quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Escolarização precoce afeta a imaginação, alerta Paulo Fochi


Uma das principais referências em educação infantil da atualidade, ele é um porta-voz no alerta de que a sociedade ainda não reconhece a criança como sujeito de direitos. E pontua: “um projeto pedagógico é um projeto civilizatório”
Paulo de Camargo

Em pleno século 21, para muita gente ainda – políticos, gestores, pais e até educadores – o entendimento da educação infantil vem marcado por preconceitos. Como o de uma etapa menos séria, uma ‘escolinha’; como de um ambiente de ‘cuidar’ de crianças e apoiar as mães trabalhadoras, ou como uma fase preparatória em que as crianças devem já se tornar alunos, aprendendo a ler o quanto antes.

É urgente rever essa visão, superada na boa pedagogia há muitas décadas. Mas, desde que um célebre estudo do Prêmio Nobel de Economia, James Heckman, cravou que investir na educação infantil implica economizar gastos futuros com saúde, segurança e assistência social, formuladores de políticas públicas em todo o planeta passaram a dar mais atenção ao tema. A eles se somaram neurocientistas, sociólogos e outros especialistas que, por diferentes perspectivas, provam que esta é uma fase especial do desenvolvimento humano, de qualquer ângulo que se olhe. 

Para o autor e pesquisador Paulo Fochi, doutor pela USP, com passagens pela Universidade de Barcelona e de Navarra, uma sociedade melhor deve ser pensada desde a infância, e vivemos um tempo em que é preciso proteger a imaginação para sermos capazes de interromper a possibilidade do colapso. Um dos mais respeitados nomes da educação infantil hoje, no país, Fochi é coordenador e professor do curso de pedagogia da Unisinos e fundador do Observatório da Cultura Infantil (Obeci). Da Itália, ele concedeu a seguinte entrevista exclusiva à revista Educação.

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Fica cada vez mais estabelecida a importância da educação infantil. As razões apontadas muitas vezes remetem a algo fundamental para o futuro. Como você justifica a relevância dessa etapa por si mesma, no tempo presente?

Essa é uma ideia perigosa, mesmo porque, tratando desse lugar do amanhã, há o risco de esquecermos dos direitos presentes, da criança do agora. Mas, por outro lado, com toda crítica que possa ser feita, essas abordagens também mostram que estamos construindo uma visão mais ampla sobre como investir na infância. É importante para a transformação da sociedade, inclusive para interromper os ciclos de pobreza. É bom que outros campos venham a concordar sobre o enorme efeito do que prefiro chamar de uma pedagogia do início – porque estamos ajudando esse mamífero que chega ao mundo a se tornar gente.

Nessa pedagogia dos começos, construímos com a criança a noção sobre o que é a humanidade, e fazemos isso pelo modo como nos relacionamos com ela, pelo modo como lhe apresentamos o mundo e pelas oportunidades que o mundo lhe apresenta. Se oferecemos oportunidades escassas, como é o caso das crianças que vivem em situação de pobreza, o seu ponto de partida começa com muitos limites.
Paulo Fochi
Pedagogia do início. É assim que Paulo Fochi prefere denominar a educação infantil Foto: Antonio Marchi

Como está o atual estágio da educação infantil no país?

No Brasil, a educação infantil diz respeito a crianças a partir de quatro meses, em geral, em função do afastamento das mães para licença-maternidade. Precisamos fazer essa observação porque muitas vezes o senso comum leva em conta só a pré-escola, de quatro e cinco anos. O Brasil tem uma legislação que outros países não têm ou ainda não conseguiram implementar para todos, como é o caso da Itália, dos países da América Latina e de língua anglo-saxônica.

O entendimento da faixa de zero a seis anos como uma etapa da educação está na LDB, já desde 1996. Hoje, temos no Plano Nacional de Educação a meta de atender 100% das crianças de quatro e cinco anos na pré-escola e 50% das crianças de creche. Os dados mostram aproximadamente 97% de acesso das crianças da pré-escola e de 38% das crianças de creche. Então nosso primeiro problema sério é o de acesso. 

Além do acesso, que outras questões devem ser consideradas?

Há várias questões, como a da infraestrutura. A nossa concepção vem de uma herança assistencialista. Não fizemos a passagem necessária, ou seja, de pensar que o espaço para abrigar experiências educacionais é muito diferente daquele que tem como única finalidade a guarda das crianças na ausência dos pais. Em muitos casos, as escolas de educação infantil foram adaptadas de antigos postos de saúde, de turmas de ensino fundamental, de casas, o que quase nunca atende às necessidades das crianças e das professoras. Assim, mesmo as crianças com acesso à escola têm oportunidades precárias – com salas superlotadas, falta de mobiliário adequado, sem ambientes arejados ou conforto térmico, entre outras características realçadas na pandemia.

Há desafios, mas é preciso também dizer que houve avanços, como o programa Pro-Infância, criado em 2007, que possibilitou a ampliação do acesso, a construção de escolas, mobiliários e ainda adequações no cronograma de repasse de verbas, antecipadas em relação ao início do ano letivo. 

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E em relação à formação de profissionais para a educação infantil?

Faltam profissionais e formação adequada. Em muitos municípios, a razão entre adultos e crianças não é respeitada. Aliás, em um futuro próximo, estamos vislumbrando um apagão de professores. Ninguém mais quer ser professor por causa das precárias condições profissionais. E temos de rever a formação continuada. Em termos da legislação, a formação dos professores representa um terço da carga horária. Mas, ocorre que nem todas as escolas cumprem essa carga – as escolas privadas, em geral, não cumprem – e aquelas que cumprem acabam utilizando esse tempo como moeda de negociação para não melhorar as condições profissionais. O tempo de formação em serviço acaba virando planejamento a distância, dias de folga.

Deveríamos pactuar condições adequadas para os professores trabalharem, salários dignos, investimento na formação, presença de coordenação pedagógica. E os conselhos municipais de educação deveriam exigir planos de formação adequados, para que esse terço de carga horária seja planejado e aconteça no tempo escolar.

Há um problema generalizado de conhecimento técnico dos gestores?

No final das contas, ninguém com poder de decisão está efetivamente pensando sobre a questão específica das crianças, o seu desenvolvimento e suas necessidades. Há, sim, um desconhecimento técnico dos tomadores de decisões. Eu já vi inúmeros casos nos quais se tem verba e não se sabe utilizar. O que se percebe, ao contrário, são escolas priorizando o excesso de atividades, com presença de livro didático, investimentos altíssimos em apostilas, quando existe um consenso internacional de que a escolarização precoce causa um grande prejuízo em termos de aprendizagem, no desenvolvimento de criatividade, de pensamento.

E quanto à formação inicial? 

Eu faço parte de um pequeno grupo de pesquisadores que problematiza os cursos para mostrar como essa pedagogia generalista é ineficiente. Ao formar em quatro anos um profissional para atuar na educação infantil, no ensino fundamental, na gestão, na coordenação – e tudo isso em um ambiente não escolar -, os cursos não conseguem chegar à especificidade que cada uma dessas frentes demanda. Dessa forma, temos um problema de cursos muito generalistas, agravado por uma visão limitada dos profissionais que atuam nas universidades sobre o que é a educação infantil. Muitas instituições não acompanharam os avanços sobre a pedagogia da infância, e ainda têm uma visão antiquada e até idealista sobre educação infantil.

“A gente está chegando a cinco anos da homologação [da BNCC] e não teve um projeto de implementação”, alerta Paulo Fochi Foto: Antonio Marchi

E quando saem da faculdade e chegam à escola, o que esses formados em pedagogia encontram?

Eu trabalho em uma universidade que tem uma formação avançada de educação infantil, com cinco disciplinas específicas, e enfrentamos essa questão no momento de estágio. Quando nossas alunas vão a campo, encontram uma escola pouco receptiva a avançar na prática pedagógica. Vamos tentando superar esse desafio na aproximação com as escolas, nas pesquisas e no próprio estágio. Oferecemos, por exemplo, uma formação gratuita, como extensão, para as escolas que recebem as nossas alunas, para que possamos fazer a supervisão do estágio – uma oportunidade de deixar uma semente para se repensar a prática pedagógica.

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Você atuou como um dos consultores do MEC para a construção do Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil. A BNCC representou um avanço?

Como qualquer outro documento, a BNCC tem um limite em si, pois é só um documento. Se esse documento não for pensado em termos de implementação, não vai trazer resultado. Pior: passa por uma interpretação e corre o risco de chegar àquilo que se chama de nominalismo pedagógico, ou seja, que atualiza os termos, mas não faz a mudança da prática. Foi o que aconteceu com a BNCC. Estamos completando agora os primeiros cinco anos e não temos dados consistentes para analisar por duas razões: primeiro, porque a própria homologação se deu no meio de um golpe parlamentar, então a agenda política atravessou e criou desvios.

O segundo é que ao término da sua implementação, quando começa o processo de colaboração com os municípios, para pensar a implementação e elaboração dos documentos estaduais municipais, veio o desastroso governo Bolsonaro, o MEC para de funcionar. Então, a gente está chegando a cinco anos da homologação e não teve um projeto de implementação. 

Muitos estados e municípios se viram na urgência de produzir a discussão curricular em nível local, e isso gerou documentos que são cópia ou uma interpretação atrapalhada do texto nacional. Mas há exceções, bons exemplos que deveriam ser reunidos para se pensar nos próximos cinco anos. Aí sim, nós teríamos condições de conhecer sobre o que a base contribuiu e em que precisa ser revista.

A relação entre um projeto de educação e o de sociedade parece esquecida. Não é preciso aumentar o diálogo com todos?

Precisamos recuperar e construir juntos o entendimento de que toda a sociedade deveria estar preocupada com a escola, quem tem filho e quem não tem, quem já passou pela escola e quem não teve o mesmo direito. Isso deveria ser uma pauta de todos, das empresas, da mídia, dos políticos, sindicatos. É preciso pensar a educação não como voluntariado, benesse, mas como investimento na construção de uma sociedade mais digna, justa, respeitosa. Um projeto pedagógico é um projeto civilizatório. Isso aconteceu no mundo devastado pela Primeira Guerra, na Europa, com a utopia de uma escola para pensar a construção da sociedade, de uma nova prática pedagógica para formar pessoas não obedientes, mas com criticidade, capacidade de reflexão, criatividade para buscar soluções – estamos falando de 100 anos atrás, e não é diferente agora. 

E quais seriam os desafios de hoje?

Talvez agora precisemos acrescentar novas problemáticas, como saber discernir no excesso de informações que vivemos. Como deve ser o ato político de proteger a capacidade de imaginar e não ficar repetindo trends de TikTok, padrões viralizados na internet que vão rompendo nossa possibilidade imaginativa? Proteger a imaginação é um ato político. Proteger a imaginação é proteger a capacidade de ver novos mundos. Ailton Krenak diz que narrar histórias talvez seja uma forma de adiar o fim do mundo. O desafio é o mesmo de 100 anos atrás, interromper a possibilidade de uma sociedade colapsar.

No Brasil, ainda temos um longo caminho pela frente…

Estamos falando de escola, mas precisamos ampliar também a nossa compreensão de serviços para a primeira infância. Na Itália e na Espanha, por exemplo, a creche é apenas um dos serviços para a primeira infância, que são complementados por investimentos em um trabalho maravilhoso com teatro, arte, música, centros para as famílias, acesso a livros. A gente vê uma sociedade inteira falando das crianças e seus direitos à escola de qualidade, à cidadania, à beleza, à proteção, ao cuidado. Nos falta muito, como sociedade, reconhecer a criança como esse sujeito de direitos.

Nós deveríamos questionar a presença de crianças num comercial de banco, a sua exposição nas redes sociais, problematizar a presença da criança na rua pedindo comida, vendendo panos na Vila Madalena, no Jardim Europa [bairros nobres de SP]. A gente não pode achar isso natural. Precisamos falar dos direitos das crianças para a construção de uma sociedade diferente, porque desde a infância essa sociedade tem de ser repensada.

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