| 11 Setembro 2012
Artigos - Cultura
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A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido, uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável.
Na universidade brasileira – e refiro-me somente às mais prestigiadas –, a lógica e a filologia foram consagradas como os refúgios convencionais da impotência filosófica. Ambas constituem, é claro, domínios autônomos, com seus objetos e métodos respectivos, que às vezes podem ser frequentados indefinidamente sem nenhum suporte filosófico especial, mas que, como todas as demais ciências, podem suscitar problemas de ordem filosófica para os quais não encontram solução dentro dos seus critérios e terrenos próprios.
Nenhuma das duas é a filosofia, embora ambas prestem a ela os serviços de ciências auxiliares frequentemente indispensáveis.
A lógica está para a filosofia como a gramática está para a literatura. Idealmente, espera-se que tudo o que um escritor escreve seja compatível com as regras consagradas da gramática, seja por segui-las em sentido estrito, seja por transcendê-las criativamente, seja por transgredi-las em detalhes menores amplamente compensados – ou até justificados -- pelo valor do conjunto. O que não se espera nunca é que um escritor sacrifique a vivacidade direta das suas intuições estéticas às exigências de algum gramático ranheta. Do mesmo modo, espera-se que aquilo que um filósofo diz resista ao teste da consistência lógica, mas não que ele próprio forneça a cabal demonstração lógica de tudo o que disse.
Isso é assim por dois motivos. O primeiro deles: em filosofia não há cabal demonstração lógica de praticamente nada. Todas as teses filosóficas podem ser recolocadas em questão à medida que se descobrem nelas novas nuances insuspeitadas à primeira vista ou que o desenvolvimento das ciências traz à luz novos aspectos dos seus objetos.
Segundo: o trabalho de demonstração lógica exaustiva só é possível em questões filosóficas já longamente elaboradas por uma tradição de interpretações e debates, quando as dificuldades de expressão foram superadas e os conceitos estabilizados. Acontece, por fatalidade, que essa condição quase nunca é cumprida pelas grandes filosofias.
O que caracteriza essas filosofias – acima de tudo a de um Platão, a de um Aristóteles – é que desbravam continentes desconhecidos, para os quais não há ainda uma linguagem consagrada nem conceitos descritivos prontos. A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido, uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável. Prova-o acima de qualquer possibilidade de dúvida o fato de que, decorridos dois milênios e picos, ainda se discute o sentido preciso de tais ou quais termos nos escritos daqueles dois filósofos.
É aí, precisamente, que entra a filologia. Sua tarefa é reconstituir a forma e, se possível, o sentido originário dos textos antigos – ou não tão antigos --, de modo a que o estudioso deles tenha em mãos um material confiável, de onde se depreenda com clareza máxima o pensamento dos autores, bem como o seu encadeamento histórico e os seus nexos com o ambiente social e mental das épocas respectivas.
Com isso chegamos um pouco mais perto da filosofia. Estudar e compreender os escritos dos grandes filósofos já é, de algum modo, tomar parte numa atividade filosófica. Tanto que aqueles que a praticam se consideram filósofos. Alguns até acreditam que nisso e somente nisso consiste a filosofia. O prof. José Arthur Gianotti declarou peremptoriamente ser a filosofia, em essência, "um trabalho com textos". Não lembro se a expressão foi bem essa, mas era a ideia.
Essa ideia tem o mérito de demarcar precisamente a diferença entre a filosofia e o que dela se transmite, na melhor das hipóteses, aos estudantes das universidades brasileiras. Estes ocupam-se de textos (quando se ocupam de alguma coisa).
Os grandes filósofos, ao contrário, não se dedicavam eminentemente ao estudo de seus próprios textos, nem mesmo ao dos seus antecessores, contemporâneos e concorrentes, mas ao estudo de objetos que existiam antes, fora e independentemente da filosofia: Deus, a vida após a morte, a constituição dos Estados e governos, a sociedade e os costumes, a conduta moral ou imoral dos seres humanos, os sonhos e emoções, a ordem do universo material,a estrutura da realidade.
Nenhum desses objetos foi inventado pelos filósofos. Estes os encontraram prontos na experiência da vida (que inclui, é claro, uma parcela de herança filosófica), e fizeram um gigantesco esforço de compreendê-los. Desse esforço sempre fez parte, é claro, a meditação do que os filósofos anteriores – ou os homens cultos em geral – haviam dito a respeito.
Aristóteles diz mesmo que o exame das opiniões inteligentes é bom começo de investigação filosófica; e esse começo, decerto, exige a leitura dos textos. A diferença é que Aristóteles os lia para encontrar, justamente, o que não estava neles: o objeto enquanto tal, que só muito parcialmente, e não raro impropriamente, transparecia nas opiniões estudadas. Dito de outro modo, ele usava os textos como perspectivas auxiliares para enriquecer, às vezes por contraste, a sua própria experiência direta dos objetos. Foi nesse sentido que Eric Voegelin aconselhava a seus alunos: "Não estudem a filosofia de Eric Voegelin. Estudem a realidade." A transmutação da realidade em conceito filosófico requer uma técnica apropriada, a técnica filosófica, elaborada ao longo de milênios de experiência, que descrevi breve e toscamente no livro A Filosofia e seu Inverso. Essa técnica é especificamente diversa da lógica e da filologia e não pode ser adquirida pelo estudo exaustivo, ou mesmo maníaco, dessas duas disciplinas.
Publicado no Diário do Comércio.
http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/13397-fugindo-da-filosofia.html
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