terça-feira, 11 de julho de 2023

Livro de Olavo de Carvalho é destaque em jornal de filósofo americano.


Maquiavel ou a Confusão Demoníaca (Vide, 2011), de Olavo de Carvalho, ganhou uma edição em inglês: Machiavelli or the Demonic Confusion (Ashman Free Press, 2021). Darren J. Beattie, analista político que já escreveu discursos presidenciais para a Casa Branca, comenta a respeito desse livro do escritor brasileiro em seu website Revolver News, conforme tradução abaixo.

Desvendando a Confusão Demoníaca: Olavo de Carvalho, Conselheiro de Bolsonaro, Encara Maquiavel em Lançamento Provocante

Por Darren J. Beattie

A derrota de Bolsonaro em uma disputa altamente acirrada e questionável pela reeleição presidencial no Brasil não foi uma tragédia apenas para o povo brasileiro – foi um grande e relativamente desapercebido retrocesso para a causa nacionalista e patriótica do mundo inteiro. O Brasil e a causa patriótica internacional veio a sofrer muito mais com o falecimento de Olavo de Carvalho. Embora ainda seja, indesculpavelmente, pouco conhecido nos Estados Unidos, Olavo era uma figura imponente na vida cultural brasileira, reverenciado pela direita e desprezado pela esquerda por sua personalidade excêntrica, influência cultural e inegável erudição. Escritor best-seller e web radialista, Olavo montou um seminário online de filosofia que conquistou milhares de seguidores e, dentre eles, dois foram aceitos para altos cargos do governo Bolsonaro por indicação do próprio Olavo. Tamanha era a influência de Olavo de Carvalho que dele era um dos quatro livros à mostra na mesa de Bolsonaro durante o discurso de vitória da eleição para a presidência do Brasil (sendo possível identificar também a Bíblia Sagrada e as Memórias da Segunda Guerra Mundial de Winston Churchill).

Há alguns anos, eu tive o privilégio de participar de um jantar com Olavo na casa do lendário estrategista político Steve Bannon, em Washington D.C. Enquanto a conversa à mesa girava em torno das circunstâncias promissoras da presidência de Bolsonaro e das oportunidades de colaboração que ela gerava entre a América de Trump e o Brasil, eu tive o prazer de conversar sobre filosofia com Olavo. Nós falamos sobre a relação controversa entre Platão e Sócrates, os méritos da crítica a Platão por Karl Popper e, finalmente, a respeito de Martin Heidegger, o controverso filósofo alemão cuja teoria da matemática foi tema da minha tese de doutorado (infelizmente, Olavo não era fã do rei-filósofo da Suábia). A erudição desse homem me deixou impressionado; ele não era apenas um filósofo, era um fenômeno cultural no Brasil, recebendo o desprezo de muitos na esquerda, como também o amor e admiração de uma nova e vigorosa direita brasileira, que incluía o novo presidente.

Apesar de grande parte da erudição e análises de Olavo permanecerem sem tradução (do português para inglês), seu livro intitulado Maquiavel ou a Confusão Demoníaca é uma exceção rara. Eu tive o prazer de ler recentemente esse livro muito bem fundamentado sobre o controverso estadista e teórico político florentino; e recomendo-o sem hesitação a quem quer que esteja interessado em conhecer o pensamento de Olavo ou no incontrolável problema filosófico que é a modernidade de maneira geral.

Maquiavel foi um estadista e teórico político florentino que deu origem ao adjetivo “maquiavélico”, sinônimo de um estilo de política desonesto, cruel, manipulador e amoral. Se essa má fama é merecida ou não é uma questão que vem sendo assunto de séculos de estudos, comentários e debates intensos com inúmeras interpretações a respeito Maquiavel. Sendo Maquiavel um dos primeiros e mais importantes filósofos modernos, podemos ver como a confusão de interpretações a respeito de seu pensamento ilustra uma confusão mais ampla e espantosa a respeito da própria modernidade.

Olavo é mordaz ao descrever esse “fenômeno espantoso”, dizendo que “um dos primeiros ícones filosóficos da modernidade é um autor que ela mesma admite não compreender”. Ele, então, sugere que essa ambiguidade e falta de autocompreensão é uma característica típica da modernidade, contrastando filósofos clássicos como Platão e Aristóteles, que “o universo intelectual moderno compreendeu suficientemente”, com a aparente infinidade de interpretações de pensadores modernos – “um Descartes cristão sincero e um anticristão disfarçado, um Kant platônico e idealista ou materialista e positivista, um Hegel precursor do nazismo ou do moderno Estado de direito, um Marx humanista ou anti-humanista, um Nietzsche fascista ou libertário, e assim por diante”.

A ideia de que os modernos entendem, mais ou menos, filósofos clássicos como Platão e Aristóteles, sem dúvidas é, no mínimo, um exagero. Apesar de o clichê de que toda filosofia ocidental ser apenas uma nota de rodapé de Platão poder estar indo longe demais, uma das razões de Platão, Aristóteles e outros grandes pensadores e poetas gregos serem devidamente considerados “clássicos” é a quase inexaurível qualidade das preciosidades que oferecem, sustentando o interesse das mentes mais formidáveis do mundo por milênios. Se os modernos continuam retornando aos clássicos em busca de vitalidade cultural, o uso de versões degradadas da filosofia por interesses políticos – o que podemos chamar de “ideologia” – é um fenômeno muito mais moderno (pós-napoleônico para ser mais preciso). Também é verdade que os modernos procuram associar outros modernos à sua própria ideologia, embora haja algumas exceções (por exemplo, o já mencionado ataque de Karl Popper a Platão como progenitor do despotismo). Olavo identifica o fenômeno de interpretar filósofos para o consumo político massificado, em forma de “ideologia”; o que, sem dúvida, se aplica às várias interpretações de filósofos modernos como, p. ex., um Hegel proto-nazista, um Nietzsche fascista e assim por diante. Além disso, apesar de o golpe sarcástico de Olavo a respeito da incapacidade da modernidade de entender a si mesma possa ter superestimado o entendimento dos modernos a respeito dos clássicos (e, por sua vez, a compreensão dos clássicos sobre si mesmos), ele ainda capta uma deficiência específica e crucial da modernidade. Isto é, autocompreensão é uma meta muito específica da modernidade e, portanto, a falta de autocompreensão aponta para uma falha autoenganosa essencial: a era de iluminismo putitativo continua no escuro a respeito de suas próprias origens.

Considerando a afirmação de Benedetto Croce de que Maquiavel é um “enigma que nunca iremos desvendar”, Olavo estabelece um objetivo aparentemente modesto – não explicar Maquiavel mas apenas “explicar sua inexplicabilidade”. Graças ao papel fundamental de Maquiavel para filosofia moderna como um todo, o projeto de Olavo acabou sendo muito mais ambicioso do que ele esperava. De fato, é impossível delinear a confusão de Maquiavel sem acabar também delineando a confusão bem mais ampla da modernidade. Voltaremos a falar mais tarde nessa análise a respeito da crítica de Olavo a Maquiavel como uma crítica a respeito da modernidade.

Olavo demonstra ter um domínio impressionante a respeito da história da recepção de Maquiavel e dá um resumo excelente das maiores escolas de interpretação do pensamento de Maquiavel. As primeiras recepções de Maquiavel aproximam-se do senso comum de sua amoralidade, um escandaloso professor do mal. Voltaire, Frederico II da Prússia, Shakespeare e seu contemporâneo florentino Francesco Vittori são alguns dos primeiros a tomar essa posição. O Concílio de Trento de 1564 chegou a incluir O Príncipe, de Maquiavel, no Index Librorum Prohibitorum, uma lista de livros proibidos e considerados heréticos pela Igreja. A essa primeira interpretação é necessário acrescentar, para quem não está familiarizado com Maquiavel ou com a história de sua recepção, que Maquiavel é um crítico dos tiranos e ferrenho defensor do tipo de liberdade inspirada pela (ou copiada da) república romana. Jean-Jacques Rousseau, o famoso patriota e republicano genovês que também teve uma recepção vexatória, tem uma afirmação famosa de que o Maquiavel republicano florentino, “enquanto parecia instruir os reis, estava educando o povo. Seu ‘O Príncipe’ é um livro para republicanos”. Uma terceira interpretação enfatiza os ensinos de Maquiavel mais amorais do que imorais, um proto-realismo que analisa como as coisas são ao invés de como as coisas deveriam ser. Essa interpretação leva em consideração o capítulo 15 de O Príncipe, contendo um apelo de Maquiavel para rejeitar “repúblicas e principados imaginários” e olhar para os “verdadeiros fatos”, para que os atores políticos aprendam a “não serem gentis”, um precursor do método “científico” do estudo político, isto é, uma ciência política amoral que aceita a distinção entre valores e fatos como a base de sua análise.

Se o capítulo 15 de O Príncipe apresenta um Maquiavel legal, um cientista político descolado, o capítulo conclusivo, capítulo 26 de O Príncipe, apresenta a próxima interpretação de Maquiavel como o patriota italiano. O capítulo 15 é intitulado “Exortação à Tomada da Itália e à sua Libertação dos Bárbaros”, incitando o governante florentino Lourenço de Médici, em linguagem incomumente floreada, a não deixar escapar a oportunidade de retomada da Itália e alcançar amor, admiração e glória por unir os estados italianos. Essa visão de Maquiavel como um patriota italiano é defendida pelo notório filósofo italiano contemporâneo Maurizio Viroli, mas também, como Olavo rapidamente percebe, pelo falecido líder político fascista italiano Benito Mussolini. Olavo até parece sugerir a ideia de um Maquiavel proto-fascista-autoritário, afirmando que Mussolini fez do pensamento de Maquiavel “um dos pilares da doutrina fascista”. Essa sugestão é intrigante à luz da afirmação de Olavo, em outra parte de seu livro, que Josef Stálin personificou os ensinos de Maquiavel com ainda mais perfeição do que Il Duce. Talvez, essas comparações possam ser reconciliadas levando em consideração que Olavo apontava que Mussolini personificara os ensinos de Maquiavel mais especificamente dentro de uma concepção de autoritarismo que equipara o Príncipe ao Estado. Dentro dessa concepção é possível ver Mussolini e Stálin coincidindo; no entanto, retomaremos mais tarde à questão de o autoritarismo específico do século XX verdadeiramente captar o espírito e intenção de Maquiavel ou não.

Até agora, temos o Maquiavel professor do mal, o defensor da liberdade republicana, o proto-cientista político e o patriota italiano. Olavo adiciona ao catálogo o artista de renome e, segundo o filósofo marxista italiano Gramsci, um certo tipo de profeta. De acordo com essa última interpretação, Maquiavel não é um profeta “não o é no sentido vulgar do vaticinador, mas no sentido etimológico do verbo grego prophero: mandar, ordenar, fazer acontecer”. Maquiavel pode parecer encorajar os governantes de Florença a buscarem inspiração nos profetas fundadores como Moisés, Ciro, Teseu e assim por diante, quando, na verdade, é o próprio Maquiavel que, em última análise, é o fundador, preparando o terreno para o desenvolvimento de leis e costumes políticos inteiramente novos. Embora essa visão de Maquiavel como profeta fundador de uma nova ordem política não seja exclusiva de nenhum intérprete, Olavo tem uma visão específica a respeito da chamada “Terceira Roma”, que, a seu ver, Maquiavel pretende inaugurar com sua conjuração profética. Antes de continuar falando e criticando a nova ordem que Maquiavel pretende inaugurar, pelo menos de acordo com o entendimento de Olavo, precisamos mergulhar no cerne da concepção de Olavo a respeito de Maquiavel e sua “confusão demoníaca”.

O centro da concepção de Olavo a respeito de Maquiavel pode ser descrito como uma combinação da visão de Maquiavel como fundador de uma ordem inteiramente nova e uma versão hiperradicalizada, talvez até polemizada, de Maquiavel como um professor do mal. A seguinte passagem ilustra a intensidade e natureza da crítica de Olavo:

“Dar conselhos ‘maquiavélicos’ aos príncipes é, com toda a evidência, pecar contra a moral. Mas investir-se da autoridade profética para lutar contra a Providência e tentar inverter o curso divino da História não é uma ‘imoralidade’. Não é nem mesmo perversão política. É a rebelião metafísica, o pecado contra o Espírito Santo”.

Esse caráter putativamente demoníaco do pensamento de Maquiavel emerge, em parte, da crítica que Olavo sustenta sobre o alegado “realismo” maquiavélico. Em uma acusação não menos flagrante do que a citada acima, Olavo aponta as falhas e percalços políticos da própria vida de Maquiavel como refutação prática de seu “realismo”.

“O homem que se julgava apto a ensinar o cidadão de origem humilde a subir aos mais altos escalões do poder jamais deu o menor sinal de haver aprendido suas próprias lições. Tudo o que ele conseguiu na vida foi manter-se por quatorze anos num cargo subalterno, perdê-lo por imprevidência política e ganhá-lo parcialmente de volta por obséquio dos novos governantes (…)”

Ai! Olavo continua essa passagem destacando outros erros de cálculo e contradições práticas , desde seu apoio mal sucedido a César Bórgia até a sugestão de que se Lourenço de Médici tivesse aceitado os conselhos de Maquiavel, teria traspassado Maquiavel à espada, presumivelmente porque às vezes Maquiavel encorajava os governantes a trair seus aliados que tinham os ajudado subir ao poder enquanto o próprio Maquiavel apresentava-se como aliado ao dedicar O Príncipe a Lourenço. Deixando de lado a questão da crítica de Olavo ao “realismo” de Maquiavel ser válida ou não, é crucial notar que essa crítica só se aplica a um Maquiavel que se considerava de fato um realista. O próprio Olavo poupa Maquiavel dessa autocrítica apenas para preparar o terreno para uma crítica mais radical do confuso florentino: Maquiavel era um mentiroso e dissimulado, que nunca pretendeu ser julgado de acordo com a utilidade prática imediata de seus conselhos – seja para os outros, seja para ele mesmo. Para sustentar a caracterização de Maquiavel como mentiroso, Olavo repetidamente referencia a carta de Maquiavel ao seu amigo Vettori, na qual declara: “Não creio em nada do que digo e não digo nada que creio – e, quando descubro algum miúdo fragmento da verdade, trato de escondê-lo sob tamanha montanha de mentiras que se torna impossível encontrá-lo”.

De acordo com Olavo, a verdade oculta de Maquiavel é muito mais sombria do que teorias políticas que ele mesmo não consegue observar. Olavo apresenta, então, três “testemunhas”, isto é, três depoimentos do próprio Maquiavel que desvendam o caráter bem mais ambicioso e “demoníaco” de seu pensamento. O primeiro desses testemunhos refere-se à novela pouco conhecida de Maquiavel, Belfagor Arcidiavolo, na qual um demônio, respondendo a queixas de almas masculinas no inferno reclamando de suas esposas, sobe à terra para testar a vida de casado, apenas para acabar voltando voluntariamente para o inferno depois de denunciar a instituição do casamento.

O assunto dessa novela prefigura o segundo testemunho que Olavo dá de uma confissão que Maquiavel faz em seu leito de morte (apesar de essa confissão ser um rumor não confirmado). Nessa confissão, Maquiavel relembra um sonho a alguns amigos em que ele encontrava “Platão, Plutarco, Tácito” e muitos outros autores célebres da antiguidade clássica. Maquiavel perguntava onde eles estavam e descobria que eles estavam condenados no inferno, então ele replicava dizendo que “preferia debater política no inferno com nobreza de espírito do que ser mandado ao céu no fim da fila dos mendigos”. A essa confissão (repito, apócrifa), Olavo justapõe outra, dando uma interpretação radicalmente nova (e muito mais sombria) da passagem que era frequentemente considerada a mais bela e tocante da obra de Maquiavel! Esse escrito, que está citada integralmente abaixo, é de uma famosa carta de Maquiavel, em que ele descreve as condições lamentáveis de sua rotina diária no exílio das cortes do poder florentino:

“Chega então a hora do almoço em que, com minha família, como aquela comida que esta pobre casa e o patrimônio parco permitem. Uma vez alimentado, retorno à estalagem; aí são meus companheiros, em geral, um açougueiro, um moleiro, dois oleiros. Com estes me embruteço durante todo o dia, jogando cartas, e daí nascem mil disputas e uma torrente de palavras injuriosas; e o mais das vezes se briga por uma ninharia, e até de San Casciano já nos ouviram gritar. Assim, rodeado por esses sovinas, tiro o mofo do cérebro e me desabafo contra a malignidade da minha sorte, contente de que ela me espezinhe dessa maneira, para ver se no fim ela acabará se envergonhando de me tratar assim.

Chegada a noite, regresso a casa e entro em meu escritório; à entrada despojo-me das roupas cotidianas cobertas de lama e pó, e me cubro com vestes reais e apropriadas; e, assim vestido condignamente, entro nas antigas cortes dos homens antigos, onde, recebido por eles amavelmente, me alimento daquelas iguarias que me são próprias e para as quais nasci; onde não me envergonho de falar com eles e de lhes perguntar pelas razões de suas ações; e eles, bondosamente, me respondem; e durante quatro horas não experimento qualquer cansaço: esqueço todas as preocupações, não temo a pobreza, não me amedronta a morte; transfiro-me totalmente neles”.

Referindo-se a essa passagem, Olavo questiona como um “homem vocacionalmente direcionado à meditação da antiguidade e dos clássicos (…) se degrade ao ponto de entregar-se ao vício do jogo e a disputas de picuinhas com gente iletrada e rústica” só porque perdeu um emprego.

Uma resposta prosaica a essa questão pode ser retirada das biografias escandalosas de homens bem sucedidos como Pushkin ou Mozart. Até mesmo o afável filósofo escocês David Hume já jogou gamão desleixadamente depois de um longo dia filosofando sobre tópicos incômodos como a ilusões de causalidade. A conclusão de Olavo sobre esse assunto é muito mais provocante e interessante. Segundo Olavo, a transição diária de Maquiavel da companhia de jogadores de rua vulgares aos nobres trajes dos antigos não representa uma elevação do baixo ao alto reino das formas platônicas (ou “república imaginária” de Platão que Maquiavel implicitamente repudia em O Príncipe) mas uma apuração e intensificação da entrega do Maquiavel secular ao demoníaco. Fazendo um paralelo com o alegado sonho de Maquiavel no leito de morte, Olavo afirma que “O templo interior em que Maquiavel se refugia da vulgaridade ambiente já é, com toda a evidência, o Inferno que, às portas da morte, ele declarará escolher”.

Nesse sentido, a associação de Maquiavel com pensadores antigos não é um exercício de fiel interpretação ou organização de fatos, mas sim uma seleção de vários pensadores e historiadores que se encaixem na nova ordem política imoral e sacrílega criada por Maquiavel. A verdadeira fonte da visão maquiavélica, segundo Olavo, não é o distanciamento científico, mas um “curioso arranjo que permite encaixar a observação fria dos detalhes histórico-políticos numa visão de conjunto baseada na contemplação idealizada da malícia demoníaca”.

Não é surpresa que a crítica de Olavo a Maquiavel culmina em uma análise de seus pensamentos sobre religião. O primeiro pilar da crítica de Olavo emerge de sua definição do papel da fortuna e virtude no pensamento de Maquiavel. Olavo destaca o contraste que Maquiavel fez entre o exemplo paradigmático do profeta armado fundador de uma nova ordem em Moisés e o contemporâneo desarmado Savonarola, um frade dominicano e líder religioso que acabou fracassando depois de exercer um tremendo poder sobre a vida cultural e religiosa na Florença do século XV. Olavo encrenca com a famosa justificativa maquiavélica do sucesso de Moisés por ele ser um “profeta armado” e Savonarola falhar por ter sido um profeta desarmado, dependente das crenças de seus seguidores. Olavo sugere que Savonarola não falhou por ser um profeta desarmado mas, primeiramente, porque ele não era um profeta genuíno. Continuando, ele destaca que a simples “força das armas” não poderia ter sido o único fator do sucesso de Moisés, já que os mandamentos de Moisés continuaram sendo seguidos muito depois da morte do profeta armado – “já que os mortos não têm armas”. Se o falecido Moisés já não tinha acesso às armas, e, portanto, não tinha acesso à virtude, Olavo explica, as justificativas restantes para o sucesso dos mandamentos de Moisés permanecem sendo a divina providência ou a sorte, ambas classificadas dentro do conceito de “fortuna” de Maquiavel. Mas se a virtude de Maquiavel é a habilidade de driblar e superar a fortuna, como poderemos explicar a aparente dependência póstuma na fortuna de um Moisés paradigmaticamente virtuoso?

Olavo cristaliza sua argumentação sobre virtude e fortuna em uma crítica maior a Maquiavel.

“(…) se a essência da política é a Virtù e a missão da Virtù é subjugar a Fortuna identificada por sua vez com a vontade de Deus, que realismo existe em isolar a política da religião, isto é, do conhecimento da “Fortuna” enquanto tal?”.

Ele continua:

“A Fortuna é ao mesmo tempo o cenário abrangente dentro do qual se desenrolam as atividades políticas e o principal obstáculo a ser vencido por elas. Quem chamaria de ‘realista’ um general que, em seu plano de batalha, começasse por fazer abstração do terreno e do inimigo? Maquiavel parece acreditar que basta voltar as costas à Fortuna para aboli-la ou neutralizá-la. Como isto é obviamente impossível, uma ciência política digna desse nome, ou uma simples sabedoria política prática fundada no bom senso requereriam, antes de tudo, a investigação da Fortuna e dos limites que ela impõe à ação humana”.

Olavo conclui que Maquiavel não é “realista” no sentido de procurar descrever o mundo político como ele realmente é mas um idealista demoníaco, invertido e perverso que saboreia a contemplação do mal não por sua utilidade prática de compreensão das duras verdades da vida política mas pelo puro e simples prazer estético do mal em si. Essa peça da crítica de Olavo em especial é uma área em que seu polemicismo supera uma descrição fiel de Maquiavel. De todas as críticas possíveis a Maquiavel, a noção de que ele dá atenção insuficiente à fortuna e aos “limites que ela impõe à ação humana” é simplesmente insustentável. Dificilmente seria um exagero dizer que a dificuldade do homem em lidar com a instabilidade da fortuna é o problema político central para Maquiavel, já que ele desenvolve uma concepção específica de virtude (Virtù) para referir-se não a virtudes éticas em um sentido tradicional Aristotélico mas à virtude de competência do governante hábil para calibrar estrategicamente seu comportamento de acordo com a flexibilidade dos tempos.

No famoso capítulo 25 de O Príncipe, Maquiavel nota que qualquer príncipe que confia apenas na fortuna vai à falência quando a fortuna muda. Esse problema é muito importante na época de Maquiavel, em que os governantes em potencial pareciam intimidados com a variabilidade dos tempos e inclinados a deixar mais e mais questões à deriva. Governantes com comportamento cuidadoso e paciente prosperam em tempos de paz; governantes com comportamento impetuoso ou violento, por outro lado, prosperam em tempos tumultuosos.

Em uma das passagens mais famosas de O Príncipe, Maquiavel nota que se alguém for obrigado a escolher, é melhor errar pelo comportamento impetuoso, porque “a fortuna é mulher e, para dominá-la, é necessário bater-lhe e contrariá-la. É pelo geral reconhecido que ela se deixa dominar de preferência por estes do que por aqueles que agem friamente”. É óbvio que a situação ideal para um governante é discernir e ter a capacidade de mudar seu comportamento e abordagem de acordo com os tempos. Um governante naturalmente impetuoso deve aprender a mudar seu comportamento e ficar mais cauteloso com a mudança dos tempos e tentar uma abordagem diferente; um governante naturalmente cauteloso deve ser mais ousado para encaixar-se nos requisitos de circunstâncias alteradas. Similarmente, um governante que é motivado principalmente pela piedade religiosa ou concepções clássicas de virtude, certo e errado deve aprender a aplicar fraudes, traições e violência quando a situação exigir. Em outra famosa passagem de O Príncipe, o governante bom deve aprender a não ser bom. O conselho infame de Maquiavel aos príncipes para aplicar fraudes, traições e outros comportamentos “imorais” quando a ocasião exigir pode ser entendido como um subconjunto do imperativo maquiavélico pela virtude, que consiste na habilidade do governante de antecipar-se, encaixar-se na nova situação e adaptar-se sempre que houver flutuações nas circunstâncias, isto é, flutuações na fortuna.

Vale a pena acrescentar que a imprevisibilidade da fortuna para Maquiavel não refere-se apenas ao sentido mais geral dos tempos. A imprevisibilidade da fortuna também engloba a imprevisibilidade de outros seres humanos. Assim como a virtude maquiavélica requer a perspicácia e adaptabilidade para diminuir a dependência da sorte de maneira geral, ela também requer especificamente a diminuição da dependência em relação a outros seres humanos. No sentido político, é possível dizer, que diminuir a dependência da sorte é diminuir a dependência de outros seres humanos. Isso vale para as famosas prescrições maquiavélicas de que o governante virtuoso deve não depender dos favores dos outros para chegar ao poder, não depender de exércitos mercenários mas armar sua própria população, além de sempre lutar para ser temido e amado, apesar de ser temido ser mais importante, “por ser o amor conservado por laço de obrigação, o qual é rompido por serem os homens pérfidos sempre que lhes aprouver, enquanto o medi que se infunde é alimentado pelo temor do castigo, que é sentimento que jamais se deixa”. A virtude de Maquiavel consiste na independência de outros e das circunstâncias externas. No limite, a “boa fortuna” maquiavélica para um governante em potencial é uma situação em que as circunstâncias são tão desafiadoras que o governante não tem outra escolha a não ser agir por iniciativa própria. Isto é, a maior sorte que um príncipe verdadeiramente virtuoso pode ter é enfrentar circunstâncias tão tenebrosas e desafiadoras que ele tem que superá-las por conta própria, sem ajuda de outros ou da sorte, permitindo assim que alcance a forma mais segura de poder independente e a mais alta glória. Esse é o tipo contraintuitivo de “fortuna” que Maquiavel mais exaltava que os profetas fundadores desfrutaram (Moisés, Rômulo, Ciro) e similarmente o caos da Itália, em estado de tumulto, é onde há mais fortuna ao príncipe virtuoso capaz de reconhecer a oportunidade proporcionada por circunstâncias desafiadoras.

Voltando à análise de Olavo, nós vemos que Maquiavel quer minimizar a dependência da fortuna, enquanto ignora o papel da fortuna na vida política. Maquiavel originalmente inclui a providência divina, ou vontade de Deus, como componente da fortuna mas rapidamente deixa as considerações divinas de lado em sua análise, atendo-se à sorte e à “natureza dos tempos” como constitutivos da fortuna. Isso parece refletir uma visão de Maquiavel de que a providência divina não é real ou, pelo menos, relevante para sua análise política. Nós vemos uma situação semelhante nos argumentos de Maquiavel a respeito dos profetas fundadors mais reverenciados e bem sucedidos, i.e., Teseu, Rômulo, Ciro e Moisés. Primeiro, Maquiavel defende, com falsa piedade, que Moisés não deveria ser citado como exemplo por ser um “mero executor das ordens de Deus”. Na consideração seguinte, no entanto, Maquiavel afirma que os outros não são diferentes de Moisés, implicitamente negando a relevância política (se não a própria existência) da vantagem providencial de Moisés. Só porque Maquiavel nega implicitamente a existência do divino, ou, pelo menos, a relevância política do divino, não quer dizer, como Olavo sugere, que Maquiavel ignora a religião. Pelo contrário: religião, ou a relação entre fortuna e virtude, é um dos temas de maior importância da obra de Maquiavel. Embora um governante deva agir como se Deus não existisse, é fundamental que ele pareça religioso. Maquiavel combina suas prescrições de aparência religiosa com as prescrições já mencionadas de encaixe virtuoso à imprevisibilidade da sorte em seu engraçado exemplo verídico das “galinhas sagradas” de Roma.

Maquiavel explica em seu livro Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio que no exército da república romana existiam certas ordens de “áugures” capazes de ler “galinhas sagradas”.  Em uma versão militar levemente modificada do “Dia da Marmota”, os guardiões das galinhas sagradas iriam relatar se as galinhas comiam ou não às vésperas de uma batalha importante. Se as galinhas comessem, isso era considerado um presságio de vitória, e o exército seguiria para a batalha iminente; se as galinhas evitassem comer, o exército iria evitar a batalha. Maquiavel defendia que era crucial observar que quando os imperativos de uma vantagem estratégica favoreciam uma batalha, o exército deveria avançar e lutar, apesar do mau presságio das galinhas. Apesar de os tomadores de decisões não acreditarem de fato nos presságios mais do que nas necessidades estratégicas da batalha, sempre que tivessem que evitar os conselhos das galinhas sagradas, eles evitavam mostrar desdém pela religião.  Maquiavel mostra exemplos do jeito certo e errado de rejeitar o conselho das galinhas.

O exemplo positivo é o de Papírio, que tinha absoluta certeza que seu exército conseguiria derrotas os samnitas. Papírio rapidamente consultou os áugures, só para descobrir que as galinhas sagradas não queriam comer. O príncipe dos áugures, vendo a confiança dos soldados e sua vontade de lutar, juntamente com a confiança de Papírio na vitória, relatou falsamente que as galinhas tinham comido. Alguns dos áugures começaram a espalhar rumores aos soldados de que a notícia de bom presságio era falsa e esses rumores chegaram a um sobrinho de Papírio, que contou tudo ao governante. Papírio, então, respondeu que tudo apontava para uma vitória e que se o príncipe dos áugures mentira, os próprios deuses tratariam de puni-lo inequivocamente. Sem titubear, Papírio pôs o príncipe dos áugures nas linhas de frente da batalha, onde foi rapidamente atingido por uma lança de arremesso atirada por um soldado romano (“fogo amigo”). Os soldados lutaram com confiança renovada depois desse acidente, já que os deuses que já cobraram seu preço e, satisfeitos, agora favorecem sua vitória. Em contraste com esse exemplo, Maquiavel destaca o comportamento de um tal Ápio Pulcro às vésperas da batalha contra os cartaginenses na Primeira Guerra Púnica. Quando os áugures relataram que as galinhas ainda não tinham comido, Ápio, frustrado, exclamou “vamos ver se elas querem beber!” e jogou-as no oceano. Logo mais, Ápio acabou perdendo a batalha. Maquiavel conclui que Papírio foi celebrado em Roma e Ápio punido, não simplesmente por um ter vencido e outro perdido, mas porque aquele agiu prudentemente em relação aos áugures e este decidiu tratá-los rispidamente.

É interessante que nos dois exemplos os governantes desobedecem e implicitamente não acreditam em uma prescrição religiosa relevante. O contraste importante aqui é feito entre o governante que entende a necessidade de encaixar-se e aproveitar-se das crenças de seus soldados/súditos e o governante que desrespeita abertamente práticas religiosas. Em suma, um governante não deve realmente acreditar ao ponto de agir de acordo com os conselhos das galinhas sagradas mas sim de acordo com a necessidade estratégica; porém, o governante também deve parecer religioso para encorajar e não desmoralizar seus súditos. Se a fortuna apresenta um dilema ao governante e tais áugures não corresponderem à resposta apropriada para a situação, o governante deve exercer virtù e ser criativo para solucionar o problema, como Papírio fez de um jeito fantasticamente cínico e, bem, “maquiavélico”.

Olavo está certo no sentido de que Maquiavel com razão separa alegações religiosas da verdade de fato ou da base para a tomada de decisão política. Porém, isso não significa que Maquiavel ignora a importância da religião como um fator psicológico e um instrumento necessário à governança. A exaltação de Maquiavel a Numa Pompílio no Livro I dos Discursos é um exemplo de sua estima pela religião. Nesse capítulo, Maquiavel parece exaltar mais Numa do que Rômulo, apesar de ter incluído Rômulo como exemplo ao lado de profetas fundadores como Ciro, Moisés e Teseu. Numa introduziu e implementou ordens religiosas em Roma ao ponto de os cidadãos temerem mais violar um juramento do que as leis, como se temessem mais o poder de Deus do que o dos homens. Maquiavel continua a afirmar que “a religião introduzida por Numa era uma das causas principais da felicidade de Roma” e que Numa, mais do que Rômulo, desfrutava de mais disponibilidade de sus cidadãos porque “onde há religião, as armas podem facilmente serem introduzidas; e onde há armas sem religião, esta só consegue ser introduzida com dificuldade”.

O que Maquiavel fala a respeito de Numa responde indiretamente as perguntas de Olavo a respeito de Moisés e Savonarola. Olavo sugere corretamente que a “força das armas” não pode ter sido o único fator por trás do sucesso de Moisés, já que “os mortos não têm armas”. O tratamento que Maquiavel dá a Numa indica que as armas nunca são suficientes para assegurar o poder no longo prazo e que se as boas armas podem assegurar boas leis e boas ordens, uma religião bem estabelecida faz grande diferença assegurando o uso efetivo das armas pelos governantes que sucedem um fundador, pois, como mencionado, “onde há religião, as armas podem facilmente serem introduzidas”. Enquanto, para Olavo, Maquiavel rejeita a possibilidade de Savonarola ter falhado por ser um falso profeta, isso não poderia ser menos relevante de um ponto de vista maquiavélico. Enquanto Savonarola investiu pesado no estabelecimento de ordens religiosas, ele não conseguiu traduzir esse poder religioso em poder político, já que não tinha armas (armas para Maquiavel não significava apenas armamento no sentido literal mas a capacidade geral de exercer poder político). Enquanto sublinhava a importância da instrumentalização de crenças religiosas, Maquiavel até faz uma referência a Savonarola dos Discursos, dizendo a futuros governantes que se Savonarola conseguia ludibriar pessoas religiosamente, então eles também conseguiriam – e que eles, presumivelmente, poderiam combinar essas crenças com armas e ordem política mais efetivamente do que ele para evitar seu trágico destino.

Acontece que Olavo estava tão ciente do tratamento de Maquiavel a respeito de Numa que referencia indiretamente esse tratamento para lançar sua crítica final e mais incisiva sobre Maquiavel. Olavo nota corretamente que, para Maquiavel, tratar a religião como uma fraude útil não era apenas aceitável como “louvável”. Baseado nessa observação, Olavo revisita uma passagem dos Discursos em que Maquiavel faz um elogio incomum ao cristianismo. Especificamente, Maquiavel contrasta o estado corrupto da Igreja romana de seu tempo com o cristianismo primitivo, pelo qual Maquiavel demonstra simpatia. De onde vem essa surpreendente piedade que Maquiavel estende ao cristianismo primitivo? Ela não poderia vir de uma preferência de Maquiavel pelas virtudes evangélicas que ele claramente desprezava. Olavo sugere que há aqui uma explicação incrivelmente cínica mas provavelmente correta: “A qualidade excelsa do cristianismo primitivo só pode consistir, pois, na sua capacidade de produzir ‘milagres’, no sentido romano e não cristão do termo, isto é, não autênticas intervenções divinas no curso dos acontecimentos, e sim aparências suscetíveis de ser assim interpretadas pelo povo crédulo, tal como no exemplo dos soldados no templo de Juno. Em suma a religião cristã primitiva tinha o dom de manipular as almas para induzi-las à obediência. O mal do cristianismo decadente não está na perda das virtudes evangélicas, mas na perda da capacidade de ludibriar as multidões. Por mais que a blasfêmia se oculte sob montanhas de disfarces, ela não pode ter escapado ao próprio Maquiavel, que lhe acrescenta o detalhe requintado de atribuir ao próprio Cristo o mérito da arte do engodo, miseravelmente perdido por seus sucessores. É a esse Cristo transfigurado em político maquiavélico que Maquiavel, fingindo louvar o Cristo dos Evangelhos, presta sua devoção”.

Assim, Olavo, provocativamente, acusa Maquiavel de implicitamente apresentar Cristo de acordo com sua própria pequenez. Olavo completa a acusação com uma referência a outra passagem famosa de Maquiavel, na verdade a única passagem bíblica evocada em toda obra de Maquiavel. Falando a respeito do que um novo príncipe deve fazer para assegurar seu poder, Maquiavel sugere que o príncipe deve empregar novos homens e “como Davi quando tornou-se rei, exaltar os humildes e deprimir os poderosos, encher de bens os famintos e despedir vazios os ricos”. Olavo junta-se a outros comentadores astutos de Maquiavel ao destacar que essa alusão bíblica parece ser um erro gritante da parte de Maquiavel. Não foi Davi mas sim Deus que “encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos” (Lucas 1:53). Como Olavo sugere, Maquiavel apresenta Cristo como um político maquiavelicamente enganoso, manipulando o povo com milagres, descrevendo Deus como o novo príncipe que é aconselhado a recomensar os pobres e despedir vazios os ricos. É preciso acrescentar que de certa forma Maquiavel é o novo governante, inaugurando novas leis e costumes, além de uma nova ciência política, e que Maquiavel olha para si mesmo como Deus – pelo menos na criação de um novo universo político com suas próprias leis e preceitos especiais, além de sua concepção peculiar de virtude. De fato, se o leitor permitir uma observação straussiana demais até para o próprio Strauss, é interessante notar semelhanças estruturais entre o capítulo inicial de O Príncipe e a história da criação bíblica do Gênesis.

Maquiavel começa O Príncipe com uma série de afirmações simples, que repetiremos aqui por conveniência. Todos os domínios são ou repúblicas ou principados; todos os principados são ou hereditários ou novos; novos principados são ou completamente novos ou mistos; principados mistos consistem em cidadãos conquistados que ou estão acostumados à subordinação a um príncipe ou livres “adquiridos ou com tropas próprias ou alheias, seja por fortuna ou virtude”. Ao promulgar essas seis distinções políticas básicas, cada uma subdividindo-se em classes determinadas pela distinção anterior, Maquiavel permite comparação com a passagem inicial do Gênesis. De fato, vemos que no Gênesis, assim como em Maquiavel, há seis distinções básicas em um processo ordenado por subdivisões sucessivas (separando luz e trevas, terra e água, etc). Se o processo de criação do Gênesis culmina em um ser vivo criado à imagem e semelhança de Deus (o homem), Maquiavel culmina paralelamente no novo principado adquirido virtuosamente com suas próprias tropas. Tal principado e o príncipe que o estabeleceu parecem ocupar o nível mais alto do universo político de Maquiavel (ou politologia).

Enquanto a história da criação bíblica começa com distinções baseadas em metafísica e cosmologia, a de Maquiavel começa com distinções entre repúblicas e principados – isto é, começa com uma distinção política. A história da criação de Maquiavel começa com política e, portanto, o lugar do homem no universo dele não é limitado por considerações superiores à política, incluindo a moralidade bíblica. Isso não quer dizer que no universo de Maquiavel não há lugar para a moralidade (até mesmo a moralidade bíblica) mas uma moralidade subordinada à necessidade política. Se a necessidade política requer que alguém “aprenda a não ser bom”, como acontece de vez em quando, o homem virtuoso aceitará esse chamado e agirá de acordo com ele. Como o universo de Maquiavel é inteiramente político, virtude e moralidade são determinados pelo politicamente correto, ao invés de ser o contrário.

Enquanto Olavo com certeza tem razão a respeito de Maquiavel colocar a si mesmo e seus fundadores ideais no lugar de Deus, subordinando (se não ignorando) a moralidade clássica e cristã, ele talvez exagere no polemicismo em sua conclusão final de que Maquiavel, portanto, representa o “diabolismo em estado puro – e num sentido incomparavelmente mais perverso do que aquele apontado pelos críticos do mero imoralismo ‘material’ da razão de Estado (…)”. É claro que Olavo tem todo direito de estar escandalizado com Maquiavel e até apresentá-lo como diabólico. Porém, como notamos acima, a sugestão de que não há método para a loucura, que Maquiavel de alguma forma aprecia o mal por puro prazer, ou por contemplação estética, é impossível de reconciliar com a totalidade da obra de Maquiavel. Maquiavel pode ter tolerado, ou mesmo defendido, ações “imorais” mas nunca de forma desligada dos fins que orientariam essas ações. No fim das contas, o governante que atua por meios imorais precisa ter um mínimo de sucesso em alcançar suas finalidades para ser realmente virtuoso no sentido maquiavélico. Além disso, os fins em questão não podem ser triviais, já que os exemplos de Maquiavel são reservados exclusivamente para os fins mais nobres do Estado – não há nada trivial na fundação de novas sociedades e, em O Príncipe, na unificação da Itália e sua libertação da opressão estrangeira. Maquiavel até mesmo parece contraindicar imoralidades excessivas ou desnecessárias. Por exemplo, Maquiavel aconselha que é preferível ser temido do que ser amado, porém sempre alerta os governantes contra abusos mais graves que poderiam despertar ódio contra eles. Se Olavo acha a razão de Estado de Maquiavel escandalosa, tudo bem, mas que, pelo menos, ele dê ao Diabo o que é do Diabo, por assim dizer, e reconheça que Maquiavel não recomenda um imoralismo desleixado e aleatório – ao invés disso, quando o imoralismo é tolerado, isso sempre acontece em um contexto especial criado pelas necessidades do Estado.

Minha principal objeção à condenação grosseira de Olavo de Maquiavel como um tipo de feiticeiro diabólico, que delicia-se do mal puro por puro prazer, é que tal veredito dissolve a granularidade, distinções críticas e questões do pensamento de Maquiavel. Tomando o exemplo bíblico errôneo (provavelmente intencional) em que ele encoraja novos príncipes a recompensar o pobre e punir o rico. Olavo está certo em sugerir que o príncipe assume o lugar de Deus e que, como já mencionado, o próprio Maquiavel assume o papel de criador de uma nova ordem política apresentada em suas obras. No entanto, em outro sentido, o conselho corresponde a um tema constante na obra de Maquiavel que é o encorajamento aos governantes de armar e empoderar o povo para contrariar a nobreza. Nesse sentido, Maquiavel parece celebrar o modelo de tirano “populista” da Grécia Antiga, como Dionísio de Siracusa ou Clearco de Heracleia, que traiçoeiramente assassinaram a nobreza inteira depois que eles os colocaram no poder. Isso não ficou apenas no papel – quando a família Médici voltou ao poder por um golpe aristocrático, tomando a Florença livre que Maquiavel servira, a primeira coisa que Maquiavel fez foi escrever um memorando implorando que o povo, não os nobres, deveria ser a base do regime. Os Médici responderam prendendo e torturando Maquiavel.

Ao mesmo tempo em que Maquiavel parece favorecer o empoderamento do povo prejudicando a nobreza, e com certeza prejudicando a assistência estrangeira e mercenários, ele demonstrava uma clara preferência pela república romana ao invés do império romano. Apesar de o grande predecessor florentino de Maquiavel, Dante, alocar Bruto no último círculo do inferno reservado para traidores, Maquiavel (que tinha um conceito muito mais flexível de traição) considerava Bruto um herói por assassinar César. Maquiavel lamentava repetitivamente que Roma nunca foi livre desde o levante de César. Nesse sentido, Maquiavel parece exibir uma certa tendência cívica republicana (muito embora ela seja de um tipo muito excêntrico e peculiar) que parece informar sua complicada e inaugural relação com a modernidade.

As questões da relação de Maquiavel com a modernidade, ou se Maquiavel favoreceu de fato algum tipo específico de ordem política sobre outras, são muito complicadas para tratar aqui adequadamente. É uma pena que Olavo não tenha explorado exaustivamente essas questões, talvez porque elas eram irrelevantes ou triviais comparadas à natureza putativamente demoníaca do pensamento de Maquiavel como um todo. É interessante que Olavo reconhece o papel especial de Maquiavel como um pensador moderno nos capítulos introdutórios que associam nossa inabilidade de entender Maquiavel como a inconveniente falta de autocompreensão da modernidade. Nesse sentido, nós podemos imaginar até que ponto a diagnose de Maquiavel como diabólico estende-se à modernidade como um todo. Além disso, nós podemos imaginar se Maquiavel merece ou não um opróbrio especial em relação a outros pensadores que deram forma à modernidade como, por exemplo, Descartes, Hobbes ou Bacon. Se Maquiavel sugere imoralismo, pelo menos seu pensamento continua sendo fundamentalmente humano, considerando que a psicologia humana ocupa um lugar de destaque em sua análise política. Maquiavel até mesmo apela para o desejo de glória de um governante ou potencial governante. Esses apelos ao elemento humano, especialmente o desejo de glória de um governante ambicioso, soam estranhamente positivos em comparação à modernidade política hobbesiana baseada na motivação covarde do medo de uma morte violenta, sem mencionar a ciência desalmada, mecanicista, inaugurada pela ciência moderna. Para Olavo, onde fica o pensamento de Maquiavel comparado ao de outros pensadores, como Descartes ou Hobbes, ou mesmo à ciência moderna? Parece que a falta de uma visão científica moderna em Maquiavel teria criado alguma distância entre o florentino e as monstruosidades mecanicistas como a Rússia de Stálin ou mesmo um regime comercial vasto e moderno como os Estados Unidos.

Nessa pegada, é interessante notar que Olavo caracteriza tanto a Rússia de Stálin, quanto a Itália de Mussolini e os próprios Estados Unidos como exemplos perfeitos de Estados maquiavélicos. Deixando de lado a questão de essa ser ou não uma interpretação válida de Maquiavel, isso certamente abre dúvidas fascinantes a respeito da concepção do próprio Olavo não apenas a respeito da modernidade como também dos Estados Unidos em particular. Enquanto a fusão implícita da Rússia de Stálin e os Estados Unidos modernos, burocráticos, pode nos parecer um exagero, manifestamente insustentável, ou até mesmo desleixado, podemos notar que outro pensador, Heidegger, também sugeria que os Estados Unidos e a União Soviética eram metafisicamente idênticos. No caso de Heidegger, essa fusão aparentemente absurda na verdade estava baseada em conceitos filosóficos e metafísicos bem elaborados. Apesar de Olavo não ser advogado de Heidegger, como descobri em nosso jantar, eu fiquei querendo saber mais a respeito de sua filosofia e onde os Estados Unidos (ou mesmo o Brasil) se encaixam no plano geral da realidade. O livro de Olavo sobre a confusão demoníaca de Maquiavel provou-se ser um passeio enriquecedor, prazeroso e provocante sobre o pensamento do florentino mas ele nos deixa querendo saber mais a respeito de seu pensamento. Espero que o pessoal da Ashman Press faça mais traduções das obras do fascinante sábio brasileiro.

Fonte https://www.estudosnacionais.com/38617/livro-de-olavo-de-carvalho-e-destaque-em-jornal-de-filosofo-americano/

Agência EN

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