terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

ARISTÓTELES: OS QUATRO DISCURSOS1 Capítulo I de Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Rio, Topbooks, 1997)

Capítulo I – SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA




ARISTÓTELES: OS QUATRO DISCURSOS1

Capítulo I de Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Rio, Topbooks, 1997)

Há nas obras de Aristóteles uma idéia medular, que escapou à percepção de quase todos os seus leitores e comentaristas, da Antigüidade até hoje. Mesmo aqueles que a perceberam — e foram apenas dois, que eu saiba, ao longo dos milênios — limitaram-se a anotá-la de passagem, sem lhe atribuir explicitamente uma importância decisiva para a compreensão da filosofia de Aristóteles2. No entanto, ela é a chave mesma dessa compreensão, se por compreensão se entende o ato de captar a unidade do pensamento de um homem desde suas próprias intenções e valores, em vez de julgá-lo de fora; ato que implica respeitar cuidadosamente o inexpresso e o subentendido, em vez de sufocá-lo na idolatria do “texto” coisificado, túmulo do pensamento.

A essa idéia denomino Teoria dos Quatro Discursos. Pode ser resumida em uma frase: o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica (lógica).

Dita assim, a idéia não parece muito notável. Mas, se nos ocorre que os nomes dessas quatro modalidades de discurso são também nomes de quatro ciências, vemos que segundo essa perspectiva a Poética, a Retórica, a Dialética e a Lógica, estudando modalidades de uma potência única, constituem também variantes de uma ciência única. A diversificação mesma em quatro ciências subordinadas tem de assentar-se na razão da unidade do objeto que enfocam, sob pena de falharem à regra aristotélica das divisões. E isto significa que os princípios de cada uma delas pressupõem a existência de princípios comuns que as subordinem, isto é, que se apliquem por igual a campos tão diferentes entre si como a demonstração científica e a construção do enredo trágico nas peças teatrais. Então a idéia que acabo de atribuir a Aristóteles já começa a nos parecer estranha, surpreendente, extravagante. E as duas perguntas que ela nos sugere de imediato são: Terá Aristóteles realmente pensado assim? E, se pensou, pensou com razão? A questão biparte-se portanto numa investigação histórico-filológica e numa crítica filosófica. Não poderei, nas dimensões da presente comunicação, realizar a contento nem uma, nem a outra. Em compensação, posso indagar as razões da estranheza.

O espanto que a idéia dos Quatro Discursos provoca a um primeiro contato advém de um costume arraigado da nossa cultura, de encarar a linguagem poética e a linguagem lógica ou científica como universos separados e distantes, regidos por conjuntos de leis incomensuráveis entre si. Desde que um decreto de Luís XIV separou em edifícios diversos as “Letras” e as “Ciências”3, o fosso entre a imaginação poética e a razão matemática não cessou de alargar-se, até se consagrar como uma espécie de lei constitutiva do espírito humano. Evoluindo como paralelas que ora se atraem ora se repelem mas jamais se tocam, as duas culturas, como as chamou C. P. Snow, consolidaram-se em universos estanques, cada qual incompreensível ao outro. Gaston Bachelard, poeta doublé de matemático, imaginou poder descrever esses dois conjuntos de leis como conteúdos de esferas radicalmente separadas, cada qual igualmente válido dentro de seus limites e em seus próprios termos, entre os quais o homem transita como do sono para a vigília, desligando-se de um para entrar na outra, e vice-versa4: a linguagem dos sonhos não contesta a das equações, nem esta penetra no mundo daquela. Tão funda foi a separação, que alguns desejaram encontrar para ela um fundamento anatômico na teoria dos dois hemisférios cerebrais, um criativo e poético, outro racional e ordenador, e acreditaram ver uma correspondência entre essas divisões e a dupla yin-yang da cosmologia chinesa5. Mais ainda, julgaram descobrir no predomínio exclusivo de um desses hemisférios a causa dos males do homem Ocidental. Uma visão um tanto mistificada do ideografismo chinês, divulgada nos meios pedantes por Ezra Pound6 (, deu a essa teoria um respaldo literário mais do que suficiente para compensar sua carência de fundamentos científicos. A ideologia da “Nova Era” consagrou-a enfim como um dos pilares da sabedoria7.

Nesse quadro, o velho Aristóteles posava, junto com o nefando Descartes, como o protótipo mesmo do bedel racionalista que, de régua em punho, mantinha sob severa repressão o nosso chinês interior. O ouvinte imbuído de tais crenças não pode mesmo receber senão com indignado espanto a idéia que atribuo a Aristóteles. Ela apresenta como um apóstolo da unidade aquele a quem todos costumavam encarar como um guardião da esquizofrenia. Ela contesta uma imagem estereotipada que o tempo e a cultura de almanaque consagraram como uma verdade adquirida. Ela remexe velhas feridas, cicatrizadas por uma longa sedimentação de preconceitos.

A resistência é, pois, um fato consumado. Resta enfrentá-la, provando, primeiro, que a idéia é efetivamente de Aristóteles; segundo, que é uma excelente idéia, digna de ser retomada, com humildade, por uma civilização que se apressou em aposentar os ensinamentos do seu velho mestre antes de os haver examinado bem. Não poderei aqui senão indicar por alto as direções onde devem ser buscadas essas duas demonstrações.

Aristóteles escreveu uma Poética, uma Retórica, um livro de Dialética (os Tópicos) e dois tratados de Lógica (Analíticas I e II), além de duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral (Categorias e Da Interpretação). Todas essas obras andaram praticamente desaparecidas, como as demais de Aristóteles, até o século I a. C., quando um certo Andrônico de Rodes promoveu uma edição de conjunto, na qual se baseiam até hoje nossos conhecimentos de Aristóteles.

Como todo editor póstumo, Andrônico teve de colocar alguma ordem nos manuscritos. Decidiu tomar como fundamento dessa ordem o critério da divisão das ciências em introdutórias(ou lógicas), teoréticaspráticas e técnicas (ou poiêticas, como dizem alguns). Esta divisão tinha o mérito de ser do próprio Aristóteles. Mas, como observou com argúcia Octave Hamelin8, não há nenhum motivo para supor que a divisão das obras de um filósofo em volumes deva corresponder taco-a-taco à sua concepção das divisões do saber. Andrônico deu essa correspondência por pressuposta, e agrupou os manuscritos, portanto, nas quatro divisões. Mas, faltando outras obras que pudessem entrar sob o rótulo técnicas, teve de meter lá a Retórica e a Poética, desligando-as das demais obras sobre a teoria do discurso, que foram compor a unidade aparentemente fechada do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias.

Somada a outras circunstâncias, essa casualidade editorial foi pródiga em conseqüências, que se multiplicam até hoje. Em primeiro lugar, a Retórica — nome de uma ciência abominada pelos filósofos, que nela viam o emblema mesmo de seus principais adversários, os sofistas — não suscitou, desde sua primeira edição por Andrônico, o menor interesse filosófico. Foi lida apenas nas escolas de retórica, as quais, para piorar as coisas, entravam então numa decadência acelerada pelo fato de que a extinção da democracia, suprimindo a necessidade de oradores, tirava a razão de ser da arte retórica, encerrando-a na redoma de um formalismo narcisista9. Logo em seguida, a Poética, por sua vez, sumiu de circulação, para só reaparecer no século XVI10. Estes dois acontecimentos parecem fortuitos e desimportantes. Mas, somados, dão como resultado nada menos que o seguinte: todo o aristotelismo ocidental, que, de início lentamente, mas crescendo em velocidade a partir do século XI, foi se formando no período que vai desde a véspera da Era Cristã até o Renascimento, ignorou por completo a Retórica e a Poética. Como nossa imagem de Aristóteles ainda é uma herança desse período (já que a redescoberta da Poéticano Renascimento não despertou interesse senão dos poetas e filólogos, sem tocar o público filosófico), até hoje o que chamamos de Aristóteles, para louvá-lo ou para maldizê-lo, não é o homem de carne e osso, mas um esquema simplificado, montado durante os séculos que ignoravam duas das obras dele. Em especial, nossa visão da teoria aristotélica do pensamento discursivo é baseada exclusivamente na analítica e na tópica, isto é, na lógica e na dialética, amputadas da base que Aristóteles tinha construído para elas na poética e na retórica11.

Mas a mutilação não parou aí. Do edifício da teoria do discurso, haviam sobrado só os dois andares superiores — a dialética e a lógica —, boiando sem alicerces no ar como o quarto do poeta na “Última canção do beco” de Manuel Bandeira. Não demorou a que o terceiro andar fosse também suprimido: a dialética, considerada ciência menor, já que lidava somente com a demonstração provável, foi preterida em benefício da lógica analítica, consagrada desde a Idade Média como a chave mesma do pensamento de Aristóteles. A imagem de um Aristóteles constituído de “lógica formal + sensualismo cognitivo + teologia do Primeiro Motor Imóvel” consolidou-se como verdade histórica jamais contestada.

Mesmo o prodigioso avanço dos estudos biográficos e filológicos inaugurado por Werner Jaeger12 não mudou isso. Jaeger apenas derrubou o estereótipo de um Aristóteles fixo e nascido pronto, para substituir-lhe a imagem vivente de um pensador que evolui no tempo em direção à maturidade das suas idéias. Mas o produto final da evolução não era, sob o aspecto aqui abordado, muito diferente do sistema consagrado pela Idade Média: sobretudo a dialética seria nele um resíduo platônico, absorvido e superado na lógica analítica.

Mas essa visão é contestada por alguns fatos. O primeiro, ressaltado por Éric Weil, é que o inventor da lógica analítica jamais se utiliza dela em seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente13. Em segundo lugar, o próprio Aristóteles insiste em que a lógica não traz conhecimento, mas serve apenas para facilitar a verificação dos conhecimentos já adquiridos, confrontando-os com os princípios que os fundamentam, para ver se não os contradizem. Quando não possuímos os princípios, a única maneira de buscá-los é a investigação dialética que, pelo confronto das hipóteses contraditórias, leva a uma espécie de iluminação intuitiva que põe em evidência esses princípios. A dialética em Aristóteles é, portanto, segundo Weil, uma logica inventionis, ou lógica da descoberta: o verdadeiro método científico, do qual a lógica formal é apenas um complemento e um meio de verificação14.

Mas a oportuna intervenção de Weil, se desfez a lenda de uma total hegemonia da lógica analítica no sistema de Aristóteles, deixou de lado a questão da retórica. O mundo acadêmico do século XX ainda subscreve a opinião de Sir David Ross, que por sua vez segue Andrônico: a Retórica tem “um propósito puramente prático”; “não constitui um trabalho teórico” e sim “um manual para o orador”15. Mas à Poética, por seu lado, Ross atribui um valor teórico efetivo, sem reparar que, se Andrônico errou neste caso, pode também ter se enganado quanto à Retórica. Afinal, desde o momento em que foi redescoberta, a Poética também foi encarada sobretudo como “um manual prático” e interessou antes aos literatos do que aos filósofos16. De outro lado, o próprio livro dos Tópicos poderia ser visto como “manual técnico” ou pelo menos “prático” — pois na Academia a dialética funcionava exatamente como tal: era o conjunto das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, a classificação de Andrônico, uma vez seguida ao pé da letra, resulta em infindáveis confusões, as quais se podem resolver todas de uma vez mediante a admissão da seguinte hipótese, por mais perturbadora que seja: como ciências do discurso, a Poética e a Retórica fazem parte do Organon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias, e não são portanto nem teoréticas nem práticas nem técnicas. Este é o núcleo da interpretação que defendo. Ela implica, porém, uma profunda revisão das idéias tradicionais e correntes sobre a ciência aristotélica do discurso. Esta revisão, por sua vez, arrisca ter conseqüências de grande porte para a nossa visão da linguagem e da cultura em geral. Reclassificar as obras de um grande filósofo pode parecer um inocente empreendimento de eruditos, mas é como mudar de lugar os pilares de um edifício. Pode exigir a demolição de muitas construções em torno.

As razões que alego para justificar essa mudança são as seguintes:

  1. As quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria). As quatro modalidades de discurso caracterizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade:

(a) O discurso poético versa sobre o possível (dunatoV17,dínatos), dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume (eikastikoV, eikástikos, “presumível”; eikasia, eikasia, “imagem”, “representação”).

(b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil (piqanoV, pithános) e por meta a produção de uma crença firme (pistiV,pístis) que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão (peiqo, peitho), que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. Se a poesia tinha como resultado uma impressão, o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.

(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades (dia, diá = “através de” e indica também duplicidade, divisão). Por isto a dialética é também chamada peirástica, da raiz peirá (peira = “prova”, “experiência”, de onde vêm peirasmoV, peirasmos, “tentação”, e as nossas palavras empiriaempirismoexperiência etc., mas também, através de peirateV, peirates, “pirata”: o símbolo mesmo da vida aventureira, da viagem sem rumo predeterminado). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.

(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa(apodeixiV, apodêixis, “prova indestrutível”) da veracidade das conclusões.

É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. As palavras mesmas usadas por Aristóteles para caracterizar os objetivos de cada discurso evidenciam essa gradação: há, portanto, entre os quatro discursos, menos uma diferença de natureza que de grau.

Possibilidadeverossimilhançaprobabilidade razoável e certeza apodíctica são, pois, os conceitos-chave sobre os quais se erguem as quatro ciências respectivas: a Poética estuda os meios pelos quais o discurso poético abre à imaginação o reino do possível; a Retórica, os meios pelos quais o discurso retórico induz a vontade do ouvinte a admitir uma crença; a Dialética, aqueles pelos quais o discurso dialético averigua a razoabilidade das crenças admitidas, e, finalmente, a Lógica ou Analítica estuda os meios da demonstração apodíctica, ou certeza científica. Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativos uns aos outros: não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem confronto com o razoável, e assim por diante. A conseqüência disto é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido: as quatro ciências são inseparáveis; tomadas isoladamente, não fazem nenhum sentido. O que as define e diferencia não são quatro conjuntos isoláveis de caracteres formais, porém quatro possíveis atitudes humanas ante o discurso, quatro motivos humanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para examinar criticamente a base das crenças que fundamentam suas resoluções, ou para explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo com eles o edifício do saber científico. Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em si mesmo e por sua mera estrutura interna, mas pelo objetivo a que tende em seu conjunto, pelo propósito humano que visa a realizar. Daí que os quatro sejam distinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles só é o que é quando considerado no contexto da cultura, como expressão de intuitos humanos. A idéia moderna de delimitar uma linguagem “poética em si” ou “lógica em si” pareceria aos olhos de Aristóteles uma substancialização absurda, pior ainda: uma coisificação alienante18. Ele ainda não estava contaminado pela esquizofrenia que hoje se tornou o estado normal da cultura.

  1. Mas Aristóteles vai mais longe: ele assinala a diferente disposição psicológica correspondente ao ouvinte de cada um dos quatro discursos, e as quatro disposições formam também, da maneira mais patente, uma gradação:

(a) Ao ouvinte do discurso poético cabe afrouxar sua exigência de verossimilhança, admitindo que “não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil”, para captar a verdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil19. Aristóteles, em suma, antecipa a suspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério de verossimilhança mais flexível, o leitor (ou espectador) admite que as desventuras do herói trágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou a qualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.

(b) Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto, uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda a tradição retórica, admite três tipos de discursos retóricos: o discurso forense, o discurso deliberativoe o discurso epidíctico, ou de louvor e censura (a um personagem, a uma obra, etc.)20. Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir: sobre a culpa ou inocência de um réu, sobre a utilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou deméritos de alguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado como autoridade: tem o poder de decidir. Se no ouvinte do discurso poético era importante que a imaginação tomasse as rédeas da mente, para levá-la ao mundo do possível num vôo do qual não se esperava que decorresse nenhuma conseqüência prática imediata, aqui é a vontade que ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos21.

(c) Já o ouvinte do discurso dialético é, interiormente ao menos, um participante do processo dialético. Este não visa a uma decisão imediata, mas a uma aproximação da verdade, aproximação que pode ser lenta, progressiva, difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultados satisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimido mesmo: o dialético não deseja persuadir, como o retórico, mas chegar a uma conclusão que idealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para tanto, ele tem de refrear o desejo de vencer, dispondo-se humildemente a mudar de opinião se os argumentos do adversário forem mais razoáveis. O dialético não defende um partido, mas investiga uma hipótese. Ora, esta investigação só é possível quando ambos os participantes do diálogo conhecem e admitem os princípios básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e quando ambos concordam em ater-se honestamente às regras da demonstração dialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se preciso, de resignação autocrítica. Aristóteles adverte expressamente os discípulos de que não se aventurem a terçar argumentos dialéticos com quem desconheça os princípios da ciência: seria expor-se a objeções de mera retórica, prostituindo a filosofia22.

(d) Finalmente, no plano da lógica analítica, não há mais discussão: há apenas a demonstração linear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamente verídicas e procedendo rigorosamente pela dedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo do mestre: ao discípulo cabe apenas receber e admitir a verdade. Caso falhe a demonstração, o assunto volta à discussão dialética23.

De discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceitas na praxis coletiva; porém, da massa das crenças subscritas pelo senso comum, só umas poucas sobrevivem aos rigores da triagem  dialética; e, destas, menos ainda são as que podem ser admitidas pela ciência como absolutamente certas e funcionar, no fim, como premissas de raciocínios cientificamente válidos. A esfera própria de cada uma das quatro ciências é portanto delimitada pela contigüidade da antecedente e da subseqüente. Dispostas em círculos concêntricos, elas formam o mapeamento completo das comunicações entre os homens civilizados, a esfera do saber racional possível24.

  1. Finalmente, ambas as escalas são exigidas pela teoria aristotélica do conhecimento. Para Aristóteles, o conhecimento começa pelos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia (fantasia), que os agrupa em imagens (eikoi, eikoi, em latim species,speciei), segundo suas semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios. Dos sentidos ao raciocínio abstrato, há uma dupla ponte a ser atravessada: a fantasia e a chamada simples apreensão, que capta as noções isoladas. Não existe salto: sem a intermediação da fantasia e da simples apreensão, não se chega ao estrato superior da racionalidade científica. Há uma perfeita homologia estrutural entre esta descrição aristotélica do processo cognitivo e a Teoria dos Quatro Discursos. Não poderia mesmo ser de outro modo: se o indivíduo humano não chega ao conhecimento racional sem passar pela fantasia e pela simples apreensão, como poderia a coletividade — seja a polisou o círculo menor dos estudiosos — chegar à certeza científica sem o concurso preliminar e sucessivo da imaginação poética, da vontade organizadora que se expressa na retórica e da triagem dialética empreendida pela discussão filosófica?

Retórica e Poética uma vez retiradas do exílio “técnico” ou “poiêtico” em que as pusera Andrônico e restauradas na sua condição de ciências filosóficas, a unidade das ciências do discurso leva-nos ainda a uma verificação surpreendente: há embutida nela toda uma filosofia aristotélica da cultura como expressão integral do logos. Nessa filosofia, a razão científica surge como o fruto supremo de uma árvore que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a natureza sensível não é para Aristóteles apenas uma “exterioridade” irracional e hostil, mas a expressão materializada do Logos divino, a cultura, elevando-se do solo mitopoético até os cumes do conhecimento científico, surge aí como a tradução humanizada dessa Razão divina, espelhada em miniatura na autoconsciência do filósofo. Aristóteles compara, com efeito, a reflexão filosófica à atividade autocognoscitiva de um Deus que consiste, fundamentalmente, em autoconsciência. O cume da reflexão filosófica, que coroa o edifício da cultura, é, com efeito, gnosis gnoseos, o conhecimento do conhecimento. Ora, este se perfaz tão somente no instante em que a reflexão abarca recapitulativamente a sua trajetória completa, isto é, no momento em que, tendo alcançado a esfera da razão científica, ela compreende a unidade dos quatro discursos através dos quais se elevou progressivamente até esse ponto. Aí ela está preparada para passar da ciência ou filosofia à sabedoria, para ingressar na Metafísica, que Aristóteles, como bem frisou Pierre Aubenque, prepara mas não realiza por completo, já que o reino dela não é deste mundo25. A Teoria dos Quatro Discursos é, nesse sentido, o começo e o término da filosofia de Aristóteles. Para além dela, não há mais saber propriamente dito: há somente a “ciência que se busca”, a aspiração do conhecimento supremo, da sophia cuja posse assinalaria ao mesmo tempo a realização e o fim da filosofia.
NOTAS

  1. Em vez de reproduzir exatamente o texto da primeira edição, este capítulo segue a versão ligeiramente corrigida que, sob o título “A estrutura do Organone a unidade das ciências do discurso em Aristóteles”, apresentei no V Congresso Brasileiro de Filosofia, em São Paulo, 6 de setembro de 1995 (seção de Lógica e Filosofia da Ciência).
  2. Esses dois foram Avicena e Sto. Tomás de Aquino. Avicena (Abu ‘Ali el-Hussein ibn Abdallah ibn Sina, 375-428 H. / 985-1036 d.C.) afirma taxativamente, na sua obra Nadjat(“A Salvação”), a unidade das quatro ciências, sob o conceito geral de “lógica”. Segundo o Barão Carra de Vaux, isto “mostra quanto era vasta a idéia que ele fazia desta arte”, em cujo objeto fizera entrar “o estudo de todos os diversos graus de persuasão, desde a demonstração rigorosa até à sugestão poética” (cf. Baron Carra de Vaux, Avicenne, Paris, Alcan, 1900, pp. 160-161). Sto. Tomás de Aquino menciona também, nos Comentários às Segundas Analíticas, I, 1.I, nº 1-6, os quatro graus da lógica, dos quais, provavelmente tomou conhecimento através de Avicena, mas atribuindo-lhes o sentido unilateral de uma hierarquia descendente que vai do mais certo (analítico) ao mais incerto (poético) e dando a entender que, da Tópica “para baixo”, estamos lidando apenas com progressivas formas do erro ou pelo menos do conhecimento deficiente. Isto não coincide exatamente com a concepção de Avicena nem com aquela que apresento neste livro, e que me parece ser a do próprio Aristóteles, segundo a qual não há propriamente uma hierarquia de valor entre os quatro argumentos, mas sim uma diferença de funções articuladas entre si e todas igualmente necessárias à perfeição do conhecimento. De outro lado, é certo que Sto. Tomás, como todo o Ocidente medieval, não teve acesso direto ao texto da Poética. Se tivesse, seria quase impossível que visse na obra poética apenas a representação de algo “como agradável ou repugnante” ( cit., nº 6), sem meditar mais profundamente sobre o que diz Aristóteles quanto ao valor filosófico da poesia (Poética, 1451 a). De qualquer modo, é um feito admirável do Aquinatense o haver percebido a unidade das quatro ciências lógicas, raciocinando, como o fez, desde fontes de segunda mão.
  3. Georges Gusdorf, Les Sciences Humaines et laPensée Occidentale, t. I, De l’Histoire des Sciences à l’Histoire de la Pensée, Paris, Payot, 1966, pp. 9-41.
  4. A obra de Bachelard, refletindo o dualismo metódico do seu pensamento, divide-se em duas séries paralelas: de um lado, os trabalhos de filosofia das ciências, como Le Nouvel Esprit ScientifiqueLeRationalisme Appliqué, etc.; de outro, a série dedicada aos “quatro elementos” — La Psychanalyse du FeuL’Air et les Songes, etc., onde o racionalista em férias exerce livremente o que chamava “o direito de sonhar”. Bachelard parecia possuir um comutador mental que lhe permitia passar de um desses mundos ao outro, sem a menor tentação de lançar entre eles outra ponte que não a liberdade de acionar o comutador.
  5. Para um exame crítico dessa teoria, v. Jerre Levy, “Right Brain, Left Brain: Fact and Fiction” (PsychologyToday, may 1985, pp. 43 ss.).
  6. Ezra Pound fez um barulho enorme em torno do ensaio de Ernest Fenollosa, The Chinese Characters as a Medium for Poetry(London, Stanley Nott, 1936), dando ao Ocidente a impressão de que a língua chinesa constituía um mundo fechado, regido por categorias de pensamento inacessíveis à compreensão Ocidental exceto mediante uma verdadeira torção do conceito mesmo de linguagem. O simbolismo chinês, no entanto, é bem mais parecido com o Ocidental do que imaginam os apreciadores de abismos culturais. Uma similaridade patente que tem escapado a essas pessoas é a que existe entre a estrutura do I Ching e a silogística de Aristóteles.
  7. A crença na teoria dos dois hemisférios é comum a todos os teóricos e gurus da “Nova Era”, como Marilyn Ferguson, Shirley MacLaine e Fritjof Capra. Sobre este último, v. meu livro A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, Instituto de Artes Liberais & Stella Caymmi Editora, 1994. O mais curioso desta teoria é que ela pretende vencer a esquizofrenia do homem Ocidental e começa por dar a ela um fundamento anatômico (afortunadamente, fictício). — É evidente, pelo que se verá a seguir, que não levo muito a sério as tentativas, tão meritórias no intuito quanto miseráveis nos resultados, de superar o dualismo mediante a mixórdia metodológica generalizada que admite como critérios de validade científica a persuasividade retórica e a efusão imaginativa (v. por exemplo Paul Feyerabend, Contra o Método, trad. Octanny S. da Motta e Leônidas Hegenberg, Rio, Francisco Alves, 1977).
  8. “É talvez excessivo exigir que as obras de um autor correspondam ponto por ponto à classificação das ciências tal como a compreende esse autor.” (Octave Hamelin, Le Système d’Aristote, publié par Léon Robin, 4e. éd., Paris, J. Vrin, 1985, p. 82.)
  9. Refiro-me ao período da chamada “retórica escolar”. V. Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina, trad. Teodoro Cabral, Rio, INL, 1957, pp. 74 ss.
  10. Isso torna ainda mais engraçada a trama d’O Nome da Rosa, de Umberto Eco, trama propositadamente impossível que o espectador desinformado toma como ficção verossímil: pois como poderia surgir uma disputa em torno da desaparecida Segunda Parte da Poéticade Aristóteles, numa época que desconhecia até a Primeira?
  11. No quadro medieval, o fenômeno que descrevo tem certamente alguma relação com uma estratificação social que colocava os sábios e filósofos, classe sacerdotal, acima dos poetas, classe de servidores da corte ou artistas de feira. O statusinferior do poeta em relação aos sábios nota-se tanto na hierarquia social (veja-se o papel decisivo que no desenvolvimento literário medieval desempenharam os clerici vagantes, ou goliardos, todo um “proletariado eclesiástico” à margem das universidades), quanto na hierarquia das ciências mesmas: os estudos literários estavam rigorosamente fora do sistema educacional da escolástica, e as mais elevadas concepções filosóficas da Idade Média foram escritas num latim bastante grosseiro, sem que isto, na ocasião, suscitasse qualquer estranheza e muito menos reações de escândalo esteticista como as que viriam a eclodir no Renascimento. Cf., a propósito, Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, trad. Luísa Quintela, Lisboa, Estudios Cor, 1973, Cap. I § 7.
  12. Werner Jaeger, Aristoteles. Bases para la Historia de su Desarrollo Intelectual, trad. José Gaos, México, Fondo de Cultura Económica, 1946 (o original alemão é de 1923).
  13. Essa constatação fez surgir por sua vez a disputa entre os intérpretes que consideram Aristóteles um pensador sistemático(que parte sempre dos mesmos princípios gerais) e os que o enxergam como pensador aporético(que ataca os problemas um por um e vai subindo na direção do geral sem ter muita certeza de aonde vai chegar). A abordagem sugerida no presente trabalho tem, entre outras, a ambição de resolver essa disputa. , adiante, Cap. VII.
  14. Éric Weil, “La Place de la Logique dans la Pensée Aristotélicienne”, em Éssais et Conférences, t. I, Philosophie, Paris, Vrin, 1991, pp. 43-80.
  15. Sir David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 280 (o original inglês é de 1923).
  16. Desde a sua primeira tradução comentada (Francesco Robortelli, 1548), a Poéticaredescoberta vai moldar por dois séculos e meio os padrões do gosto literário, ao mesmo tempo que, no campo da Filosofia da Natureza, o aristotelismo recua, banido pelo avanço vitorioso da nova ciência de Galileu e Bacon, Newton e Descartes. Isto mostra, de um lado, a total separação entre o pensamento literário e a evolução filosófica e científica (separação característica do Ocidente moderno, e que se agravará no decorrer dos séculos); de outro, a indiferença dos filósofos pelo texto redescoberto. Sobre as raízes aristotélicas da estética do classicismo europeu, v. René Wellek, História da Crítica Moderna, trad, Lívio Xavier, São Paulo, Herder. t. I, Cap. I.
  17. Por dificuldades técnicas de edição, omito aqui os acentos das palavras gregas.
  18. Quatro fatos da história do pensamento contemporâneo fazem ressaltar a importância dessas observações. 1°) Todas as tentativas de isolar e definir por seus caracteres intrínsecos uma “linguagem poética”, diferenciando-a materialmente da “linguagem lógica” e da “linguagem cotidiana” fracassaram redondamente. , a respeito, Mary Louise Pratt, Toward a Speech Act Theory of Literary Discourse, Bloomington, Indiana University Press, 1977. 2°) De outro lado, desde Kurt Gödel é geralmente reconhecida a impossibilidade de extirpar do pensamento lógico todo resíduo intuitivo. 3)° Os estudos de Chaim Perelman (Traité de l’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique, Bruxelles, Université Libre, 1978), Thomas S. Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions) e Paul Feyerabend (cit.) mostram, convergentemente, a impossibilidade de erradicar da prova científico-analítica todo elemento dialético e mesmo retórico. 4)° Ao mesmo tempo, a existência de algo mais que um mero paralelismo entre princípios estéticos (vale dizer, poéticos, em sentido lato) e lógico-dialéticos na cosmovisão medieval é fortemente enfatizada por Erwin Panofsky (Architecture Gothique et Pensée Scolastique, trad. Pierre Bourdieu, Paris, Éditions de Minuit, 1967). Esses fatos e muitos outros no mesmo sentido indicam mais que a conveniência, a urgência do estudo integrado dos quatro discursos.
  19. Poética, 1451 a-b.
  20. Sobre as três modalidades na tradição retórica, v. Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1972.
  21. Retórica, 1358 a — 1360 a.
  22. Tópicos, IX 12, 173a 29 ss.
  23. Entre a analítica e a dialética, “a diferença é, segundo Aristóteles, aquela que há entre o curso de ensinamento dado por um professor e a discussão realizada em comum, ou, para dizer de outro modo, a que há entre o monólogo e o diálogo científicos” (Éric Weil,  cit., p. 64).
  24. É quase impossível que Aristóteles, cientista natural com a mente repleta de analogias entre a esfera dos conceitos racionais e os fatos da ordem física, não reparasse no paralelismo — direto e inverso — entre os quatro discursos e os quatro elementos, diferenciados, eles também, pela escalaridade do mais denso para o mais sutil, em círculos concêntricos. Num curso proferido no IAL em 1988, inédito exceto numa série de apostilas sob o título geral de “Teoria dos Quatro Discursos”, investiguei mais extensamente esse paralelismo, que aqui não cabe senão mencionar de passagem.
  25. Pierre Aubenque,Le Problème de l’Être chez Aristote. Éssai sur la Problematique Aristotélicienne, Paris, P.U.F., 1962.
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Aristóteles em Nova Perspectiva







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