O LÚDICO E A PSICOPATOLOGIA ADOLESCENTE: UM ESTUDO DE CASO
Nadja C. Kinzel
Resumo:
Alicerçada em um referencial teórico pós-estruturalista e tomando por base autores como M. Foucault e J. Lacan, esta pesquisa têm como foco demonstrar a importância da atividade lúdica enquanto auxiliar no tratamento de adolescentes psicopatológicos. Alguns objetivos nortearam este trabalho, e, estes se referem aos seguintes fatores: o discurso que permeia a doença mental, o período denominado adolescência; o sentido da atividade lúdica tanto a pacientes neuróticos quanto á psicóticos, bem como às suas famílias. Com caráter qualitativo, participante, esta pesquisa foi realizada em forma de estudo de caso no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no Serviço de Recreação Terapêutica, com uma adolescente de 14 anos (P.) encaminhada pelo Hospital Presidente Vargas, com passagem pelo Hospital São Pedro, por agressividade, impulsividade e ideação suicida, internada por três meses pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, atendida por uma equipe multidisciplinar.
Algumas observações podem ser relatadas ao final da internação: P. refletia toda uma sintomática familiar onde mantinha uma relação simbiótica com sua mãe (A. 36a). A atividade lúdica auxiliou P. a passar de infans a sujeito, sendo esta essencial ao seu tratamento. Era através de atividades lúdicas como modelagem em argila, jogos e, principalmente, pinturas, que P. se expressava. Nota-se também como estas atividades proporcionaram a P. uma possibilidade de inserção no mundo das pessoas tidas como “normais”. À mãe, além de auxiliar no estabelecimento de papeis, proporcionou uma fonte de sustento financeiro e um suporte que a auxiliou no período da internação.
Apresentação:
Cada vez mais se vê adolescentes em internações psiquiátricas pelas mais diversas psicopatologias e, raramente vê-se alguma espécie de tratamento específico á esses jovens.
Com essa pesquisa pretendo demonstrar que essas internações podem obter um maior sentido com a inclusão de atividades lúdicas no tratamento. Torna-se indispensável também analisar o que é a doença mental enquanto fenômeno culturalmente construído, ou seja, que discursos permeiam esse cenário e que efeitos eles produzem nos sujeitos. Algum outro objetivo se pretende alcançar, como descrever o que é esse período tão tumultuado chamado adolescência, além de suas características; bem como a adolescência psicopatológica, dentro de uma visão sistêmica. Por último então tentarei demonstrar como as atividades lúdicas auxiliam no tratamento de adolescentes psicopatológicos, tanto neuróticos quanto psicóticos, bem como as famílias desses jovens.
Apresento então um estudo de caso que ilustra a fundamentação teórica por mim utilizada realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre durante meu estágio no Serviço de Recreação Terapêutica.
1 Fundamentação teórica
1.1 Doença Mental: Seus Discursos e Efeitos
“Aquilo pelo que o louco torna-se louco, isto é, também aquilo pelo que, a loucura não sendo ainda dada, ele pode se comunicar com a não-loucura [...] ele escapa a si mesmo e a sua verdade de louco resumido-se numa região que não é nem verdade nem inocência, com o risco da falta, do crime ou da comédia [...]. A loucura só é possível a partir de um momento um distante, mas muito necessário, em que ela se arranca a si mesmo no espaço livre de sua não-verdade, constituindo-se com isso como verdade”. (FOUCAULT, 1972, p. 507)
Foucault (1972) em sua obra “A História da Loucura” analisa historicamente como nasceu o discurso psiquiátrico hoje imperante, demonstrando como foi se configurando como um problema de razão, de moralidade, de normatização e de disciplinarização
Na Idade Média, os loucos vagavam livremente pelas cidades e pelos campos. A loucura ainda não era um problema social. No século XVII ocorre surgimento das primeiras instituições que deles se ocupariam sendo locais de assistência, dos quais a medicina não se ocupava. No século XVIII, contudo, o discurso médico tratou de se ocupar dos loucos, ocorrendo então o “nascimento” da doença mental, outorgando-lhes o título de doentes mentais, sendo feita então uma distinção entre loucura e “erros morais”. A loucura passa a ser doença mental e caracterizada como um “fenômeno que se passa dentro do próprio sujeito” (FISCHER, 1999, p. 45). Inicia-se a produção de uma verdade sobre a doença.
“O grande médico do asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelim – é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela têm, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua verdade exerce sobre o próprio doente” (FOUCAULT, 1997 p.122)
Pode-se questionar se ela – a doença mental – não é o próprio “hospital” que implica uma forma de controle onde o sujeito não consegue na doença um fenômeno cultural. (MELLO, 2002). Ou seja, até que ponto não é o próprio hospital, com seus padrões de normatização, de vigilância e esquadrinhamento, que produz a doença mental!?
Por certo que existe a doença mental, o que se questiona aqui é o sentido que a loucura, ou a doença mental tem na vida dos sujeitos, ou muito mais, nas diversas instâncias sociais que atravessam e perpassam o cenário contemporâneo.
No período renascentista havia as famosas Stultifera Navis, ou a Nau dos Loucos, uma espécie de barco que navegava entre uma cidade e outra, com inúmeros loucos ali “perdidos”, confiados a marinheiros que se ocupavam do “destino” destes sujeitos.
Parafraseando Focault, pergunto se esta Nau dos Loucos existiu somente no período da Renascença. Será que hoje ainda não encontramos essas Naus?
Metaforizando penso que essas Naus hoje se figuram nas atuais internações psiquiátricas, pois seria incorreto compará-las ás internações passadas. A Nau dos Loucos e a Internação psiquiátrica atual contêm intenções muito parecidas. Talvez a maior delas seja de proteger o louco – ou o doente mental – dele mesmo! Tanto na internação quanto nas Naus, ele é colocado no interior do exterior e inversamente.
Nos dois casos, há um caráter de exclusão e de enclausuramento. De tornar invisível àquilo que é visível. De esconder o que não pode ser escondido. Principalmente, de mascarar aquilo que está posto.
Enfim, é certo que existam doenças mentais que provocam dor e sofrimento, mas também é certo que existe um discurso socialmente construído que permeia esse cenário, e seus efeitos, ainda são devastadores. Discurso produzido culturalmente e tomado como um regime de verdade.
1.2 A Adolescência.
A adolescência é uma fase, na vida do ser humano, extremamente complexa. É onde conflitos são reeditados e onde surgem outros novos. É uma fase de descobertas, incertezas, angústias e alegrias. Também uma fase de brigas, muitas delas internas e externas. Período também de importantes aquisições e intensas perdas, principalmente um período de alterações físicas e emocionais e de perda da congruência entre o conceito que o adolescente tem de si mesmo.
Contudo não se pode perder de vista que a adolescência também foi produzida culturalmente. Existe um fenômeno biológico (que pode ser definido como puberdade) durante este período, mas os acontecimentos subjetivos ocorrem devido a forma com que as sociedades ocidentais se organizaram. Obviamente não se pode ter uma visão estruturalista ou teleológica deste fato, sendo que este período é cambiante, móvel.
Podemos começar a falar sobre adolescência (enquanto fenômeno cultural) no âmbito de sua imagem corporal: Imagem essa que está intimamente ligada à inscrição feita pelo Outro no imaginário. Quando somos crianças precisamos dessa demanda do Outro para podermos nos constituir como sujeitos, ou seja, necessitamos dessa inscrição no imaginário, estar preso à demanda (aos desejos, às vontades, ao ego) desse Outro para que possamos formar nossa identidade. E isso acontece no momento em que conseguimos agressivizar essa relação descobrindo que o corpo (meu) não esta aí só para o prazer do Outro, mas para o prazer próprio também. Esse processo vai até o fim do Édipo, onde então, (nos sujeitos tidos como “normais”) essa incessante busca pelo reconhecimento do Outro é apaziguada. Na adolescência, esse processo volta com força total, pois é nesse período que reeditamos todos os conflitos (inclusive este) da nossa infância (1ª.). Se, na infância estamos construindo uma imagem, na adolescência precisamos reconstruí-la, desconstruindo-a. Na imagem da criança estão presentes a onipotência, a dependência, o prazer das vivências parciais da sexualidade e os vínculos edipianos em seus vários níveis de satisfação. Na adolescência, todas essas características precisam ser desconstruídas para poder ser construída, então, uma imagem adulta real. Desta forma, o jovem sofre com a perda dessa onipotência, tendo que elaborar uma “castração simbólica, ou seja, poder perder as relações infantis e iniciar sua reconstrução num mundo de sujeito, de portador de sua própria independência e vontade, sem que a perda se configure num ataque real ao corpo” (RAPPAPORT, 1981, p. 17) para se firmar como sujeito. Essa castração simbólica engloba a sexualidade, a separação dos pais (geralmente intermediada por ídolos), bem como o luto dos pais da infância, do corpo infantil e da identidade e papel infantil. Trata-se aí, da recusa do mundo adulto e da tentação da regressão até a fascinação última do retorno ao seio materno e do adormecimento mortal. O mal-estar da adolescência vem da separação, da ruptura, da quebra. É um trabalho de luto. (CORDIÉ, 1996).
Knobel (apud RAPPAPORT, 1981) confirma a adolescência como semipatológica e descreve, então, a “Síndrome da Adolescência Normal”. Sintetizando suas características surge:
Busca de si mesmo e identidade; Tendência grupal, Necessidade de intelectualizar e fantasiar; Crises religiosas (desde o ateísmo até o misticismo); Deslocação temporal (pensamento adquire as características do pensamento primário); Evolução manifesta (auto-erotismo – heterossexualismo adulto); Atitude social reivindicatória (tendências anti-sociais); Contradições sucessivas em todas as manifestações da conduta (dominada pela ação); Separação progressiva dos pais; Constantes flutuações do humor e do estado de ânimo.
Para Bohoslasky (1971) a identidade é gerada sob três pontos: grupos, processos de identificação e esquema corporal e se traduz numa série de antíteses: o sentimento de quem se é e de quem não se é; quem se quer e quem não se quer ser; quem se crê que deva ser e quem se crê que não deva ser; quem se pode ser e quem não se pode ser; quem se permite ser e quem não se permite ser, da totalidade das quais surgirá, ou não, uma síntese.
Sobre a questão, coloca Knobel: o sentimento de identidade implica a noção de um ego que se apóia na continuidade e semelhança das fantasias inconscientes referidas primordialmente às semelhanças corporais, às tendências e afetos em relação aos objetos do mundo interno e externo e às ansiedades correspondentes ao funcionamento específico em qualidade de intensidade dos mecanismos de defesa e ao tipo particular de identificação assimiladas, resultantes dos processos de introjeção e projeção. (1992, p. 32).
A demanda do adolescente à família é paradoxal: “compreendam-me sem me entender, não me façam perguntas, mas respondam-me e não me peçam nada”. (CORDIÉ, 1996, p. 199).
Para poder, então, constituir uma identidade própria, o adolescente “rompe” com seus pais e tudo que lhes diga respeito, num nível mais superficial, ou seja, aparentemente, pois um adolescente “normal” retém a capacidade de descrever em profundidade as pessoas mais importantes de sua vida, inclusive seus pais [...] têm interesses sociais e culturais, sistemas de valores e ambições intelectuais que vão além de necessidades narcisistas imediatas. (KERNBERG, 2000, p. 34).
Com essa busca desesperada por uma identidade própria aparece então, um sentimento peculiar chamado alienação. Kernberg (2000) afirma que a crise de identidade do adolescente é uma perda da correspondência entre um senso subjetivo e identidade do ego e o ambiente psicossocial objetivo, sendo o sentimento da alienação parte desse processo (normal) no adolescente. O grupo se torna um “suporte” para o adolescente conseguir construir sua identidade, pois a uniformidade de um grupo proporciona a segurança de se saber que é. Knobel (apud RAPPAPORT, 1981) diz que há um processo de super-identificação maciça, onde todos se identificam com cada um, além de terem normas e costumes próprios muitas vezes em completo desacordo com os padrões adotados pela família.
1.2.1 A Psicopatologia na Adolescência
Osório (1982) propõe que a psicopatologia na adolescência existe quando, nos sintomas, há: intensidade, persistência, significado regressivo e polimorfismo sintomático. Ou seja, basicamente o que diferencia um adolescente normal de um adolescente com psicopatologia são essas quatro variáveis, porém não se pode perder de vista a importância do contexto cultural e social no qual o adolescente está inserido. A ênfase aqui, entretanto se dará sob uma perspectiva dinâmica.
Contudo, um fator de extrema importância que merece atenção é a família deste adolescente, pois este, quando adoece psiquicamente na grande maioria dos casos reflete toda uma sintomática familiar. Se, a descrição da psicopatologia pode ser assim resumida, a etiologia destas não. Por certo que existam outros fatores como pré-disposição genética, falhas neurológicas, condições sócio-econômicas etc. que influenciam na manifestação (ou não) da doença, mas geralmente este púbere representa a ponta de cima de um iceberg.
Como se sabe, um iceberg encontra-se com sua maior parte submersa no oceano e, apenas um pequeno fragmento emergido, cujo qual está exposto a todas as interperes da natureza. Porém, quando se olha para o iceberg, enxerga-se somente este fragmento e não raro este é tomado como sendo o iceberg inteiro. Para conseguir olhá-lo como um todo, deve-se enxergar além do que se vê, ou seja, olhar além do que está posto. Com o adolescente psicopatológico é assim que funciona. Ele é somente este fragmento que sofre ao mesmo tempo em que protege e sustenta toda uma família desestruturada. Protege porque enquanto ele é foco do problema, o que está submerso não precisa emergir! Sustenta porque na grande maioria das vezes, a doença vira gozo.
Essa questão familiar envolve tanto a estrutura neurótica quanto a estrutura psicótica. Nesta última, porém, não é raro acontecer o primeiro surto durante a adolescência. Quando isso acontece, ocorre que o sujeito já tinha uma estrutura psicótica e que pela pressão que a adolescência impõe de “se abandonar uma estrutura que funcionava até aí e colocar-se frente à outra realidade” (CORDIÉ, 1996, p. 202), esta se manifestou.
Crianças com uma estrutura psicótica podem crescer sem que isso apareça, por exemplo, crianças dóceis e obedientes, sujeitadas ao desejo e a demanda do Outro, que repetem a fala dos pais (e estes se orgulham disso!!), porém não conseguem separar-se da mãe, ou até mesmo brincar de faz de conta. Até então, a falha não aparece.
Ele (o psicótico) “aprendeu” a ser como todo o mundo, ele se construiu um tipo de eu fictício fabricado a partir de identificações em espelho nos quais é freqüente encontrar um pequeno outro que faz a função de duplo. Lacan salienta que a perda desse duplo (o que geralmente ocorre na adolescência) pode ser a origem de um surto psicótico. (CORDIÉ, 1996, p. 206)
Enfim, em todos os casos de psicopatologia adolescente – desde as mais brandas, às mais severas é indispensável o tratamento também da família.
1.3 O Lúdico no Tratamento Psiquiátrico
Por certo que o brincar – especialmente o espontâneo – é por excelência possuidor de um valor terapêutico, principalmente na constituição do sujeito enquanto tal. A simbolização e a capacidade de brincar surgem com o interdito paterno, ou seja, através da Lei, da metáfora paterna. É por isso que a criança psicótica não brinca, ou melhor, não simboliza, não é capaz de “fazer de conta”, pois a metáfora paterna está foracluída. A importância do brincar é, sem dúvida inquestionável à constituição do sujeito desejante. Com relação à adolescência, penso que a atividade lúdica neste período é igualmente importante. Se partirmos da premissa que “a crise da puberdade golpeia com suas repercussões, todo e absolutamente cada um dos níveis prévios de estruturação subjetiva, retomando-os, deslocando-os para outro nível, para outro patamar do desenvolvimento simbólico” (RODULFO, 1990, p. 136), o lúdico ou o brincar aqui novamente fazem-se necessários.
Um exemplo a ser dado é o próprio “fort-da”. Na puberdade, este é ressignificado. Se, o bebê brinca de estar perto e estar longe de seu carretel para dar conta da angústia causada pela separação do grande Outro, na adolescência este entre-jogo reaparece no registro do par familiar/extrafamiliar. Ele desaparece e aparece não somente em relação à família, mas a todas categorias familiares que organizavam sua vida no simbólico. A identificação com grupos de iguais e as atividades desempenhadas por estes são um exemplo desse desaparecimento e aparecimento em relação à família (RUDOLFO, 1990). É um grande passo em direção à independência, sendo esta possível somente através da dependência e posterior internalização desta.
O adolescente está num período que não é a infância e não é a fase adulta, ou seja, ele está em um entre-lugares. Para eles, a brincadeira enquanto tal já não tem mais sentido – até porque ele precisa elaborar o luto de perda de infans - bem como as coisas da vida adulta ainda lhe parecem um tanto distante. O que ocorre é que, “todas as coisas que parecem povoar o espaço da vida do adulto (trabalho, política, decisões e escolhas), a adolescência as toma e as torna suas, o que produz uma mutação nelas, sutilmente penetradas, enquanto brincadeiras, pelo processo primário”. (RODULFO, 1990, p. 139).
Jerusalinski diz que a dialética entre o brincar e a realidade é que “a realidade está no que se brinca, mas não que o que se brinca está na realidade” (1999, p. 47) e esta afirmação aplica-se também a adolescentes. Este, quando brinca, também promove uma certa dilatação da borda do Real, tornando-o mais próximo do Imaginário o do Simbólico, além de gerar um espaço onde aparecem elementos como o Objeto Transicional (significante da falta do Outro) e o Outro encarnado, afinal, durante este período, não deixa de haver uma incessante busca de reunificação sob algum significante. Antigas funções são colocadas agora, em outro nível. “Assim como uma criança [...] narra, com desenhos ou brinquedos, sua vida imaginária, com todas as suas alternativas, o adolescente o faz extraindo, arrancando semas e mitemas das jazidas ideológicas do adulto.” (RODULFO, 1990, p. 138).
Adolescentes neuróticos de uma forma geral costumam apresentar este quadro. Brandas ou mais severas, as neuroses nos adolescentes apresentam significativa melhora com a inclusão do lúdico no tratamento. Justamente porque o brincar visa “buscar o eu (self) por meio de suas experiências criativas” (NETTO, 2002, p. 20), alguns jovens preferem pintura, outros modelagem, outros jogos de tabuleiro, bem como peças de montar/encaixar, “playmobil”, sucata, desenho, recorte e colagem, quebra-cabeça, entre tantas outras opções. É notório como o lúdico é capaz de auxiliar no tratamento destes sujeitos, pois por via do processo secundário, atuam no processo primário auxiliando na (re)organização de algo que não está bem. Há uma gama de atividades que podem ser oferecidas ao paciente, e o que não se pode perder de vista é que ele deve ter o direito a escolha. Cada paciente é único, e conseqüentemente, o manejo com cada um também deveria ser. Logicamente, é preciso um pouco de bom senso na questão da escolha da atividade, por exemplo, se o adolescente “escolher” ficar o tempo inteiro na frente do videogame, a função terapêutica da recreação se esvai. A intervenção é necessária e muitas vezes, o jovem só “descobre” o prazer da atividade lúdica com alguém as propondo.
1.3.1 O Lúdico e a Psicose.
A descrição acima citada não se faz verdadeira quando temos um sujeito com estrutura psicótica, pois esta, não muda. A estrutura é fixa. A brincadeira, neste adolescente, jamais alcançara o nível de “fazer de conta”, pois nem quando a criança chegou algum dia a simbolizar. Sobre a questão da psicose, digo que por mais “controlada” que esteja a doença, certas atividades lúdicas jamais serão por ele desempenhadas. Por certo que atividades que exigem a lógica (ou melhor, o pensamento lógico-matemático) são excelentes a esses sujeitos, inclusive é uma grande contribuição que pode se dar para que o convívio na sociedade seja possível. Em casos de severidades patológicas, atividades possíveis são as referentes a trabalhos simples (como os próprios de uma casa; lavar louça, varrer, cozinhar etc.), bem como estimulação através de jogos com regras dança, música e até mesmo a pintura. Penso que a melhor forma de contribuir com a inclusão social destes sujeitos é através da atividade lúdica. Estas atividades não necessariamente são as chamadas brincadeiras simbólicas, pois é possível promover jogos, brinquedos e divertimentos a psicóticos, especialmente àqueles que tem um grau “mais leve” da doença.
Jogos com bolas, “resta-um”, diversos jogos de tabuleiro, xadrez, pintura, desenho, entre outros são alternativas que podem ser oferecidas. Essas atividades se tornam terapêuticas a partir do momento que se tenha alguma intenção com elas.
Ao se propor desenhos a estes jovens, por exemplo, temos em mente tentar fazer com que alguma coisa do Real se ancore no simbólico, para que um sentido apareça em seus delírios. Dito em outras palavras, para que os objetos “a” que retornam no exterior como perseguidores (olhar, falar, ouvir etc.) possam vir a se tornar fantasmas.(Cordié, 1996)
Outra importante contribuição que o lúdico pode oportunizar ao adolescente psicótico é da “(re)descoberta” do que Lacan denomina de suplência, ou seja, uma atividade que contenha algum tipo de investimento passional por parte do sujeito. Quando “encontrada”, possivelmente (ou não) será repetitiva e estereotipada, sendo geralmente atividades de áreas que não tocam na posição subjetiva do sujeito, como por exemplo, a matemática, a física etc. Muitas vezes, é essa suplência que pode fazer com que o psicótico “brilhe” (CORDIÉ, 1996). A paixão mais modesta em nossos pacientes tem esse papel de suplência da função paterna que lhes permite uma base. Esse tipo de investimento que pode ir da defesa de uma causa humanitária a uma inserção banal no mundo do trabalho, contribui para fazer algo social e permite a esses sujeitos viver “como todo mundo” em uma comunidade humana que teria tendência a excluí-los. (CORDIÉ, 1996, p. 175)
1.3.2 O Lúdico e as Famílias do Adolescente Psicopatológico.
Concebemos o ato de brincar como esse espelho simbólico (e não simplesmente imaginário) que transforme o grande em pequeno, o pequeno em grande, a criança em adulto, os pais em pequenos, as crianças em pais, o traumático em dramático, o medo dos monstros em personificar (corporificar) os monstros do medo, o sofrimento corporal em uma cena de ficção. (LEVIN, 1997, p. 255).
Quando um adolescente interna em um hospital (geral ou psiquiátrico) por alguma psicopatologia, geralmente a doença está em tal grau de descontrole que a convivência entre os membros da família fica extremamente comprometida. Jerusalinski (1999) diz que a internação é estação final da doença mental.
Em se tratando das neuroses, novamente cito aqui a metáfora do Iceberg, onde o adolescente doente é a ponta emergida e a família, todo o restante, submergida. Cada família possui a sua história, os seus significantes, os seus mitos familiares que formam inscrições, que subjetivam cada sujeito de uma maneira, que estruturam cada sujeito de uma forma. A neurose que envolve cada família acaba por eclodir no adolescente. Este, tido pela família como “bode expiatório”, acaba por acatar essa demanda, agindo e atuando enquanto tal. A questão aqui colocada em pauta é: adianta tratar o adolescente e não a família, sendo ele representante de toda uma problemática familiar? Penso que enquanto o adolescente estiver nesse período e morando na mesma casa que seus pais, a resposta é não. Não porque o adolescente pode vir a melhorar no período da internação, mas ao retornar, pode vir a piorar. Não adianta tratar só sintoma, pois a causa continua lá. E se um sintoma desaparece, outra possivelmente irá aparecer. Talvez por isso se veja internações que promovem um resultado satisfatório e o paciente acaba por re-internar no hospital, às vezes com os mesmos sintomas, às vezes com estes deslocados.
Nas internações psiquiátricas infanto-juvenis no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a mãe do adolescente, praticamente interna junto com ele. E, sem receber atendimento médico, muitas vezes a recreação terapêutica e a atividade lúdica são o único recurso disponível a ajudá-la. Ajudá-la naquilo que se vê e se diz, e naquilo (e principalmente naquilo) que não se vê e não se diz.
Não raro, nos defrontamos com casos de adolescentes que jamais sofreram qualquer tipo de interdito (ou tiveram “limites”) incluindo o interdito da Função Paterna em que o discurso parental segue relativamente um certo padrão. Estas mães (e pais também) costumam dizer que “é impossível controlar esse guri/guria” ou então, “eu não posso com ele/ela”. É sabido que uma criança que “faz o que quer”,
se vê proibida com um pseudo-poder que não lhe pertence e fica sem saber o que fazer, pois atrás de uma atitude desafiante de agressividade e rebeldia é comum descobrir uma criança confusa e perdida como se quisesse dizer, através destas atitudes, para que os adultos a sua volta a controlem para que assim se sinta protegida. É como se a fraqueza dos adultos em não conseguir sustentar um “não” os torna inaptos para a tarefa de proteção. (SUKIENNIK, 1996, p. 56).
E como já foi dito, o adolescente está reeditando todo esse conflito infantil.
É, na recreação que, muitas vezes, estes pais começam a perceber a importância de um não ao seu filho, através de simples atividades lúdicas com a recreacionista impondo o limite ou o próprio jogo impondo este limite. Aliada à psicoterapia, as brincadeiras na sala da recreação promovem a progressiva melhora do púbere, deixando estes pais muito mais auto-confiantes. Logicamente, estas atividades inicialmente são feitas separadamente por mãe e filho, mas é de fundamental importância que progressivamente, estas atividades sejam desempenhadas conjuntamente. Os próprios vínculos afetivos estão abalados quando se chega na internação e, atividades desempenhadas em conjunto reforçam estes vínculos.
Contrariamente, pais que demonstram estar “saturado” de seus filhos e não conseguem enxergar nada de positivo nele, criticando-o o tempo inteiro, muitas vezes, é na recreação, que este quadro se inverte. No momento em que o adolescente começa a receber um reforço positivo pelas atividades que ele desempenha (que pode ir da mais simples a mais complexa), os pais começam também a enxergar este “outro lado”. Através do estímulo e do incentivo da recreacionista para que este jovem “brinque”, e da interação desta nas falas da mãe, demonstrando a ela que seu filho também tem “coisas boas” é que os vínculos afetivos voltam a se (re)estabelecer.
2 Metodologia
A presente pesquisa, de cunho qualitativo foi feita em forma de estudo de caso.
Foi utilizada a técnica de observação direta intensiva, participante.
Os instrumentos utilizados foram observações, análise de documentos (prontuário) e conversas informais. A pesquisa foi feita com uma paciente de 14 anos internada pelo serviço de psiquiatria da infância e da adolescência do HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre).
3. Análise dos dados: Estudo de Caso.
Demonstrarei neste estudo de que forma a atividade lúdica é capaz de contribuir no tratamento psiquiátrico de uma adolescente, além de abrir uma possibilidade à inserção do mundo das pessoas tidas como “normais”. As atividades lúdicas contribuíram também a mãe desta paciente, pois além do estabelecimento de uma relação dual, proporcionaram uma descoberta de potencialidades manuais capazes de contribuir no sustento da família
O CASO: P. T. S. é uma menina de 14 anos, solteira, procedente de Alvorada – RS que chegou ao hospital no dia 21/07/2003. Veio encaminhada pelo HPV (Hospital Presidente Vargas) por impulsividade, agressividade e ideação suicida. O objetivo da internação: investigar transtorno do humor. Seus problemas atuais e ativos são: história de episódio depressivo psicótico, mau desempenho escolar, descontrole de impulsos, retardo mental leve e situação sócio-familiar complicada. Mora com a mãe A. (32) e com três irmãos (11, 10 e 8), filhos de uma segunda relação da mãe. No mesmo terreno mora a avó materna (46), tias maternas (15, 9 e 5), um tio e a bisavó (80). P. não conhece o pai (e vice-versa), pois A. engravidou com 16 anos de um amigo do noivo. A. não “notou” que estava grávida, descobrindo quando a bolsa rompeu-se. Quando P. tinha dois anos, A. uniu-se a um companheiro (com teve 3 filhos), que agredia fisica e verbalmente a ela e a P. Há mais ou menos um ano separou-se deste companheiro.
HISTÓRIA PREGRESSA: Na 4ª. Série começou a fazer desenhos e falar sobre morte, diabo etc. As queixas da escola eram freqüentes (P. era “desligada”). É agressiva com os irmãos, ameaçou se matar com uma faca agride a mãe e esta bate nela (inclusive no rosto), A. não consegue controlá-la. P. não consegue organizar suas coisas, não quer tomar banho, nem pentear o cabelo. A. relata ainda episódios de risos e agitações. Ouvia vozes chamando seu nome, é desconfiada, envolve-se em brigas. Tem urinado na roupa, mente e às vezes, rouba dinheiro em casa. Pinta coisas fúnebres. Iniciou atendimento no ano de 2002 em Alvorada (tratamento psicofarmacológico), sendo em seguida encaminhada ao HPV, por uma tentativa de suicídio em abril de 2003. A. a leva “por conta própria” ao HSP (Hospital São Pedro) onde passa somente uma noite (A. denuncia maus-tratos à outros pacientes).
Continua atendimento ambulatorial ao HPV e em julho acorre a internação no HCPA.
A INTERNAÇÃO: No HCPA, a internação de adolescentes com transtornos psiquiátricos se dá no 5º. andar, ala sul. É uma unidade aberta que também atende pacientes da hematologia. O atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar onde estão presentes os seguintes serviços, sendo que cada um deles conta com um ou mais profissionais e estagiários: Psiquiatria da Infância e da Adolescência; Nutrição; Enfermagem; Clínica de Adolescentes; Serviço Social; Apoio Pedagógico; Psicologia; Recreação Terapêutica.
As decisões são tomadas em conjunto em reuniões semanais onde todos os serviços participam. A recreação terapêutica localiza-se no 8º. andar desta instituição e é destinada não só aos pacientes da psiquiatria, mas também á pacientes crônicos, cirúrgicos e clínicos. A cada um destes pacientes, os objetivos da Recreação são diferenciados. De modo geral, pode-se dizer que esta tem como objetivo principal tornar a internação menos traumática ao paciente, contribuindo na humanização hospitalar.
Em primeiro momento, P. está lúcida (porém extremamente sonolenta), triste, com humor deprimido, com juízo crítico um pouco prejudicado, não aceitando a internação, ameaçadora e manipuladora com a mãe. A. mostra-se ansiosa e deprimida. Estava impregnada com a medicação, sendo a subida à recreação liberada no dia 21/07/2003, à tarde.
Conheci P. no dia 22/07/2003 pela manhã. Meu primeiro contato com ela foi satisfatório, estava com uma tia materna, a mãe havia ido para casa “resolver problemas”. Perguntei a ela o que gostava de fazer e o que não gostava, dizendo que nós não a obrigaríamos a fazer algo que não gostasse. Por saber de sua internação no HSP (Hospital São Pedro), tentei fazer com que P. adquirisse confiança na equipe, além de tentar estabelecer um vínculo, pois acredito que em nossa prática, é fundamental que se construa um vínculo com o paciente. P. estava “lenta” e praticamente não sorria ou mesmo respondia aos meus questionamentos (estava com excesso de medicação), disse-me apenas que gostava de pintar. Quase não olhava em meus olhos, porém mostrou-se uma menina meiga, com um belo sorriso. Permanecia sentada com a tia ou a mãe e, se não a chamássemos para participar de algum jogo, alguma atividade ou até mesmo uma roda de bate-papo, ela não o fazia. Demonstrava uma enorme insegurança e dificilmente P. olhava nos olhos das pessoas.
P. não demonstrava preocupação com a aparência e, por mais de uma vez foi a recreação sem tomar banho, com os cabelos desalinhados, vestindo o que quer que fosse. Até mesmo de pijama P. chegou a ir à sala. Os dias foram passando e a psiquiatra responsável por ela estava, gradualmente, diminuindo a medicação. P. foi ficando mais alerta e começou a pintar com tinta têmpera na recreação. Pintava desenhos sombrios onde predominavam tons escuros. (Fig 1; Fig 2)
No dia 31/07/2003, a medicação foi suspensa quase que completamente e, neste período P. mostrava –se muito mais alerta. Sorria, conversava com nós e também com alguns outros pacientes na sala, porém sempre com a cabeça baixa. No mesmo período, A. mostrava-se muito ansiosa e deprimida. A médica de P., inicia então o tratamento psicofarmacológico com anti-depressivos. Na recreação, A. iniciava alguns trabalhos manuais e abandonava-os antes mesmo de chegar a metade. P. mostrou-se uma menina com uma grande habilidade artísitca, porém sua auto-estima estava baixa e desvalorizava absolutamente tudo que fazia. Para ela, tudo estava feio, ou horrível e por algumas vezes, rasgou desenhos e pinturas. Era costume não assinar suas criações. Começamos então a propor outras atividades à P., como modelagem em argila, brincadeiras no computador e até mesmo algumas atividades manuais. Nestas últimas, P. não se doou muito, abandonando-a rapidamente. Mas no computador ela começou a “desenhar” com o Paintbrush (programa de computador) e, um dia, colocamos como proteção de tela do computador um desenho seu. P. mostrou-se orgulhosa, ao mesmo tempo que dizia ser horrível seu desenho. Ela também mostrou interesse por modelagem em argila, onde também mostrou-se habilidosa. Fez algumas peças, onde então, colocamos em cima do balcão da sala, para expô-las. Novamente, ao mesmo tempo em que demonstrava orgulho de enxergar suas criações “enfeitando” um ambiente, dizia-nos que eram horríveis. Além do enorme sentimento de desvalia e baixa auto-estima, P. comportava-se como uma criança, apresentando características e comportamentos próprios de uma infans. Neste período, deixou de pintar com motivos fúnebres, passou a pintar vulcões, vasos etc. No dia 06/08/2003, em uma reunião da equipe multidisciplinar do SPIA , decidimos então optar por uma espécie de “reforço positivo” destas habilidades artísticas. O serviço de psicologia havia terminado o teste de QI (Wisc), cujo resultado foi: QI total: 62 = retardo mental leve com potencial limítrofe. Na reunião, P. mostra-se mais alegre, responde aos questionamentos e sorri à equipe. No dia 08/08/2003, houve uma mudança no quadro médico e, outra médica assumiu o caso, o que deixou P. chateada, pois ela havia estabelecido um vínculo com essa médica. Neste período, P. passa então a agir de outra maneira, está eufórica, xinga a mãe, faz brincadeiras de muito mau gosto com a mãe ameaçando-a de inventar coisas a seu respeito. “Espalha” o boato de que a mãe queria “se deitar” com o secretário do posto de enfermagem. Começa a aparecer a dificuldade da mãe em impor limites à filha, tratando-a mais como irmã do que propriamente filha. Foram surgindo situações que exigiam da mãe algum posicionamento enquanto tal. No início, é nossa tarefa de intervir, demonstrando a A. que era possível impor algum limite. Porém, a proposta era que sem esquecer do afeto a mãe conseguisse intervir, assumindo o controle da situação, demonstrando o quão importante é A. assumir o papel que lhe cabe. A. então se queixava que não podia bater em P. no hospital e que ela aproveitava-se disso, por isso não conseguia “controlá-la”. Através da práxis lúdica, demonstramos que as palavras obtêm, na maioria das vezes, um efeito muito maior e mais positivo do que a violência física e que P. precisava tanto de afeto e de cuidados, quanto de contenção, porém era muito difícil A. posicionar-se como cuidadora, além de protetora, pois demonstrava uma necessidade de cuidado, talvez tão grande quanto de P. Acredito ser função nossa não ignorarmos um pedido deste porte a nós dirigido (inclusive verbalizado), sendo que tentamos então, proporcionar um espaço de acolhimento a essa mãe, sem jamais esquecer que o foco era a menina, mas A. também precisava de “ajuda”, pois era, tal qual P., desorganizada com suas coisas. Oferecemos a ajuda que nos cabia (através da atividade lúdica), fazendo com que A. percebesse a sua importância enquanto mãe à P., além de estimular e apreciar sua habilidade manual que era grande. Através do incentivo e da valorização de suas produções, conseguimos oferecer este espaço de acolhimento que A. necessitava. P. começa a pintar compulsivamente, chegando a quatro, cinco desenhos por turno (9:00 – 11:30 / 14:30 – 17:30). Mostra-se mais alegre na recreação, com alguns episódios de risos sem motivo aparente, uma coisa infantil, até pueril de sua parte. A. neste período já está tranqüila e inicia a confecção de bolsas de crochê. Compartilha experiências com outras mães (que também acompanham seus filhos internados pela psiquiatria) e no dia 18/08/2003 termina sua primeira bolsa, dando-a à P, que então passa a andar diariamente com esta bolsa pelo hospital. Neste período, a menina começa a questionar A. sobre seu pai biológico. A. decide telefonar para ele e contar a verdade. Na recreação, alternando períodos de euforia e depressão, P. em momento algum pedia qualquer material que fosse, esperando sempre que alguma de nós viesse oferecer. Dizia que “não queria incomodar”. Contudo, P. começou a olhar diretamente no olho de algumas pessoas e passou também a construir uma “amizade” com uma outra paciente que também gostava de pintar. Com essa menina, P. conversava e após algum tempo passou a convidá-la para fazerem atividades juntas, pintura principalmente. (Fig 3)
No dia 14/08/2003, foi feita uma combinação com P. e A.. A. deveria anotar todos os comportamentos inadequados que P. apresentava em uma lista para ser entregue e lido por A. no dia da reunião de equipe dia 15/09/2003. P. rasga esta lista.
Na recreação, P. mostrava-se carinhosa e mesmo com a imposição de limites, controlava-se, porém, no quarto com a mãe, “explodia” e a xingava.
No dia 19/09/2003, ocorre uma briga com P., A. e uma recreacionista, pois esta fez um comentário com os pacientes sobre o uso excessivo de material da sala de recreação. A. tomou o comentário como algo pessoal, dirigido à ela e à P. A médica comenta que P. ainda não consegue controlar impulsos.
Neste período A. implica muito com a recreação, dizendo que não mais iria à sala. Houve uma conversa, onde foi colocada a necessidade dela trazer material para ela trabalhar, pois o que havia na sala era para os pacientes. P. poderia continuar pintando, mas as linhas para suas bolsas ela deveria trazer. As coisas foram se acalmando e A. começou a trazer material para confeccionar suas bolsas.
A. então terminou mais uma bolsa, que iria dar a sua outra filha e P. arranca as miçangas que havia colocado de enfeite e diz que não quer que a mãe faça nada para os outros só para ela. A recreação intervém, demonstrando que P. não poderia agir desta forma, pois A. não era exclusiva dela. Através de exemplos lúdicos, p. começa a aceitar essa possibilidade
Neste momento, ela ouve “conselhos” de um outro paciente internado (desta vez um menino) e, pela primeira vez demonstra-se envergonhada de conversar com alguém do sexo oposto, dando a impressão de estar mais perto da adolescência do que da infância. Contudo, ainda havia a necessidade de P. desenvolver sua autonomia (principalmente através da valorização de seus desenhos), afinal, ainda era difícil a ela pedir qualquer material que fosse. Penso que esse fato demonstra uma grande insegurança estando relacionado à falta de Interdito do Outro (primordial – essencialmente).
No dia 20/08/2003, A. então liga para o pai biológico de P. e conta toda a história por telefone a ele, o que o deixa perplexo, sem acreditar, e exige um exame de DNA para comprovar a paternidade. P. fica muito feliz com essa notícia, mas continua exigindo atenção exclusiva da mãe. A. e P. começam a sentar juntas na recreação para “trabalhar”, mesmo que cada uma estivesse fazendo atividades diferentes e A. começa a perceber a necessidade de impor limites à P. Um corte nesta relação começa a se efetivar e A. passa a maternar P. Neste período P. pinta uma “história”.
No dia 25/08/2003 P. fez seu primeiro passeio (este dependia da lista de comportamentos de P.), foi até sua casa e recebeu várias visitas. Voltou muito contente, feliz por ter revisto a família e os amigos do “coral”. Aliás, foi neste momento que P. começou a falar sobre um grupo, demonstrando necessidade de pertencer a algum. Verbaliza que quando sair do hospital vai cantar no coral da Igreja “junto com seus amigos”.
P. havia criado um verdadeiro “acervo” de pinturas e decidimos então organizar uma exposição na sala de recreação. Começamos a selecionar alguns trabalhos de todos os pacientes que gostariam de participar. Pedimos então que separassem aquelas produções que mais lhes agradassem e no dia 30/08/2003 iniciei a organização desta. Colamos as pinturas e desenhos em cartolinas coloridas e as expusemos pela sala de recreação. Neste mesmo dia (sábado) P. recebeu a visita do grupo de amigos da Igreja. Quando a exposição estava totalmente organizada P. demonstrou orgulho e, pela primeira vez, não criticou nenhuma de suas produções, ao contrário, convidou sua médica e a equipe de enfermagem a irem visitar a exposição. Já demonstrava muito mais autonomia e quando sua médica foi a exposição, P. a guiou e explicou todas as obras ali expostas, inclusive as de outros pacientes.
Neste período P. começou a cuidar de sua aparência, tomando banho todos os dias, penteando os cabelos e até mesmo enfeitando-se com acessórios típicos da adolescência contemporânea. Da mesma maneira, passou a demonstrar interesse pelo seu vestuário, preocupando-se em “estar bonita”. Passou também a se maquiar usando gloss, rimel e blusch. Na exposição enfeitou-se, arrumou o cabelo, maquiou-se, sempre com a bolsa que sua mãe confeccionou. P. estava mudando. Seu sorriso continuava lindo, mas seu olhar estava mais maroto.
No dia 01/09/2003 P. demonstra a preocupações a respeito de sua sexualidade e parece começar a aceitar as mudanças corporais que lhe acontecem, parece também estar em busca da identidade sexual e do estabelecimento de relações amorosas. Fala sobre “esses assuntos” hora com interesse, ora com rechaço. Ainda tinha vergonha de falar sobre “essas coisas” e ri quando olha revistas em que aparecem homens em poses sensuais.
Os motivos de seus desenhos também mudam e o tema romance faz-se mais presente. As próprias figuras humanas estão mais “idealizadas”. (Fig 4)
As brigas com a mãe diminuíram, mas P. ainda a xinga com palavrões, contudo já a obedece mais. A. também está diferente, mais tranqüila, mais alegre, mais centrada. Vizualiza soluções para seus problemas, fato que há pouco tempo não acontecia. Parece estar se organizando e mostrando-se mais segura. Essa mudança reflete-se em P.
Dia 15/09/2003 estávamos em uma roda de bate-papo, cada paciente fazendo sua atividade, cada mãe fazendo sua atividade e P. demonstra preocupação em emagrecer (havia engordado muito pelas medicações). Diz que irá fazer um regime, que não comerá mais bolacha recheada, balas ou doces. Diz que vai “se cuidar”. Vimos o quanto P. evoluiu, estando com preocupações típicas da adolescência, talvez iniciando o trabalho de luto que esta fase exige, incluindo a (des)construção de uma imagem corporal até então presa ao Outro primordial.
Sua relação com A. também estava melhor (até porque a própria A. estava melhor) e P. já conseguia controlar seus impulsos. Suas brigas com a A. neste momento já não eram tão “infantis”, P. agora brigava para construir sua identidade, estava tentando firmar-se em um grupo, tentando separar-se “da mãe da infância”.
No dia 18/09/2003 P. passou a freqüentar a escola no turno da tarde (estava na 4ª. série) e, sente-se muito mal, pois os colegas implicam com ela dizendo coisas como “a morta voltou”, “a louca está aqui”, P. não responde às provocações, o que demonstra que está conseguindo controlar seus impulsos. Ela fica chateada com seus colegas, porém diz que irá fazer novos amigos.
Penso que a estigmatização de P. no âmbito educativo era muito grande, principalmente por sua passagem pelo HSP, mas ao descobrir que podia viver como uma pessoa “normal” e que tinha um talento incomum (a habilidade artística) P. tranqüilizou-se.
Neste período a alta começa a ser programada, e tanto P. quanto A. sentem-se inseguras, não querendo deixar o hospital. Nesta fase, demonstrar que elas poderão continuar “vivendo bem” se faz imprescindível. A recreação então, sugere a A. que monte uma pequena “loja” na sua garagem para tentar vender suas produções (tanto de P. quanto de A.). Até então, A. não tinha por objetivo vender seus trabalhos, porém era uma forma de ajudar, no sustento da casa (a situação sócio-econômica era muito complicada).
Neste período, P. em uma conversa com outros pacientes mostra-se interessada em pintar o cabelo de loiro ou de vermelho. Também queria colocar pircings no corpo. A. proíbe este último, mas diz que irá pensar se deixa ou não P. pintar o cabelo. P. reage dizendo que vai colocar, e A. sustenta o “não”. Ela finalmente estava impondo o limite que P. precisava. Esta não apresenta descontrole algum (nem mesmo no quarto), ficando apenas emburrada, como uma típica adolescente. P. continua pintando e com motivos mais românticos e mostra-se cada vez mais angustiada com a proximidade de alta. Alguns dias antes de ir para casa P. pinta novamente uma figura sombria, tal qual as que pintava no início da internação. Ela estava com muito medo de ir embora.
No dia da alta, peço a P. que pinte um desenho de “despedida”. (Fig 5) P. está muito triste com muito medo de sair do hospital e A. chora quase que a manhã inteira, também muito assustada (iriam embora logo após o almoço). Na hora da despedida, mais choro, porém afirmávamos o tempo inteiro que o lugar delas não era lá dentro, que elas tinham uma vida inteira pela frente e “iriam conseguir”. Ressaltamos que a vida agora ficaria mais fácil, pois A. também estava muito melhor. A convivência melhoraria também com os irmãos de P., pois ela estava melhor.
Fui então, até o quarto de P. despedir-me dela. Encontrei-a almoçando e quando fui abraçá-la, p. chorou muito, mas disse que sabia que “seu lugar é lá fora”. A. da mesma maneira chorava muito e, antes de sair do quarto, me entregou um de suas pinturas com uma dedicação. (Fig 6).
OBSERVAÇÕES: Nota-se, como P. refletia uma sintomática familiar, onde A. estava com sérios problemas. Essa sintomática, não diz respeito às condições sócio-econômicas (que podem influenciar), mas à desorganização familiar. A. mantinha uma relação simbiótica com P. e a internação proporcionou o estabelecimento de uma relação dual, o estabelecimento de papéis. P. foi se tornando uma adolescente durante a internação, abandonando a conflitiva infantil, bem como as semas da infância. P. passou de infans a sujeito.
A atividade lúdica foi essencial ao tratamento de P., pois ela se expressava através de suas pinturas. Estas eram carregadas com suas angústias, seus medos, suas frustrações e suas alegria. Estas atividades também proporcionaram uma possibilidade de inserção a P. no mundo das pessoas tidas como “normais”. Em relação a A., proporcionaram uma fonte de sustento financeiro, além de um suporte que muito a auxiliou no período da internação.
Considerações Finais
Será que podem ser feitas considerações finais sobre este tema? Penso que esta pesquisa aqui se encerra, mas este assunto não pode ser esquecido ou ”guardado na gaveta” junto com esse trabalho, pois o que me fica são reflexões que todos que trabalham com a saúde mental dos sujeitos devem se fazer constantemente, afinal, lidamos com sujeitos, com histórias de vidas extremamente complexas (na grande maioria das vezes) que demandam uma grande disposição de nossa parte, um comprometimento e talvez (principalmente) um olhar desprovido de preconceitos, um olhar ao sujeito que está ali á nossa frente, não á sua “doença”, um olhar que seja capaz de se colocar no “de dentro”, para conseguir enxergar o “de fora”, como Foucault tão bem nos coloca.
A práxis lúdica envolve uma postura, um modo de ser, um modo de enxergar a vida e, através de uma teorização sobre o tema e de um estudo de caso espero ter conseguido demostrar o quanto se faz importante para o tratamento mental de adolescentes atividades deste porte. Neste caso aqui demostrado, a recreação tinha alguns objetivos - conforme anteriormente explicitado - , porém o que não se pode perder de vista é que cada paciente é único e nos traz demandas particulares.
Os pacientes e suas famílias quando chegam ao hospital estão fragilizados, e as atividades lúdicas contribuem para que uma organização se efetue, seja estabelecendo uma relação dual, seja reforçando vínculos. Muitas vezes é através dela que se consegue desconstruir a estigmatização destes sujeitos, possibilitando a inserção destes no mundo das pessoas tidas como “normais”.
Penso que é fundamental que se faça com que a internação tenha algum sentido maior do que o confinamento destes sujeitos, do que o isolamento de uma sociedade que (re)produz um discurso socialmente construído que permeia esse contexto da doença mental, e através de um forte referencial teórico aliado á observações empíricas me autorizo a dizer que as atividades com caráter lúdico são uma precioso auxílio no tratamento destes sujeitos.
Figuras
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Publicado em 18/02/2005 11:40:00
Nadja C. Kinzel - Graduanda em Pedagogia pela PUCRS, estagiária do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Serviço de Recreação Terapêutica.
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