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segunda-feira, 14 de julho de 2008
Morador de rua passa em concurso no Banco do Brasil.
Hoje, Ubirajara Gomes da Silva deve começar a fazer os testes exigidos para ser contratado como escriturário pelo Banco do Brasil. São testes de saúde e uma entrevista que funciona como teste psicológico. Nele, Ubirajara terá que contar a sua vida. Até a madrugada de ontem, ele não sabia que história contaria. Tinha medo de contar a verdade. Uma verdade que ele mesmo considera inacreditável.
Há um ano, Ubirajara foi aprovado no concurso do Banco do Brasil. Ficou na 136ª colocação no Recife. Eram mais de 19 mil candidatos. Na última semana, finalmente, foi convocado para assumir o cargo. Porém, Ubirajara sequer tinha um documento. Nem a certidão de nascimento. Este homem praticamente não existia para a sociedade. Ele mesmo se sentia “invisível”, talvez até “irreal”. Isso explica porque durante a entrevista para esta reportagem, Ubiarajara perguntou várias vezes que impressão estava causando. “O que será que as pessoas vão pensar de mim?”, questinava, com a insegurança de quem está se sentindo real pela primeira vez na vida.
Há 12 anos, Ubirajara da Silva mora pelas ruas do Recife.
A mentira
Ubirajara nunca conheceu seus pais. Foi abandonado dias depois do seu nascimento e cresceu em um orfanato. Lá, dormia com dezenas de outras crianças com histórias parecidas com a sua. Com sonhos iguais aos seus. Esperavam pelo milagre da adoção, talvez pelo arrependimento dos pais; por dias melhores. Até crescerem. Até descobrirem que esses tais dias melhores não viriam. Aos 18 anos era hora de deixar o orfanato e tentar a vida nas ruas. Na rua por onde todos passam, Ubirajara ficou. Uma história que se repete pelas esquinas, pelos bancos de praça, pelos viadutos de qualquer grande cidade. Uma história que - dentro da realidade social do país - poderia ser até considerada comum. Poderia,se não fosse a história de Ubirajara. Poderia, se fosse verdade.
A esquina
00h10. O jogo da seleção brasileira acabara havia poucos minutos e o fluxo de carros era um pouco maior do que o habitual paraum início de madrugada em uma das esquinas mais nobres do Recife, entre as rua das Pernambucanas e da Amizade, no bairro das Graças. Naquele horário, o único movimento era o dos carros. Dificilmente passaria alguém caminhando pela calçada. E era justamente por isso que Ubirajara estava ali. Naquela esquina, ele passaria a noite. Dormiria. Era o seu endereço. Sua casa. Há 12 anos, ele vive na rua. Era uma criança de 15 anos, perdida. Hoje é um homem de 27 que, finalmente, parece ter encontrado os tais “dias melhores”.
Sentando no pequeno batente de uma farmácia que fica fechada entre as 22h e às 6h30, ele começa a contar a sua vida. “Minha história é inacreditável”, adianta. Com razão. É tão inacreditável que ele costuma mentir sobre sua origem. Prefere contar para as pessoas a versão que abriu essa reportagem. O drama comum do menino abandonado que cresceu em um orfanato. “Conto isso porque sei que é uma versão mais fácil de ser aceita”, confessa Ubiaraja.
Por quase duas horas, ele continuaria contando a sua verdadeira história. Uma espécie de conto de fadas moderno. Aparentemente uma das muitas histórias sobre a miséria de um país e as suas conseqüências trágicas na vida de uma pessoa, na desestruturação de famílias, nas distorções das formas de relacionamento.
O pedaço de papel
Um rato passou a alguns metros e logo desapareceu. Dois meninos vieram pela calçada com garrafas de cola em uma mão e um pedaço de madeira afiado em outra. Sumiram no escuro. A chuva começou a cair. Ubirajara encolheu as pernas e protegeu sua pasta entupida de papéis e suas duas sacolas de plástico. Numa delas, um pouco de comida. Na outra, alguns itens de higiene pessoal. Ele não tem sequer uma escova de dentes. Da pasta, tira um pedaço de papel com marcas de dobras. No alto da página branca, a marca do Banco do Brasil. Um pouco abaixo, o nome completo de Ubirajara e alguns números. Um deles era 136. A quele morador de rua encolhido no batente de uma farmácia havia sido o 136º colocado no concurso do Banco do Brasil.
A família
“Quem diria que aquele retardado seria funcionário do Banco do Brasil?”, pergunta Ubirajara, em tom de orgulho. Realmente, ninguém jamais diria que um jovem que viveu 12 anos na rua conseguisse ser aprovado em um concurso público tão disputado. Concursos que se tornaram uma espécie de projeto de futuro para parte significativa da sociedade - alimentando uma verdadeira indústria de cursos preparatórios. Mas o “quem diria” de Ubirajara, na verdade, não era uma pergunta. Era uma resposta para alguns dos seus familiares. Pessoas que sumiram da sua vida desde o dia em que ele resolveu sair de casa. “Essa é a parte da minha história que eu queria esquecer”.
00h40. Ubirajara está chorando. Pela primeira e única vez naquela madrugada. “O que eu realmente queria era ter tido minha mãe perto”, diz enquanto passa a mão nos olhos vermelhos. O desabafo aconteceu enquanto ele contava a sua infância. Filho de uma garçonete com um PM exonerado, foi deixado de lado pelos dois. Mas não totalmente abandonado - como na história queescolheu contar. Na verdade, o menino foi criado na casa da sua avó materna, junto com mais quatro irmãos, em Paulista. Tinha uma condição de vida precária, mas digna. Pobre, não miserável. “Quando as pessoas sabem que eu tenho pai e mãe ficam revoltadas comigo por eu estar na rua. Me culpam. Ficam me julgando como se eu fosse um maluco ou um rebelde. Como se eu tivesse escolhido isso. Mas não é uma escolha. Você acha que eu não queria estar em uma cama agora?”
As primeiras noites na rua
Ubirajara relata constantes agressões físicas e psicológicas que sofria na casa da avó. De lá veio o termo “retardado”, que ele não esquece. Aos 15 anos, costumava fugir de casa. Aos poucos, as fugas eram cada vez mais longas. Cada vez mais sem rumo. Longe de casa, sem dinheiro, começou a dormir pelos cantos. Primeiro, na Avenida Guararapes. Depois, na rampa do Hospital da Restauração. Ele resume essas noites em dois sentimentos: “medo e solidão”. Sentimentos que parecem capazes de resumir as piores noites da vida de qualquer pessoa. No caso dele, não eram as piores. Eram todas.
A virada
Ubirajara estava na 6ª série quando saiu de casa. E, nos primeiros anos sem teto, o seu único objetivo era sobreviver. E não há exagero ou qualquer tom heróico nessa afirmação. A vida na rua tem suas regras. Suas leis. O cotidiano das calçadas não permite escolhas. Não permite pudores. Nem princípios. Não podemos esquecer que esta é, antes de mais nada, a história de um morador de rua. E, nesse ponto, por muito tempo, Ubirajara foi só mais um.
Um dos que pediam esmola, um dos que não cortavam o cabelo, dos que vestiam trapos, dos que sentiam fome, dos que precisavam fazer qualquer coisa para comer (neste caso, não se faz necessário detalhar o “qualquer coisa”). Violentado de todas as formas. Noites de culpa. Noites de dor.
Em 2001, o garoto decidiu voltar a estudar. Foi quando iniciou a reaproximação com os livros, as revistas e os jornais: “Tudo que parava na minha mão, eu sempre lia. Acho que esse foi o meu grande diferencial inclusive nos concursos”. Estudando nas ruas, Ubirajara passou nas duas provas de supletivo e recebeu o diploma do ensino médio. Ainda assim, continuou freqüentando os colégios. Continua, aliás. Por um só motivo: as merendas.
Preguiçoso?
A reaproximação com os pais ou com a avó nunca aconteceu. Ubirajara manteve contato apenas com os irmãos. Todos tiveram uma vida mais digna. Casaram, formaram família, conseguiram emprego. Em mais de uma década de rua, Ubirajara se acostumou a ser chamado de “preguiçoso” e de “teimoso”. “Minha teimosia é que fez com que eu não desistisse dos meus sonhos. Por mais que todo mundo me criticasse, eu continuei fazendo aquilo que eu acreditava”, resume.
No ponto de táxi do Mercado da Madalena, onde Ubirajara “morou” por um bom tempo, os taxistas o definem como um “rapaz honesto, que vivia estudando, não gostava de trabalhar e tinha um jeito de abestalhado”. Os dias de Ubirajara se resumiam a estudar. Às vezes, nas praças. Às vezes, em bibliotecas públicas. “Não tinha todos os livros, aí ia para a biblioteca, fazia rascunhos, copiava tudo e levava comigo esses papéis para todos os cantos”, conta. Ainda leva, na verdade. A tal pasta dele é repleta de anotações. Todos os tipos. Desde a sua mínima contabilidade (vive com algo entre R$ 2 R$ 5 por dia) até um projeto completo para abrir um negócio próprio. “Quero ser nanoempresário. Menor do que micro”, diverte-se.
O futuro
A prova do concurso para escriturário do Banco do Brasil tinha 150 questões. Ubirajara acertou 116. Foi o quinto concurso que fez. Havia passado em outros quatro, mas nunca havia sido chamado. No início da semana passada, soube da convocação pela internet - onde vive quase que uma “vida paralela”. Tem perfil no Ortkut e participa de dezenas de fóruns “habitados” pelos “concurseiros”. É conhecido nesse meio pelo apelido de “Maior Abandonado”. Usa uma foto de Charles Chaplin. “Sou viciado. Procuro sempre lugares que tenham computadores públicos. Na internet, as diferenças diminuem, não me sinto distante de ninguém”, conta, fazendouma analogia com a sua “invisibilidade” como morador de rua. “Estou aqui nessa esquina todas as noites? Ninguém vem aqui falar comigo. Você veio para me entrevistar. Mas você já tinha sequer me visto aqui?”, questiona. A resposta, constrangida, foi “não”.
E foi na internet, em um fórum de discussão para “concurseiros”, que Ubirajara resolveu expor um drama que vinha lhe consumindo em silêncio desde o dia que soube da convocação. Tinha uma dívida de quase R$ 8 mil por empréstimos que fez há anos. E a regra em órgãos públicos é clara: para a contratação ser efetivada, o candidato não pode ter o nome no SPC ou Serasa. Bastou o relato triste para estimular uma verdadeira corrente de ajuda. Uma mobilização virtual que não demoraria para se tornar real. Um amigo que fez na internet se dispôs a pagar parte da sua dívida. Algo em torno de R$ 3 mil. O restante, o próprio Ubirajara pagará em 60 meses com o seu salário (R$ 954, mas que somando outros benefícios pode chegar quase a R$2.000). Dinheiro suficiente para revolucionar sua vida. Para que os seus sonhos, pela primeira vez, possam ser chamados de “planos”.
“Minha vida é como a música de Cazuza: Dias sim, dias não… Vou sobrevivendo sem um arranhão. Da caridade de quem me detesta”.
fonte: Da equipe do Diario / Fred Figueiroa
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