inquérito são endoprocedimentais, pois ficam restritos à investigação e não se transmutam para o processo.
A despeito disso, há exceções ao acima exposto, isto é, pode vir a ocorrer situações em que o vício na fase pré-processual contamina o processo. Nesse escopo, se eventualmente os vícios comprometem todo o inquérito e ele servir como fonte única para o ajuizamento da ação, todo o lastro indiciário que alicerça a ação se encontra comprometido. Nesse sentido, faltará à inicial acusatória oferecida a justa causa necessária e o juiz deve rejeitá-la com base no inciso III do artigo 395 do Código de Processo Penal, que assim dispõe: "Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: (...) III - faltar justa causa para o exercício da ação penal".
A justa causa deve ser entendida como o lastro probatório mínimo indispensável para a instauração de um processo penal, consubstanciando-se na prova da materialidade e indícios de autoria, funcionando como uma condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar. Dessa forma, se a ação penal é fundada unicamente em inquérito viciado, não havendo outros elementos de prova, deve ser, de pronto, rejeitada.
Se o juiz, por equívoco, receber a inicial acusatória na hipótese mencionada, dando início ao processo, o processo deflagrado é nulo, haja vista que surge diante de uma inicial acusatória oferecida com base em um inquérito completamente inútil em virtude de vícios que o acometeram na sua completude. Sendo assim, pode a defesa impetrar um Habeas Corpus para trancar o processo, nos termos do artigo 648, I do CPP.
Outros casos de clara influência da fase investigativa no processo seria, por exemplo, a realização de interceptações de conversações telefônicas sem amparo em decisões judiciais ou confissões obtidas em sede policial mediante tortura ou ameaças. Nessas situações, as provas são ilícitas, sendo inadmissíveis, conforme artigo 5º, LVI da Constituição Federal de 1988 e artigo 157 do CPP, e, caso o processo seja deflagrado a partir de uma dessas situações, as provas assim colhidas e as que delas derivarem devem ser desentranhadas dos autos, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. Ainda, caso a denúncia oferecida pelo Ministério Público se baseie estritamente em uma dessas provas, não havendo outros elementos, o processo evidentemente será atormentado por uma nulidade absoluta.
Apesar de o entendimento majoritário ser aquele atinente à ideia de que máculas ocorridas no inquérito não contaminam a ação penal, o tema merece uma reflexão mais profunda, haja vista que, na prática, sabe-se que o inquérito policial contribui consideravelmente para a formação da convicção do julgador, indo muito além de um "procedimento apenas informativo" — como insiste o discurso reducionista de muitos operadores do direito —, sobretudo pelo fato de que, posteriormente, no âmbito processual, confere-se valor probatório às informações produzidas pela Polícia Judiciária, quando da necessária atuação da defesa, consubstanciando-se o contraditório e a ampla defesa diferidos.
À vista disso, o moderno inquérito policial deve ser norteado por princípios e garantias constitucionais e atender à legalidade, não havendo fundamentação lógica que sustente ser a primeira fase da persecução penal alheia a tal. Se assim fosse, o magistrado utilizaria os autos da investigação em sua sentença como elemento de motivação (já que o artigo 155 do CPP autoriza), mas paralelamente o acusado não poderia alegar sua invalidade. Certamente seria algo ilógico. A não transmissibilidade de um vício do plano administrativo (inquérito) ao judicial (processo) significaria que haveria um nível de proteção de direitos fundamentais diferente e injustificado, até porque o regime jurídico administrativo também reconhece nulidades.
Nesse panorama, assim como a tipicidade processual significa que a atividade estatal no processo penal é regulada através de formas que devem ser obedecidas, existe uma tipicidade a ser respeitada no inquérito policial, seja em relação aos atos administrativos ordenados por autoridade própria do delegado (elementos informativos — ex.: interrogatório), seja quanto às medidas cautelares determinadas pela autoridade policial após chancela judicial (elementos probatórios — ex.: interceptação telefônica). Isso também significa que a teoria da ilicitude de provas é perfeitamente aplicável à fase policial da persecução penal (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP) [5].
Adepto do entendimento de que vícios do inquérito contaminam a ação penal e de que o regime de nulidades deve também ser pensado no âmbito da investigação, Aury Lopes Jr. menciona: "Também não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias)" [6], além de ignorar-se que, quase sempre, a denúncia é acompanhada de um inquérito. Diante disso, como poderia o inquérito policial não se sujeitar às nulidades que contaminam o processo penal?
Henrique Hoffmann ensina que apesar de os tribunais superiores não admitirem expressamente o regime de nulidades no inquérito policial, em inúmeros julgados acabam por invalidar os atos investigatórios praticados sem a observância das formalidades e garantias devidas. Cita como exemplos: a busca e apreensão domiciliar cumprida em endereço não especificado no mandado judicial [7]; a quebra de sigilo de dados amparada exclusivamente em denúncia anônima [8]; a interceptação telefônica executada por agentes não policiais civis ou federais [9]; e a interceptação telefônica iniciada por denúncia anônima desacompanhada de diligências preliminares [10]. Diante disso, verifica-se que os as Cortes Superiores fazem questão de dizer que o processo é imune à eventuais ilicitudes ocorridas no escopo da investigação, mas, em seus julgados, agem em contradição.
Ainda, é importante ressaltar a posição sustentada por Amilton Bueno de Carvalho, apontando que os vícios do inquérito comprometem o processo e que essa deveria ser a regra geral. Para ele, se o juiz lê a inicial acusatória e, a seguir, tem acesso ao inquérito viciado, este magistrado estará comprometido subjetivamente, isto é, os vícios do inquérito tendem a comprometer a imparcialidade do juiz, interferindo diretamente no âmbito processual [11].
Invocando as palavras do já citado Henrique Hoffmann, se de um lado não se pode admitir um amorfismo que abandone a máxima da persecução penal de que forma é garantia, de outro norte é preciso evitar que a investigação criminal seja campo fértil para chicanas jurídicas. Ou seja, deve-se entender que as ideias trazidas não devem conduzir o inquérito a um formalismo estéril, sob pena de desvirtuamento da finalidade da investigação criminal.
Diante de todo o exposto, verifica-se que se faz necessário um olhar mais cuidadoso da doutrina e da jurisprudência para a situação: deve-se abandonar os discursos reducionistas e retrógrados de que não existe nulidade no inquérito. É preciso que se compreenda, definitivamente, que em um processo penal democrático e constitucional, o inquérito policial, enquanto uma espécie de investigação preliminar, não deve fugir à regra. A investigação e a tentativa de reconstrução dos fatos não pode ser feita a qualquer custo, senão pelo respeito às garantias.
[1] STF. Ag.Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo 868.516/DF, rel. min Roberto Barroso. Julgado em 26/5/2015.
[2] STJ. 6ª Turma, RHC 50.011/PE, rel. min. Sebastião Reis Júnior. Julgado em 25/11/2014.
[3] STJ. 5ª Turma. HC nº 393.172/RS. Rel. min. Félix Fischer. Julgado em 6/12/2017.
[4] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal — 12ª ed. rev. e atual - Salvador: Ed. JusPodivm. 2017, p.161-162.
[5] HOFFMANN, Henrique. Inquérito policial se sujeita a nulidades que contaminam o processo penal. Revista Consultor Jurídico, jan. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jan-24/academia-policia-inquerito-policial-sujeita-nulidades-processo-penal. Acesso em: 28 ago. 2022.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Nulidades e ilicitudes do Inquérito não contaminam o Processo Penal? Revista Consultor Jurídico, dez. 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-19/limite-penal-nulidades-ilicitudes-inquerito-nao-contaminam-processo-penal. Acesso em: 28 ago. 2022.
[7] STF. HC 106566. Rel. min. Gilmar Mendes. Julgado em 16/12/2014.
[8] STJ. HC 137.349. Rel. min. Maria Thereza de Assis Moura. Julgado em 5/4/2011.
[9] STJ. HC 149.250. Rel. min. Adilson Vieira Macabu. Julgado em 7/6/2011.
[10] STF. HC 108147. Rel. min. Cármen Lúcia, Julgado em 11/12/2012.
[11] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo. Ed. Síntese, 1998.
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