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Aprendendo a escrever
Olavo de Carvalho O Globo, 3 de fevereiro de 2001
É lendo que se aprende a escrever – eis o tipo mesmo da fórmula sintética que traz dentro muitas verdades, mas que de tão repetida acaba valendo por si mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles conteúdos valiosos que, para ser apreendidos, requereriam que a fórmula fosse antes negada e relativizada dialeticamente do que aceita sem mais nem menos.
Ler, sim, mas ler o quê? E basta ler ou é preciso fazer algo mais com o que se lê? Quando a fórmula passa a substituir estas duas perguntas em vez de suscitá-las, ela já não vale mais nada.
A seleção das leituras supõe muitas leituras, e não haveria saída deste círculo vicioso sem a distinção de dois tipos: as leituras de mera inspeção conduzem à escolha de um certo número de títulos para leitura atenta e aprofundada. É esta que ensina a escrever, mas não se chega a esta sem aquela. Aquela, por sua vez, supõe a busca e a consulta. Não há, pois, leitura séria sem o domínio das cronologias, bibliografias, enciclopédias, resenhas históricas gerais. O sujeito que nunca tenha lido um livro até o fim, mas que de tanto vasculhar índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler nos anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha mergulhado na “Divina comédia” ou na “Crítica da razão pura” sem saber de onde saíram nem por que as está lendo.
Mas há também aquilo que, se não me engano, foi Borges quem disse: “Para compreender um único livro, é preciso ter lido muitos livros.” A arte de ler é uma operação simultânea em dois planos, como num retrato onde o pintor tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes da frente e as linhas do fundo. A diferença entre o leitor culto e o inculto é que este toma como plano de fundo a língua corrente da mídia e das conversas vulgares, um quadro de referência unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e profundo, de mais pessoal e significativo num escritor. O outro tem mais pontos de comparação, porque, conhecendo a tradição da arte da escrita, fala a língua dos escritores, que não é nunca “a língua de todo mundo”, por mais que até mesmo alguns bons escritores, equivocados quanto a si próprios, pensem que é.
Não há propriamente uma “língua de todo mundo”. Há as línguas das regiões, dos grupos, das famílias, e há as codificações gerais que as formalizam sinteticamente. Uma dessas codificações é a linguagem da mídia. Ela procede mediante redução estatística e estabelecimento de giros padronizados que, pela repetição, adquirem funcionalidade automática.
Outra, oposta, é a da arte literária. Esta vai pelo aproveitamento das expressões mais ricas e significativas, capazes de exprimir o que dificilmente se poderia exprimir sem elas.
A linguagem da mídia ou da praça pública repete, da maneira mais rápida e funcional, o que todo mundo já sabe. A língua dos escritores torna dizível algo que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela delimita um horizonte coletivo de percepção dentro do qual todos, por perceberem simultaneamente as mesmas coisas do mesmo modo e sem o menor esforço de atenção, acreditam que percebem tudo. Esta abre, para os indivíduos atentos, o conhecimento de coisas que foram percebidas, antes deles, só por quem prestou muita atenção. Ela estabelece também uma comunidade de percepção, mas que não é a da praça pública: é a dos homens atentos de todas as épocas e lugares – a comunidade daqueles que Schiller denominava “filhos de Júpiter”. Esta comunidade não se reúne fisicamente como as massas num estádio, nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e dos eleitores. Seus membros não se comunicam senão pelos reflexos enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitárias que brilham na vastidão escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de noite, vistas da janela de um avião.
Uma enfim, é a língua das falsas obviedades, outra a das “percepções pessoais autênticas” de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos, entre os quais os nossos professores de literatura, asseguram que não há diferença. Mas o único método científico em que se apóiam para fazer essa afirmação é o argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos artifícios sofísticos, que consiste em deduzir, de seu próprio desconhecimento de alguma coisa, a inexistência objetiva da coisa. A língua literária existe, sim, pelo simples fato de que os grandes escritores se lêem uns aos outros, aprendem uns com os outros e têm, como qualquer outra comunidade de ofício, suas tradições de aprendizado, suas palavras-de-passe e seus códigos de iniciação. Tentar negar esse fato histórico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras de Saussure é negar a existência das partículas atômicas pela impossibilidade de conhecer ao mesmo tempo sua velocidade e sua posição.
A seleção das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de apreender, na variedade do que se lê, as regras não escritas desse código universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner, Camilo a Sófocles e Eurípides, Elliot a Confúcio e Jalal-Ed-Din Rûmi.
Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura iniciática: é a conquista da palavra perdida que dá acesso às chaves de um reino oculto. Fora disso, é rotina profissional, pedantismo ou divertimento pueril.
Mas a aquisição do código supõe, além da leitura, a absorção ativa. É preciso que você, além de ouvir, pratique a língua do escritor que está lendo. Praticar, em português antigo, significa também conversar. Se você está lendo Dante, busque escrever como Dante. Traduza trechos dele, imite o tom, as alusões simbólicas, a maneira, a visão do mundo. A imitação é a única maneira de assimilar profundamente. Se é impossível você aprender inglês ou espanhol só de ouvir, sem nunca tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos escritores?
O fetichismo atual da “originalidade” e da “criatividade” inibe a prática da imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir criativamente banalidades padronizadas.
Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da imitação. Imitar não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se eleva à altura de poder imitar os grandes, segundo porque, imitando um, depois outro e outro e outro mais, você não ficará parecido com nenhum deles, mas, compondo com o que aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de dizer, acabará no fim das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e enobrecido pelas armas que adquiriu.
É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler que supõe a busca seletiva da unidade por trás da variedade, o aprendizado pela imitação ativa e a constituição do repertório pessoal em permanente acréscimo e desenvolvimento. Muitos que hoje posam de escritores não apenas jamais passaram por esse aprendizado como nem sequer imaginam que ele exista.
Mas, fora dele, tudo é barbárie e incultura industrializada.
A arte de escrever, Lição 1: Esqueça o Manual de Redação
Olavo de Carvalho
22 de novembro de 1998
Como alguns leitores têm-me pedido conselhos sobre a arte de escrever, decidi tirar da gaveta estas observações que redigi seis anos atrás para um curso que tinha o título, precisamente, de Ler e Escrever, e às quais nada tenho a acrescentar:
I.
A circular da redação de Veja, reproduzida no número de julho de 1992 do Unidade, jornal do Sindicato do jornalistas de São Paulo, constitui uma amostra do estado de inconsciência quase hipnótica em que vão mergulhando a cada dia, impelidos pela mecânica do ofício, os nossos melhores profissionais de imprensa.
O documento, uma lista de 27 regrinhas baixadas pela chefia com o propósito de “combater vícios de linguagem”, é apresentado pelo jornal do Sindicato como um sinal de saúde: uma prova de que Veja, no auge da fama, não perdeu a cabeça e ainda é capaz de autocrítica.
Encarado no seu contexto mais próximo, como sinal de recuo sensato ante a tentação da embriaguez, ele pode ser de fato coisa boa. Mas, no contexto maior da evolução do jornalismo brasileiro ao longo das últimas décadas, as 27 regrinhas mudam de figura: tornam-se o sintoma alarmante da consolidação de um conjunto de cacoetes mentais como Lex maxima do bom jornalismo. Cacoetes, porque não chegam sequer a ser preconceitos. Preconceitos são crenças que, furtando-se ao exame consciente, dirigem a conduta, modelam a prática. Já estas regrinhas não se destinam seriamente a entrar em prática por serem de aplicação impossível, como demostrarei adiante, e sim apenas a ser alardeadas, oralmente e por escrito, como emblemas convencionais de boa conduta jornalística.
Não somente jornalística, na verdade. Consagradas pela repetição, máximas desse tipo acabam servir de critério para o julgamento de qualquer escrito, mesmo fora do jornalismo. Já vi muito guru de redação torcer o nariz ante Eça, Camilo, Euclides ou o Padre Vieira, porque usavam palavras vetadas no Manual interno: é como desprezar a Catedral de Chartres porque não cabe nas especificações do BNH.
Que baixem regras, vá lá. Mas deveriam ter ao menos o bom senso de admitir que especificações ditadas pela mera conveniência tecno-industrial não têm nenhum valor de critério estético, não constituem, em nenhum sentido, as regras de estilo, a não ser que se entenda por estilo a uniformidade coletiva, isto é, a falta de estilo. Servem para medir a adequação de um texto ao perfil mercadológico de um determinado produto editorial, e não para julgar sua qualidade literária, sua expressividade, sua exatidão, sua coerência, elegância e veracidade. Não servem nem mesmo para aquilatar do seu valor jornalístico, se tomado em sentido geral e fora dos cânones daquela publicação em particular. Como julgar por elas, digamos, o jornalismo de um Mauriac, de um Ortega y Gasset, de um Alain, ou, mais próximo de nós, de um Monteiro Lobato? Estilo é a adequação da linguagem de um sujeito às suas próprias necessidades expressivas, ou às exigências do assunto, e não a qualquer molde externo prévio, seja ele folgado ou estreito. É só metaforicamente, e forçando a barra, que a palavra “estilo” pode designar o sistema uniforme de trejeitos verbais imitado por todo um corpo de redatores; mais propriamente, esse sistema seria dito uma padronização da falta de estilo.
A padronização pode ser um mal inevitável. Mas para que exagerar, vendo nela um bem absoluto, o modelo mesmo de boa escrita? Que um chefete, cioso da carreira, chegue a introjetar tão profundamente o perfil do produto que lhe encomendam, ao ponto de mesmo nas horas de folga não ser capaz de formar frases fora das especificações dele sem sentir culpa e remorso, é coisa que compreendo; que ele deseje em seguida moldar a cabeça de seus subordinados segundo essas mesmas especificações, em prol da disciplina e da eficiência, é coisa que não só compreendo como também admito e até louvo. Mas que ele, enfim, num acesso de autoglorificação, se imagine transfigurado num mestre de português, literatura ou “estilo”, é demais. Nenhum tecelão da R. José Paulino, ao ajustar suas máquinas para que as blusas saiam na medida, imagina estar fixando os padrões para o julgamento da elegância mundial.
Executivos de carreira metidos a teóricos de literatura são o flagelo das redações. Em nome de um perfil de produto, contingência comercial elevada a regra áurea do juízo estético, eles impõem padrões de gosto, lascam a caneta à vontade, divertem-se sadicamente brincando de Graciliano Ramos ante uma platéia de foquinhas assustados, os quais, nunca tendo lido o Graciliano de verdade, acreditam mesmo que ele seria capaz de escrever uma coisa mimosa como esta do manual de Veja: “Frase curta é bom e eu gosto. Com uma palavra só. Assim. Tente”. Sim, tente: faça uma frescura diferente. Graciliano tinha o senso da continuidade melódica, jamais confundiria frases curtas com solavanquinhos histéricos. Nem proferiria máximas desta profundidade abissal: “Ninguém escreve direito se não ler”, sentença que seria digna do Conselheiro Acácio, se não fosse, aliás, da autoria dele mesmo. Tomando normas de produção como critérios de gosto literário, essa gente está transformando o jornalismo naquilo que seus detratores desejariam que fosse: a espécie mais típica de subliteratura.
Normas de redação, se estatuídas, devem ser apresentadas, com toda a modéstia, como convenções práticas, neutras, nem melhores nem piores que quaisquer outras, e nunca como padrões de “bom gosto”, “elegância”, etc., que são valores de estética literária muito mais sutis do que aquilo que esse gênero de manuais está em condições de delimitar. Os manuais deveriam ater-se, o quanto possível, a aspectos exteriores e “materiais” da escrita, como ortografia, abreviaturas, padronização de nomes, evitando pontificar sobre estilo ou, pelo menos, opinando nisto com extremo cuidado e tão somente em nome da conveniência utilitária, não da estética. Nos casos em que fosse absolutamente indispensável opinar sobre estilo, o melhor seria permanecer num nível genérico e abstrato, sem descer a particularidades duvidosas, como a de vetar, individualizadamente, tais ou quais palavras ou expressões. Mesmo porque o mais elementar conhecimento da estilística mostra que não há palavras ou expressões que, em si e por si, sejam inelegantes; tudo depende do contexto, do tom, da engenhosidade maior ou menor com que sejam utilizadas. No devido lugar, até o execrando “outrossim” pode cair bem, apesar da famosa tirada de Graciliano Ramos, ao revisar um artigo da revista Cultura Política: “Outrossim é a p. q. p.”.
A amoldagem da cabeça humana a um conjunto de normas práticas, não contrabalançada pela consciência do caráter meramente convencional dessas normas, pode produzir nela uma verdadeira mutilação intelectual, tornando-a, a longo prazo, incapaz de compreender e apreciar o que quer que esteja fora do padrão costumeiro. A quase absoluta incapacidade para a leitura de textos mais abstratos, de filosofia e ciência, por exemplo, que observo em tantos de meus colegas, não resulta de nenhuma deficiência congênita, mas do costume adquirido de lidar com uma só das dimensões da linguagem, deixando atrofiar a sensibilidade para todas as demais: o hábito da escrita plana e rasa produz a leitura plana e rasa.
Um dos sinais mais patentes de uma inteligência alerta é a percepção de contradições. Aristóteles já observava que o senso lógico e o senso do ilógico são uma só e mesma coisa. Quando leio alguma coisa repleta de contradições ostensivas e sei que o autor não é imbecil nem está sofismando de propósito, só posso concluir que ao escrevê-la estava distraído, sonso ou bêbado. O documento de Veja certamente foi produzido num desses estados. Prometi e vou mostrar que é um amontoado de exigências impossíveis, mutuamente contraditórias. Antes, porém, desejo fazer a seguinte constatação psicológica: Como não é plausível que um chefe de redação caia em sono letárgico justamente na hora de emitir ordens importantes, o autor do documento (que aliás ignoro quem seja) mais provavelmente vive nesse estado em caráter permanente. Como, de outro lado, também não é verossímil que Veja tenha escolhido para chefe de redação um sujeito anormalmente mais distraído que os outros, suponho que seus colegas também não repararam nas contradições que vou assinalar (como não atinou nelas o redator de Unidade que transcreveu e elogiou o documento). Se é assim, então a circular de Veja é sinal de algum entorpecimento epidêmico da inteligência, que acomete a nossa categoria profissional.
Os exemplos que dou a seguir mostram o quanto o apego à norma rotineira, sedimentado por uma prática intensa e contínua, pode tornar um bom jornalista insensível às piores contradições e transformá-lo num confiante proclamador de incongruências.
II.
A circular de Veja é um conjunto de regras, mas é também ela mesma um texto. Essas regras, aplicadas à redação do mesmo texto, resultariam em suprimir pelo menos um terço dele. Vejam o primeiro parágrafo (regra 1):
Cortar todas as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a pior praga de uma revista semanal de notícias.
Aplicada a mesma regra à redação da mesma frase, esta ficaria assim:
Cortar as palavras supérfluas. Encher lingüiça é a praga de uma revista de notícias.
Em obediência à regra, cortei as seguintes palavras supérfluas:
1o “todas”: a expressão “as palavras supérfluas” é genérica; e como um gênero abrange necessariamente a totalidade das suas espécies, o pronome é redundante;
2o “a pior”: porque praga é necessariamente coisa ruim.
3o “semanal”: porque não se entende que a proibição de encher lingüiça deva ser revogada nas revistas mensais ou nos jornais diários.
Três palavras em duas linhas já não são lingüiça que basta? No entanto a frase não está mal escrita. A regra é que é excessiva. Já estava, aliás, infringida antes mesmo de ser escrita; porque na introdução do documento se diz:
Por mais que fotógrafos, ilustradores, paginadores e artistas gráficos reclamem…
Pois então: ilustrador não é artista gráfico? Corremos o risco de logo ver o nosso adversário de lingüiças distribuindo avisos “a todos os endocrinologistas, pediatras, geriatras e médicos”, “a todos os homens, mulheres e seres humanos”, etc.
Na mesma introdução, o indigitado elemento verbera os vícios de linguagem que
…estão conspurcando as nossas páginas com a mesma voracidade das heresias medievais…
Ô xente! Já se viu alguém “conspurcar com voracidade”? Com voracidade come-se, devora-se, engole-se, ingere-se, agarra-se. Conspurcar é fazer mancha, é deixar cair sujeira em cima, indica ou subentende um movimento para fora, do sujeito paraum objeto, exatamente o inverso do movimento para dentro designado pela ingestão voraz.
A imagem torna-se ainda mais chocante quando vemos que, na regra 14, seu autor, com ar de primeiro-da-classe, emite (deveria eu dizer “expele vorazmente”?) um preceito para a redação de imagens: “Ao optar por uma linha de imagens, mantenha-se nela”. Sim, por exemplo: comece com uma imagem gastronômica e complete-a com alguma coisa bem proctológica.
O mais extraordinário é que o supradito ainda menciona, como exemplos de imagens bem feitas, aquelas que ele mesmo usa na introdução. Poderia citar-se a si mesmo, aliás, como exemplo de modéstia, caso já não o tivesse feito ao admitir que não é Moisés e que suas regras não são as Tábuas da Lei, advertência que, se não lhe parecesse muito necessária, seria suprimida (de acordo com a regra 1).
Mas a infidelidade do autor a suas próprias regras não as invalida por completo, logicamente falando; só o desmoraliza. Para invalidá-las de vez, seria preciso uma contradição interna: entre regra e regra.
Eis um exemplo. A regra 5 adverte: “Cuidado com os advérbios”, e recomenda suprimi-los, concluindo: “Por si só, o adjetivo qualifica”. Lá adiante, porém, na regra 26, são recomendados como gurus, para o aprendizado da boa escrita, Machado de Assis e… Euclides da Cunha! Será que o chefe nunca leu Euclides? Pois este era pródigo em advérbios; a profusão deles foi um dos defeitos que os críticos de Os Sertõesassinalaram com mais freqüência, obrigando os admiradores do autor a mobilizar-se em sua defesa (cf., por exemplo, Modesto de Abreu, Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha, Rio Civilização Brasileira, 1963, esp. Pp. 148-152). Como farão os pobres aprendizes para mirar-se, ao mesmo tempo, no exemplo de Euclides e nas palavras do chefe? E o exemplo fornecido em testemunho da unanimidade dos advérbios é, no mínimo, perjuro:
Cuidado com os advérbios. “Fulano é um animal ferrado nas quatro patas”, diz irritadamenteSicrano de Tal. A citação já mostra que Sicrano estava uma arara. Se não mostrasse, não seria um advérbio que melhoraria a situação.
Parece que o elemento não enxerga a menor diferença entre dizer uma coisa irritadamente, galhofeiramente, ironicamente, desdenhosamente, etc.
Uma das diferenças principais entre o oral e o escrito é que, neste último, as citações geralmente não dizem por si sós o tom, a ênfase, o gesto, a expressão facial com que as frases foram proferidas; e os advérbios existem justamente para, nesses casos, “melhorar a situação”, evitando descrições fastidiosas (a não ser que Veja tenha se tornado multimídia, cada declaração vindo acompanhada do vídeo respectivo).
Além das contradições, há também informações erradas. A regra 6 estabelece:
Salvo engano, o português é uma das poucas línguas que não desdobra o tempo futuro. Aproveitem. “Collor mudará o ministério” é muito mais preciso e elegante do que “Collor vai mudar o ministério”.
Aqui o chefe foi salvo pela ressalva. Pois trata-se, precisamente, de um engano. Celso Cunha, à p. 268 da sua Gramática do Português Contemporâneo (Belo Horizonte, Bernardo Álvares Editor, 1970), explica que o verbo auxiliar ir se emprega “com o infinitivo do verbo principal, para exprimir o firme propósito de executar a ação, ou a certeza de que ela será realizada num futuro próximo”; ao passo que o futuro simples admite, numa de suas acepções, a expressão da mera probabilidade. Caso, portanto, a mudança de ministério seja uma certeza firme, “Collor vai mudar o ministério” será muito mais preciso do que “Collor mudará o ministério”. É um matiz lógico e temporal da maior importância. Também em matéria de palavras, a economia pode ser, às vezes, a base da porcaria.
O exemplo dado, aliás, entra também em contradição com a regra 5, que manda não abusar do “muito”. Chamar de “muito mais preciso” algo que não é nem um pouco mais preciso, é ou não é abusar do “muito”? Mas a regra mesma de preferir o futuro simples contradiz a regra 20, que manda preferir, onde possível, a linguagem coloquial. Quem é que, no coloquial, diz “farei” em vez de “vou fazer”?
Quando à expressão “salvo engano”, o autor a emprega ironicamente, pois crê não estar enganado e aliás veta, na regra 7, o uso dessa mesma expressão. Só que, como de fato ele estava enganado, a ironia se voltou contra o ironista. O humor involuntário é o resultado quase inevitável de escrever sem pensar.
Se estas regras tivessem sido calculadas maquiavelicamente com o propósito de desnortear foquinhas, para humilhá-los e torná-los dóceis, nada poderia detê-las. Vejam a regra 13:
Quanto mais concreta a imagem, melhor. Não misture coisas reais com abstrações. “Os tucanos alçaram vôo rumo à modernidade” mistura uma ave com um conceito.
A regra é clara. Mas como aplicá-la? Escrevendo, por exemplo, como o chefe em sua introdução, que “algumas fogueiras se fazem necessárias para manter a pureza estilística da revista”? Pureza estilística não é conceito abstrato? Fogo não arde materialmente? Se tucanos não podem alçar vôo senão rumo a concretíssimos poleiros, as chamas também não podem consumir solecismos, apenas o papel que os exibe. Se, queimando esta malfadada circular de Veja, eu pudesse suprimir o ilogismo de seu conteúdo, sem dúvida teria feito isso; mas, cioso de não misturar o abstrato e o concreto, abstive-me de recorrer ao ígneo expediente, e pus-me a redigir estas longas e tediosas observações.
Se elas parecem hostis, insolentes ou malévolas, digo que desconheço quem seja o redator-chefe de Veja e que nothing personal, just business. Que a bordoada atinja o erro, não a pessoa de seu autor. Este deve ser um profissional excelente, pelo menos tão bom quanto seus colegas, e por isto mesmo o erro é significativo e merecedor de correção pública, o que não se daria no caso de mera inépcia pessoal.
Também me ocorre um episódio. Ciro Franklin de Andrade, que foi um dos meus primeiros mestres no jornalismo, tinha um hábito exemplar. Quando um foquinha escrevia despropósitos, ele o chamava a um canto e lhe dava, discretamente, paternais explicações. Mas, se a coisa era obra de um chefe, de um profissional experiente, de um figurão do jornalismo, ele simplesmente recortava o trecho e o grudava no mural, para ensinança de aprendizes e castigo de instrutores. Cruel? Inesquecível.
Obrigado pela visita, volte sempre.
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