Dionísio, o deus do teatro |
Comumente, entre nós, modernos, a palavra "tragédia" tornou-se uma aplicação costumeira para designar um acontecimento doloroso, catastrófico, acompanhado de muitas vítimas, ou ainda para descrever o desenlace de uma paixão qualquer que redundou num horrível assassinato. Para os gregos, entretanto, tragikós era outra coisa. A tragédia definia acima de tudo uma forma artística, ou algo que somente ocorria entre os grandes. Na visão de Aristóteles, um dos primeiros a estudar o impacto dos espetáculos teatrais, a tragédia seria "uma representação imitadora de uma ação séria, concreta, de certa grandeza, representada, e não narrada, por atores em linguagem elegante, empregando um estilo diferente para cada uma das partes, e que, por meio da compaixão e do horror provoca o desencadeamento liberador de tais afetos."
Aristóteles criou o conceito de catarse |
O centro do espetáculo teatral gira em torno do destino infeliz do herói, tema comum a maior parte das narrativas e das sagas antigas. Nelas ele é apresentado como uma figura radiante, um vencedor que está no esplendor da vida, usufruindo dos feitos das suas armas, envolto numa auréola de glória quando, repentinamente, vê-se vítima de uma alteração brusca do destino. Um acontecimento sensacional, terrível, sufoca as suas alegrias, conduzindo-o à desgraça, arremessando-o ao mundo das sombras. Assim é que Édipo é rei de Tebas, onde casou com a rainha viúva e com a qual teve quatro belosfilhos (dois varões e duas moças), quando tudo deu para desabar ao seu redor. Em outra peça, Agamemnon, o rei de Micenas, ao retornar para casa vitorioso depois de ter pilhado Tróia, sucumbe pelo golpe assassino de Cliptemnestra, sua mulher, e do amante dela. Prometeu, o titã que trouxe do Olimpo o fogo dos céus para os homens, banido, termina preso e encadeado no alto das montanhas do Cáucaso.
Agamemnon retorna para morrer |
Os poemas de Homero, tanto a Ilíada como a Odisséia, oferecem vários desses momentos de infelicidade pelos quais os grandes passam: o desespero de Aquiles quando perde o seu amigo Pátroclo num combate; o encontro de Ulisses com Aquiles na morada dos mortos; a desgraça de Heitor, o bravo guerreiro morto num duelo pela defesa da sua cidade; a humilhação de Príamo, o velho rei de Tróia, que é obrigado a suplicar a Aquiles pela devolução do corpo do filho. O objetivo do poeta porém não é exatamente o mesmo do autor dramático. Esses episódios da "Ilíada" e "Odisséia" fazem parte da narrativa geral cuja intenção é enaltecer a bravura e os feitos dos combatentes e não provocar a compaixão ou qualquer outro sentimento piedoso nos leitores ou ouvintes. Segundo Albin Lesky "a epopéia homérica é para a objetivação do trágico na obra de arte somente um prelúdio."
Orestes, o vingador (escultura de Simart) |
Para poder-se dizer que um espetáculo é uma tragédia é preciso que ele apresente certas características facilmente identificadas pelo público. Em primeiríssimo lugar, deve revelar a dignidade da queda. O herói é sempre uma figura reconhecidamente grande, importante, que consegue manter a integridade moral quando as coisas desandam ao seu redor. É pois, um estóico. Depois, há de verificar-se a importância da altura da queda, transmitindo a idéia da caída de um mundo de segurança e felicidade, que se vê ilusório, para as mais profundas das misérias. Queda, diga-se, que o herói deve aceitar em sua consciência. Não se entende como tragédia o caso da vítima ser alguém sem vontade, conduzido como se fosse um surdo-mudo para a desgraça, um marionete inconsciente dos deuses. E, por último, a tragédia resulta de uma falta absoluta de solução. Não há outra saída do que aquela determinada pelos acontecimentos que vão se descortinando frente ao herói.
Sêneca, o romano que compôs tragédias (tela de Rubens) |
A tragédia também tornou-se uma inspiração para a filosofia estóica que, desde os seus princípios, estava determinada a demonstrar os terríveis estragos que a paixão humana provocava. O sábio estóico Sêneca (4 A.C.- 65) serviu-se de peças com urdidura trágica como uma admoestação e advertência para mostrar o desespero que acomete aqueles que se deixam guiar por elas ao não saberem impor limites ao ardores do coração, submetendo-o aos poderes da lógica (esta, comumente, foi a interpretação da tragédia que chegou a nós no Ocidente com força bem maior do que aqueles que os grandes autores dramáticos da Ática lhe davam).
Para alguns autores cristãos a tragédia é um gênero que pertence exclusivamente ao mundo pagão. O cristianismo teria banido a tragédia por que ela simplesmente não se enquadra na idéia da alma pecadora que atinge sua redenção por uma graça de Deus, pois não há salvação nem perdão para o herói trágico. Ela, a tragédia, só seria possível na cultura pré-cristã que desconhecia os princípios do arrependimento e da absolvição, ou o gesto inesperado e miraculoso da graça divina (o artificio do Theos ex machiné, largamente utilizado por Eurípides, foi interpretado por muitos como um recurso teatral, não pertinente à essência da concepção grega da tragédia). Pode-se até conjeturar ter sido a própria vida de Cristo uma tragédia definitiva, uma catástrofe moral de tamanha dimensão que superou todos os possíveis dramas, não deixando espaço emocional para que nada mais pudesse emparelhar-se ao sofrimento do Salvador. A representação popular da paixão e do martírio de Jesus, que até hoje é encenada nos autos religiosos, inibiu para sempre a dramaturgia cristã.
Sabemos que os poetas da Grécia Antiga exploraram outros gêneros, tais como o drama satírico e a comédia, mas nenhum deles teve a transcendência alcançada pela tragédia, fazendo com que o espetáculo trágico fosse o que mais profundamente se enraizou na tradição cultural moderna.
Muitas das contribuições culturais que nos chegaram pela mãos dos gregos, tais como a Filosofia, a Geometria, a Pintura Cerâmica, a Arquitetura, a Música, a História, a Medicina, a Literatura Épica e Lírica, a Mitologia, etc., com certeza eram de origem Oriental. O mesmo, porém, não se deu com o Teatro. Se Pitágoras e Platão abeberam-se da filosofia e da geometria egípcia ; se Heródoto inspirou-se nas crônicas anatólicas, persas e egípcias; se mesmo Homero inspirou-se em narrativas épicas de outros povos, tal não pode dizer-se dos autores trágicos. A Tragédia é a mais pura criação da cultura grega antiga e, quando transplantada para outras culturas, não encontrou a mesma receptividade.
O teatro grego, um espetáculo de massas |
As encenações trágicas, tais como as conhecemos, tiveram início com a institucionalização da chamada Dyonissia, os "Concursos Trágicos", no governo do tirano ateniense Pisístrato (cerca 536-534 a.C.). Famoso por ter sido "hábil e bonacheirão", o autocrata rapidamente compreendeu a potencialidade política do Teatro, dele lançando mão para popularizar o seu regime. Sólon (668-559 a.C.), o mais famoso legislador ateniense, ao dar-se conta disso, certa vez abandonou em pleno andamento, uma representação que assistia em protesto contra a manipulação política das artes. O velho sábio, desiludido, retirou-se do teatro sentindo-se vencido.
Uma "persona" |
A organização das dionisíacas | |
Mês | Denominação da festa |
Dezembro | A Pequena Dionisíaca |
Janeiro | A Lanea |
Fevereiro | Anthesteria |
Março | A Grande Dionisíaca, celebrada após a procissão das Panatenéias, que duravam seis dias |
Em cada uma delas, concorriam apenas três poetas, escolhidos pelo Honorável Arconte, o patriarca da cidade. A inscrição era voluntária, cabendo ao autor apresentar três tragédias e um drama satírico, - uma tetralogia. Cabia ao Estado (Theorica) a premiação dos poetas e a manutenção, durante a temporada, do sustento dos hypocrites (os atores). Os integrantes do coro por sua vez eram mantidos por patrocinadores privados, em geral atenienses ricos que procuravam ganhar o respeito da sociedade e o reconhecimento público com a prática do mecenato. Feita a escolha dos três autores, o nome deles era submetido a uma votação por uma comissão de 500 juízes (50 de cada um dos demos da cidade) que colocavam o nome do seu preferido escrito numa pequena esfera que, depois, era depositada numa das dez urnas existentes no Pártenon. A obra daquele que foi indicado começa a ser representada a partir do horário matutino, sendo que as dos outros preencherão os dias restantes até que o festival se encerrasse. O poeta escolhido tinha o seu nome anunciado pelo heraldo e, em seguida, ele era coroado pelo Honorável Arconte com uma coroa de hera, a planta sagrada de Dionísio.
Sócrates, um inibidor da tragédia? |
Entende-se a época da Grécia Clássica como um dos momentos supremos da racionalidade humana, um dos poucos instantes em que imperaram as luzes em meio a um mundo de superstição, assustado pelas malignidades sobrenaturais. Essa interpretação, de viés iluminista, muito difundida até nossos dias, merece porém alguns reparos. Estes só foram possíveis graça à intensificação da pesquisa erudita e de uma maior seriedade científica na historiografia moderna (estimulada de certo modo pelas intuições do poeta Hölderlin e de Nietzsche). O resultado da "reavaliação" indica uma sociedade grega muito mais complexa, onde os elementos racionais também estavam acossados pelo assombroso, pela superstição, misticismo e medo do oculto. Pelo menos numa escala bem maior do que suspeitavam os historiadores iluministas e positivistas do século passado.
Daremos alguns exemplos de como conviviam dialeticamente esses elementos racionais e irracionais entre alguns pensadores e políticos do período clássico. Representativo é caso de Xenofonte que relata na parte final da "Anábasis", na qual ele aborda a importância dos rituais interpretativos (a análise das vísceras de um animal sacrificado) para decidir o destino da tropa que ele comandava, alertando os seus leitores para os perigos que incorrem aqueles que não observam os augúrios. Em nenhum momento esses discípulo de Sócrates pôs em dúvida a validade de tal tipo de crença.
O helenista suíço André Bonnard também mostrou essa ambigüidade do universo cultural helênico. Nem mesmo as escolas filosóficas escaparam de escorregadelas nas crendices populares. Demócrito, o filósofo atomista, levando ao extremo o seu materialismo, acreditava que o sangue das mulheres menstruadas servia com um perfeito antídoto contra os insetos devoradores de cereais. Temístocles, o consagrado herói da vitória sobre os persas, não hesitou em sacrificar vidas humanas aos deuses nas vésperas da vitória de Salamina (repetindo um ritual que em nada deveu aos praticados nos tempos arcaicos, quando o rei Agamennon, por exemplo, imolou a própria filha).
Apesar dessas pulsões do irracional (há um célebre ensaio do helenista E.R. Dodds sobre isso), foi inegável o impacto do pensamento racionalista sobre a sociedade grega em geral, ajudando-os a superarem o domínio dos mitos pelo domínio da razão. E aqui nos demoraremos para descrever sinteticamente como se processou esse fenômeno, dando-lhe uma origem material. No século V a.C., o século de ouro da cultura grega, ocorreu uma radical mudança no pensamento convencional, tributário do mundo místico-rural. A ampliação das relações econômicas dos gregos para regiões cada vez mais distantes fez com que o pensamento convencional, de origem rural, entrasse em crise. As cidades crescem e com elas a presença das classes médias aumenta. Nota-se por toda a parte uma descrença generalizada nos deuses homéricos. O filósofo Xenófanes ironizou a religião dizendo que "se os cavalos pudessem se expressar, criariam deuses feitos a sua imagem". As antigas escolas racionalistas-naturalistas (como a de Mileto) que discutiram exaustivamente a composição do mundo material, deram lugar, desde Sócrates, aos debates humanistas, que cuidaram então de determinar se os valores humanos (tais como o da idéia do bem e da idéia do belo) eram ou não permanentes. Com a expansão da democracia, questionou-se tudo. Os sofistas, mestres profissionais da palavra e do pensamento, emergem com vigor naquele mesmo século lançando dúvida sobre tudo aquilo que lhes parecia ortodoxo ou dogmático. Nesta polêmica embarcam Sócrates, o maior dialeta ateniense, e seu jovem discípulo Platão, que procuram erguer limites à avalanche dos sofista.
A polêmica foi tão intensa que afetou as artes cênicas. Tanto na comédia de Aristófanes como nas encenações trágicas de Eurípides verifica-se quão profundamente o espírito da desconfiança no que era estabelecido enraizou-se na população ateniense. O desafio dos sofistas ao pensamento convencional e à ortodoxia religiosa auxilia-nos a compreender a função que a Tragédia irá ocupar - a tarefa de voltar a agregar pela emoção violenta o que se desagrega na esfera das crenças. Para Nieztsche, porém, a desagregação que mais tarde iria ocorrer com a representação do trágico. que ele considerava a melhor expressão da vitalidade do grego, deveu-se ao espirito excessivamente inquisidor de Sócrates. Ao querer, o filósofo, saber a origem dos comportamentos morais, ao exigir, para todas as sensações, uma explicação lógica, ele teria inibido o espontaneísmo necessário à representação dramática. O socratismo teria sufocado a livre manifestação dos instintos básicos.
As encenações teatrais gregas derivaram dos cultos dedicados a Dionísio, o 13º deus do Olimpo, protetor das vindimas (que provavelmente originou-se da Ásia). Etimologicamente "Dionísio" significa o filho de Zeus (os romanos chamaram-no de Baco). Na época da colheita as comunidades rurais dedicavam ao deus festivo, cinco dias de folias ungidas com muito vinho, até provocar a embriaguez coletiva. Durante as bacantes, isto é, as festas dionisíacas, ninguém poderia ser detido e aqueles que estivessem presos eram libertados para participarem da festança geral.
Para entreter os participantes das festas bacantes, ajudando a passar o tempo, eram organizadas pequenas encenações, ora dramáticas, ora satíricas, coordenadas por um corifeu. Este torna-se um personagem chave na deflagração da encenação, apresentando-se como o mensageiro de Dionísio. Acompanhava-o um coro que tinha a função de externar por gestos e passos ensaiados os momentos de alegria ou de terror que permeavam a narrativa. O corifeu e o coro são os elementos básicos do Teatro, formam o ponto de partida da encenação que mais tarde assumirá algumas alterações bem definidas.
As Mênades em festa |
Antes de prosseguirmos na descrição dos espetáculos teatrais devemos fazer algumas observações sobre esse quase desconhecido culto a Dionísio, que penetrou subreticiamente na sociedade grega. Acredita-se que sua origem primeira veio da Trácia, sendo que as mulheres daquela região da Grécia foram suas principais adoradoras. Embriagadas ou simulando encontraram-se "possuídas", endemoninhadas, lançando sobre si cinzas e pó, as seguidoras de Dionísio refugiavam-se em locais ermos para, em contato com o ar livre e a natureza selvática, exorcizar a "possessão". Chamavam-nas de Ménades ou Bacantes e temos várias referências de grupos femininos que perambulavam pelas montanhas e bosques num estado de permanente frenesi, alimentando-se de ervas, bagas silvestres e leite de cabra selvagem. Segundo senso comum, Dionísio as alimentava. A origem psico-sociológica desse comportamento não foi ainda suficientemente avaliada, mas pode-se supor que derivasse de uma reação patológica à exclusão cada vez maior das mulheres da vida coletiva. O afastamento voluntário e a conseqüente entrega a um estado de possessão, seguidos de um tremor báquico, onde embriaguez e a devoração de animais se intercalavam, atuavam como uma terapia à sua crescente marginalização. Diga-se que essa bizarria não passou despercebida aos médicos e sociólogos gregos daquela época que a definiam como uma forma prosaica de loucura - o coribantismo. O atingido por tal loucura, excluídas as circunstâncias exteriores capazes de provocarem o fenômeno, via estranhas figuras, ouvia o som de flautas e caia num profundo paroxismo, sendo atacado por um furor irresistível de dançar. Portanto, o culto dionisíaco conservou, como um componente essencial, essas explosões imprevisíveis, anárquicas e passionais, que fizeram com que Nietzsche as identificasse como as autenticas manifestações de uma vitalidade aprisionada pela moral, pelo preconceito e pela razão.
Como não poderia deixar de ser, perante uma celebração tão subversiva dos costumes, houve enorme resistência por parte de reis e dos sacerdotes na aceitação do novo culto. A lenda, por sua vez, conservou o nome de Proteu, Rei de Tebas, que teria amargado um triste destino por ter-se oposto a ele. Com o decorrer dos tempos Dionísio tornou-se cada vez mais "respeitável". As festas dionisíacas transformaram-se num ritual cada vez mais organizado e disciplinado, recebendo uma cuidadosa atenção das autoridades civis e religiosas.
Apolo, o deus símbolo da racionalidade, da beleza e da inteligência, estendeu finalmente seus braços para Dionísio. Transpondo tal esquematização para a encenação teatral podemos afirmar que a Tragédia, como espetáculo, era a domesticação apolínea dos desregramentos de Dionísio. O Consciente dominando o Inconsciente; o Racional subordinando o Temerário; o Sol desvelando a Treva. Ao reproduzir frente ao público o inesperado, o passional, imaginava-se conter Dionísio, domesticando-o. Por isso entende-se a observação de Nietzsche que afirmou que os gregos foram obrigados a erguer dois altares na encenação teatral: um para Apolo e o outro a Dionísio.
Apolo, o sol, domesticador de Dionísio |
Acredita-se que o texto trágico resultou da evolução dos ditirambos (*) - as canções dedicadas a Dionísio. Surgiram, em seus tempos primeiros, sem nenhuma ordem, pois eram cantados por amigos embriagados que confraternizavam num banquete. Desde Aríon, o ditirambo passou a ser regularmente interpretado pelo coro, celebrando o começo da Primavera e a florescência das videiras, sendo alegres ou tristes conforme a disposição dos bacantes.
O texto trágico também resultou de um conjunto de outras expressões literárias, tal como a poesia lírica e a poesia épica. Quer dizer, quando a composição trágica começou a se constituir numa forma dramática de poderosa penetração popular, já havia uma longa tradição cultural cujas origens se perdem nos confins da história.
Por outra parte, muito se discute o conteúdo ideológico do texto dramático. Para muitos ele foi o veículo utilizado pela nobreza eupátrida para difundir os ideais agônicos (enaltecendo a importância da sophrosyne e da kalokagatia, o senso de medida e de equilíbrio, que compunham os ideais da vida aristocrática). Se, por um lado, é inegável a existência de um discurso calcado nos valores aristocráticos de honra, de sangue e de vontade, por outro, o texto dramático expressou o momento da perplexidade dos habitantes da polis, constitui-se numa complexa relação onde o passado (os dramas das famílias aristocráticas) inspirou a discussão coletiva das questões que atormentavam a comunidade no presente. Quer dizer, mesmo que a intenção dos autores fosse difundir o ethos aristocrático em meio a plebe urbana, o espetáculo trágico transcendeu tais limites, tornando-se uma força dramática coletiva.
Ésquilo nas "As suplicantes" apoia a aliança militar com Argos e nas "Euménides" discute o destino e a sacralidade do areópago, o tribunal dos magistrados da Polis, supremo poder judiciário dos gregos. Eurípedes tanto nas "Heráclidas" como em "Andrômaca" lança violentas farpas contra Esparta. No final das contas, não é o drama de Orestes ou os tormentos do Rei Édipo e de seus filhos que estão em jogo. Aquelas histórias eram apenas matéria-prima do autor trágico, a argamassa com a qual ele procurava moldar novas realidades. O que realmente lhes interessava era o destino da comunidade, o destino da Polis, que jazia oculto pelo manto ou pela armadura dos heróis. Não é em vão que a tragédia clássica apresenta tanto empenho em apresentar questões jurídicas, em crimes, em tribunais, em castigos e punições, revelando com isso todo o questionamento do indivíduo e suas relações com a comunidade. Todos os meandros jurídicos e éticos são espelhados nas tragédias como resultado das tensões da comunidade, tensões que derivam de fatores externos (a presença do imperialismo persa e da sempre ameaçadora Esparta) e internos (os conflitos entre os eupátridas e a plebe urbana).
O sucesso da representação trágica no século V a.C. deveu-se à agudização dessas tensões bem como da ampliação das perplexidades dos indivíduos, cujas ligações anteriores (com os phylai, com os deuses domésticos, com as velhas fidelidades e compromissos) entraram em crise.
Medéia, a mulher dos feitiços |
Atribui-se ao teatrólogo Tespis (cerca 536 a.C.) a criação de uma antagonista em relação ao coro, mas desconhecemos qual era a sua função original. Frínico (cerca de 512 a.C.), mais tarde, colocou em cena um ator representando vários papéis inclusive os femininos. Foi somente com Ésquilo que os principais cânones da encenação foram estabelecidos, a começar pela adoção de dois atores: o protagonista e o deuteragonista.
Para Buckhardt a limitação do número de atores na maior parte das representações teatrais deveu-se à questões de ordem técnica. Eram escassos os hypocrites que possuíam a voz sonora e a postura soberba necessária para tornarem-se audíveis, impondo sua presença para uma platéia que podia chegar até seis mil pessoas. O helenista H. D. F. Kitto refuta tal argumentação indicando que o número de atores, maior ou menor, devia-se às intenções dramáticas do autor. Com Sófocles deu-se a adição de mais um ator, o tritagonista, que, seguindo Kitto, entende-se, sociologicamente, como fruto da necessidade de refletir a dinâmica que o individualismo adquire na sociedade ateniense cada vez mais democratizada. É evidente que tal aumento da dimensão da individualidade refletia uma possibilidade dramática mais intensa, permitindo definir com mais precisão os conflitos de caráter, de personalidade e até das posições políticas de cada um. Basta lembrarmos de Antígona, de Édipo, de Orestes, de Prometeu, de Fedra, de Hipólito, e mesmo de Medéia, cujas caraterísticas pessoais fizeram com que se consagrassem como personalidades universais.
Com o passar do tempo verificou-se uma significativa diminuição da atividade do coro. Entendendo-se que ele representava simbolicamente a coletividade arcaica - vestígio da vida antiga marcada pelo coletivismo tribal - o coro ficoiu cada vez mais desfocado e deslocado na vida urbana. Hegel, o filósofo que dedicou notáveis observações em seus estudos sobre a tragédia, viu a crescente polarização entre o protagonista e o coro uma afirmação hipostasiada da relação social: o conflito entre o herói aristocrático e a comunidade plebéia. Esse enfrentamento favorecia e destacava dramaticamente o herói na medida em que ele era a exclusiva vítima de um destino ingrato e cruel, atraindo para si as atenções do auditório.
Parece que só em seu início a tragédia preocupou-se com a temática contemporânea. Frínico abordou a "Tomada de Mileto" em 492 a.C. e, como lembrou um assunto desagradável para os atenienses, ele foi multado em mil dracmas. O próprio Ésquilo iniciou sua carreira de vencedor dos concursos trágicos com a peça "Os Persas". Tudo nos leva a crer que abordar assuntos extraídos da atualidade trazia problemas para os autores, fazendo então que procurassem inspiração nos velhos mitos e lendas conhecidos por todos. Nesse sentido não havia originalidade, pois as histórias eram de domínio público. Esse é um dos aspectos que marcam a profunda diferença entre o teatro clássico e o moderno. Atualmente o público moderno é atraído pela novidade do enredo, que ser surpreendido. Para os atenienses, pelo contrário, eram os efeitos dramáticos que o autor obtinha extraídos de um velha e sabida história é que importavam e não o enredo. Isso explica por que temos, na mesma época, a mesma história teatralizada por autores diferentes, sendo que cada um ao seu modo, selecionava um aspecto específico da história, dando mais ênfase ao que considerava como o mais adequado aos seus propósitos dramáticos.
Na "Orestéia" de Ésquilo, por exemplo, Electra aparece como um personagem absolutamente secundário, apenas um elemento de reforço ao drama vivido pelo seu irmão Orestes. Com Eurípedes, Electra adquire outra dimensão, sendo a protagonista, a autora intelectual, da terrível vingança que levou sua mãe Cliptemnestra à morte, enquanto que o seu irmão Orestes, é visto apenas como o instrumento do seu ardil. Sabe-se que o público permitia algumas alterações na história original. Na lenda, por exemplo, Édipo não se cegou, morrendo tranqüilamente em seu leito. Sófocles, porém, deu-lhe o destino de um pobre cego, auto-exilado e abandonado por todos. De resto, o público ateniense sempre deu demonstrações de arraigado conservadorismo, o que explica o insucesso de Eurípides, o mais "avançado" de seus teatrólogos. A constância desse autor em problematizar abertamente o contemporâneo e apresentar às injustiças cometidas (basta lembrarmos as filípicas de Medéia contra os Homens em geral e o ideal do guerreiro em particular) fez com que ele fosse considerado pelos seus contemporâneos, apesar dos louvores de Aristóteles, como um autor menor (e um eterno derrotado nos concursos teatrais).
Máscara de um jovem |
O mapa físico do teatro grego |
O antigo teatro grego, construído sempre em forma circular devido ao simbologismo mágico e perfeito da circunferência, compunha-se de três grandes partes: 1) a Orquestra, em geral uma espaço circular bem em frente à platéia de onde o chefe do coro, o koriaphaios, dirigia-se aos presentes explicando o que iriam assistir; 2) o Proscênio (em frente a cena), a parte decorada do tetro, onde os atores (Hypocrates) faziam a sua encenação (divida em três entradas), onde os cenários se alteravam: 3) O Auditório, o Kolia, em forma semicircular que envolvia a orquestra e o proscênio. Era dividido em dois setores (Diazoma), sendo que o que estava mais próximo do espetáculo era chamado de Proedria, reservado às autoridades e aos convidados mais eminentes, e onde se sentava o mais honorável dos espectadores - o Elefthereos Dionyssos, o sumo sacerdote de Dionísio.
O espetáculo utilizava-se de uma série de recursos mecânicos para auxiliar o efeito dramático pretendido pelos poetas, destacando-se: 1) o Aeorema, era uma espécie de trapézio em que um deus (Theos ex machiné), era descido até o cenário para resolver uma trama aparentemente sem solução. Simbolizava uma espécie de chegada da justiça reparando os desacertos dos homens procurando estabelecer uma concórdia geral; 2) O Periactoi, eram dois pilares colocados nas extremidades do cenário que giravam ao redor de um eixo ajudando a mudar o fundo da cena; 3) O Ekeclema, uma plataforma suspensa na qual se colocava o corpo das pessoas mortas, porque nunca se representava em frente ao pública a morte ou o suicídio dos personagens.
O espetáculo utilizava-se de uma série de recursos mecânicos para auxiliar o efeito dramático pretendido pelos poetas, destacando-se: 1) o Aeorema, era uma espécie de trapézio em que um deus (Theos ex machiné), era descido até o cenário para resolver uma trama aparentemente sem solução. Simbolizava uma espécie de chegada da justiça reparando os desacertos dos homens procurando estabelecer uma concórdia geral; 2) O Periactoi, eram dois pilares colocados nas extremidades do cenário que giravam ao redor de um eixo ajudando a mudar o fundo da cena; 3) O Ekeclema, uma plataforma suspensa na qual se colocava o corpo das pessoas mortas, porque nunca se representava em frente ao pública a morte ou o suicídio dos personagens.
Uma persona, a máscara do ator |
Os atores, sempre homens, apresentavam-se com Personas, com máscaras, não revelando sua verdadeira identidade (daí serem chamados de hypocrites). A idade, o sexo, a importância social e o estado espiritual de cada personagem vinha, por assim dizer, "escrita" na máscara. Ela tinha que ter uma expressão (tristeza, alegria, pavor, etc..) claramente identificada pelo público, sem pairar nenhum dúvida sob qual tipo de emoção o personagem se encontrava dominado naquele
O apogeu da tragédia ocorreu num momento de extraordinária complexidade sociológica e histórica: o avanço da democracia e o declínio do poder político dos eupátridas, a transferência de fidelidade e compromissos dos indivíduos do clã para a polis, a descrença nos deuses tradicionais e a erupção do movimento sofista, que se conjugam com os notáveis desafios vindo de fora que os atenienses tiveram que enfrentar (a ameaça persa e, posteriormente, pelo enfrentamento com Esparta), na luta pelo hegemonia do mundo helênico. Ela, a tragédia, conheceu a sua eclipse na medida em que a tecitura histórica se alterou.
No século IV a.C. Atenas, exaurida pela longa Guerra do Peloponeso, travada contra Esparta, pouco pôde fazer para assegurar a sua autonomia, para preservar a Eleutéria (independência em face ao estrangeiro). Felipe II e seu filho Alexandre, da Macedônia, após a vitória nos campos de batalha, terminam por impor-se sobre as Poléis gregas. A submissão delas ao Estado Imperial Macedônico fez com que perdessem a liberdade política e econômica. Por conseqüência, o espetáculo cênico, que era o momento do encontro da comunidade com suas perplexidades, o momento de reflexão e catarse coletiva, deixou de ter sua razão de ser.
Como resultado da decadência do espetáculo trágico, surgiram, sublimando as emoções coletivas, diversas correntes filosóficas (denominadas de pós-socráticas) que se caracterizaram por expressar o retorno ao privado, ao subjetivo, ao íntimo, que são as escolas dos cínicos, dos estóicos, dos cépticos e dos epicuristas. Cada uma delas apresentou uma versão, muito própria, da subjetividade grega dilacerada. A partir de então, os espetáculos cênicos deixam de ser a representação das angústias e anseios da coletividade, sendo apreciados apenas como divertimento e lazer. Deu-se pois uma transferência de preocupações, do geral ao particular, criando-se as condições para o surgimento da filosofia "existencial" do período helenístico. Não foi o socratismo com o seu racionalismo e o recurso à lógica - como acusou Nietzsche - quem embaraçou e esvaziou a tragédia do seu sentido, mas sim o fator político que, ao fazer a cidade-estado perder a Eleutéria (a liberdade face ao estrangeiro), tornou o espetáculo trágico sem sentido. A Tragédia encontrou então a sua morte.
Ésquilo (525-455 a .C.): o mais místico dos autores gregos. Culpa e castigo o tema comum, pensamentos sombrios, paixões violentas: sua religião é o terror; sua moral, sofrer para aprender. Das 80 ou mais peças que escreveu só nos restaram sete:
Data provável (a.C.) | Título da peça |
472 | Os persas |
467 | Os sete contra Tebas |
464 | As suplicantes |
458 | Agamemnon |
458 | Coéfora |
458 | Eumênides |
431 | Prometeu acorrentado |
Sófocles |
Data provável (a.C.) | Título da peça |
430 | Os Traquineos |
442 | Antígona |
440 | Ajax |
410 | Electra |
409 | Filoctetes |
407 | Édipo o tirano |
405 | Édipo em Colono |
Eurípides |
Data provável (a.C.) | Título da peça |
450 | Résus |
438 | Alceste |
431 | Medéia |
430 | Os Heráclidas |
428 | Hipólito |
427 | Andrômaca |
424 | Hécabe |
422 | As suplicantes |
422 | Héracles |
420 | Electra |
415 | As troianas |
412 | Helena |
414 | Íon |
413 | Ifigênia em Tauris |
410 | Os Fenícios |
410 | Ifigênia em Avlis |
410 | O Baco |
408 | Os Ciclopes |
408 | Orestes |
Agônico - ágon, competição esportiva hípica, musical ou literária, especialmente nas festas solenes realizadas em honra às divindades, tais como, jogos olímpicos, píticos, nemeus e ístmicos.
Ditirambos - composição em versos e estâncias irregulares que exprimem entusiasmo ou delírio. Também entende-se como o elogio entusiástico, até o exagero.
Corifeu - diretor ou regente dos coros nas tragédias.
Eudemonia - felicidade espiritual e material como supremo fim.
Drama - significa a grosso modo "algo que está a passar".
Teatro - "um lugar onde se olha" (H. D., F. Kitto, Trag. I, 207).
Sophrosyne - o bem senso, equilíbrio, idéia da medida, do meio-termo.
Nomos - lei.
Logos - razão.
Eunomia - hierarquia, boa ordem, pacífico.
Heteria - clube de iniciados, sociedade secreta.
Euphrosyne - alegria ou banquete acompanhado do canto do aedo.
Kalón - bonito.
Eusebeia - piedade.
Nóus - inteligência.
Areté - virtude humana, concepção de excelência, sábio, famoso.
Agathós - esthlós - homem excelente.
Agonística - relativo a luta, luta pela vida ( = techne agonistiké).
Hybris - orgulho irracional, sem limites, desordem.
Hybris Externa - política agressiva, de conquista.
Kosmes - ordem.
Dikê - justiça.
Adikía - injustiça.
Isegoria - igualdade de palavra.
Sophrosyne - sabedoria, autodomínio, disciplina.
Krátos Kyrios - autoridade legítima.
Krátos Bía - força brutal, coerção.
Peithé - doce persuasão.
Kalogagatya - Idéia de equilíbrio entre as propriedades corporais e espirituais, físicas e morais.
BONNARD, André. Civilização Grega. Estúdios Cor, Lisboa, 3 v., 1966.
BURCKHARDT, J. História de la Cultura Griega. Ibéria, Barcelona: 5 v., 1947.
DODDS, E.R. - Os gregos e o irracional, Lisboa, Gradiva, 1988
JAEGER, Werner. Paidéia. Herder, São Paulo: s/d.
KITTO, H. D. F. A Tragédia Grega. Armando-Amado, Coimbra: 2 v., 1972.
LESKI, Albin. La Tragédia Griega. Labor, Barcelona: 1970.
NIETZSCHE, F. Origem da Tragédia. Guimarães, Lisboa: s/d.
ROHDE, Erwin. Psique. Labor, Barcelona: 2 v., 1973.
VERNANT, J. P.; NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Duas Cidades, São Paulo: 1977.
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/tragedia_grega7.htm
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