Educação Infantil
Edição 132 | 05/2000
A vez da creche e da pré-escola
Professores, entidades e políticas se aprimoram para dar qualidade à educação de nossas crianças
Denise Pellegrini (dpellegrini@abril.com.br)
Camila, Raiane, Gustavo, Matheus, João e Bárbara nunca se viram, mas têm muito em comum. São curiosos, criativos, conhecem bem os lugares onde moram, estão sempre aprendendo coisas novas e ganham autonomia a cada dia. Os seis são crianças de creches e pré-escolas em diferentes pontos do país, e você vai conhecê-los ao longo desta reportagem porque seus professores são exemplos de uma renovação em curso na Educação Infantil. Apoiados em projetos bem montados, esses educadores mostram como é possível unir atividades pedagógicas aos cuidados que crianças de até 6 anos demandam. Tudo isso sem deixar de lado as brincadeiras.
Esse processo de mudanças vem se desenrolando há mais de uma década, mas tomou forma em 1998, quando o Ministério da Educação (MEC) lançou o Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil. O documento serve de base para a elaboração de projetos pedagógicos. "Engana-se quem pensa em aplicar o Referencial em sala, porque ele exige estudo e reflexão", avisa Gisela Wajskop, uma de suas coordenadoras.
"O material é rico, mas não único", completa Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, que também colaborou na elaboração. Segundo ela, as propostas de secretarias estaduais e municipais podem e devem inspirar outros bons projetos. "Pesquisas e publicações sobre o tema têm se multiplicado nos últimos anos", festeja Gizele de Souza, professora da UniversidadeFederal do Paraná e membro do Movimento Interfóruns Estaduais de Educação Infantil do Brasil.
Várias dessas novas orientações vêm sendo digeridas pelas creches, destinadas às crianças de até 3 anos, e pelas pré-escolas, que atendem as de 4 a 6. Os resultados já estão aparecendo mais perto do que muitos imaginam.
Receitas curiosas
Estimular a autonomia na busca de soluções para problemas. Esse lema permeia os projetos desenvolvidos pelo Colégio Miró, de Salvador. Para as salas com crianças de 3 anos, a proposta era elaborar um livro de receitas de brinquedos. Enquanto tentavam descobrir como funcionam carrinhos movidos a pilha e trenzinhos a corda, as crianças aguçavam a curiosidade e melhoravam seu vocabulário. "Depois de desmontar até mesmo engrenagens complicadas, eles acabaram percebendo que o melhor era utilizar sucatas que estavam ao seu alcance para construir os próprios brinquedos", descreve a professora Sandra Hirs.
"A criança é um pequeno pesquisador, e dar a ela a liberdade de explorar é muito enriquecedor", endossa a pesquisadora Maria Clotilde. Uma das receitas que consta no livro é a de um barco feito com latinhas e uma bandeja de isopor. Sandra respeitou a forma de expressão da turma na hora de redigir as instruções. "Atividades como essa despertam a percepção da escrita como registro", resume Maria Clotilde.
Levar em conta o que está nos arredores, ponto previsto no Referencial, é fundamental para se obter sucesso num projeto pedagógico. Quando passou a levar isso a sério, a Escola Municipal de Educação Infantil Tiradentes, no vilarejo de Cumuruxatiba, em Prado, litoral sul da Bahia, se transformou. Instalada à beira-mar, a instituição atende a filhos de pescadores. Com essa realidade, nada mais natural que conchas, algas, folhas e areia fizessem parte do material didático. Até bem pouco tempo atrás, no entanto, não era isso o que ocorria. "Há dois anos, ninguém fazia uma pintura sequer que não fosse numa folha mimeografada", lembra a diretora Letícia Registro. A mudança se deve a um programa de formação financiado pela Fundação Orsa, de São Paulo. Hoje, são comuns as aulas-passeio, em que são explorados os recursos da região onde Cabral aportou, há 500 anos. "Os professores estão percebendo que a cultura e a história de sua gente valem muito", afirma Letícia.
A qualificação de pessoal foi fundamental também para aprimorar o atendimento nas oito creches da Associação de Mulheres pela Educação (Ame), de Osasco, na Grande São Paulo. "Tínhamos profissionais que choravam por não ter uma proposta pedagógica a seguir", afirma Terezinha dos Santos, presidente da entidade. Quando a Ame foi fundada, catorze anos atrás, as mães cuidavam das crianças em suas casas. "Percebemos que, dessa maneira, não é possível educar", conta Terezinha. Ao mesmo tempo em que qualificou o pessoal, a instituição melhorou a infra-estrutura.
Hoje, a Creche Aventura do Aprender, uma das que são mantidas pela Ame, dispõe de uma sala com vários cantinhos montados: salão de beleza, fantasias, escritório, jogos e leitura, além de uma casinha. As crianças escolhem o que fazer na hora planejada para a brincadeira, coisa que antes era inviável. "É importante que eles ganhem autonomia e aprendam que não precisam realizar juntos, ao mesmo tempo, a mesma atividade", reforça Maria Clotilde.
Agora, até as atividades lúdicas são alvo de planejamento na Aventura do Aprender. As atividades e as metas propostas são avaliadas. "O professor deve colocar num caderno de registros qual o objetivo do trabalho, o que aconteceu ao final do dia e como será o dia seguinte", ensina Gisela Wajskop. Enquanto os pequenos de 5 anos brincam de casinha, a professora Simaura Costa participa e ajuda. "Eles às vezes tratam seus filhinhos com agressividade, e eu digo que não é preciso brigar, mas conversar", explica. Quando entra num jogo de faz-de-conta, a criança tenta entender como as coisas acontecem, reorganizando pensamentos e emoções. "Eu observo as atitudes delas e, a partir daí, planejo as próximas aulas", ensina Simaura.
Clássicos infantis
Assim como o faz-de-conta, os contos de fadas também ajudam a trabalhar os sentimentos, como medos e conflitos. Clássicos da literatura infantil são a base dos projetos na Escola Parque, do Rio de Janeiro. O livro Os Três Porquinhos despertou o interesse dos alunos de Deise Sentoma e desencadeou uma série de atividades. Depois de ouvir a história e vê-la encenada na forma de teatro de fantoches, eles ajudaram a construir máscaras de lobo e uma casa para os porquinhos. "Ao definir formas e cores, a criança desenvolve o senso crítico e a criatividade", afirma a professora.
Encarnando lobos e porcos, a turma acabou vivendo momentos de solidariedade, em que era preciso encarar o bem e o mal. Na hora do lanche, ou melhor, do piquenique, todos subiam escadas e ladeiras, melhorando a coordenação e o equilíbrio. De acordo com Gisela Wajskop, os exercícios são ótimos para desenvolver os músculos e a capacidade motora, se forem acompanhados de sentido. "O prazer vem quando eles fantasiam, por exemplo, que estão fugindo do inimigo."
Um grande passo na busca do aperfeiçoamento foram as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Entre outros pontos, a lei em vigor há um ano prevê que as propostas pedagógicas levem em conta a realidade de alunos e famílias. Na Escola Municipal Infantil Érico Veríssimo, de Porto Alegre, isso é regra. Por sugestão da secretaria municipal, são feitas pesquisas com a comunidade para, a partir das falas dos moradores, estabelecer um tema gerador. Enquanto o levantamento não está concluído, cada sala traça um plano. A professora Susana Weber, responsável por uma turma de 3 e 4 anos, queria mostrar aos pais que tinha muito a ensinar. "As mães só vinham perguntar, no final do dia, se os filhos haviam comido direitinho ou feito cocô", lembra.
Para envolver os pais, ela aproveitou o interesse dos alunos pelos animais vistos num passeio a uma fazenda. Criou uma série de jogos para fixar as informações sobre os bichos e, na hora de montá-los, pediu que as famílias enviassem figuras de animais. As crianças começaram a contar em casa o que estavam aprendendo e a fazer perguntas sobre o assunto. "Com o passar do tempo, as mães convenceram-se de que o ensino era tão impor tante quanto os cuidados com higiene e alimentação", diz Susana.
A dose certa entre cuidar e educar é uma das principais preocupações da equipe da Assistência Social Kennedy, instituição comunitária de Belo Horizonte. Até o ano passado, a Aske era vinculada à Secretaria da Ação Social e, neste ano, passou para o controle da Secretaria da Educação, como determina a Lei de Diretrizes e Bases. "Não queremos escolarizar a creche e, por causa do compromisso de educar, esquecer dos cuidados e das brincadeiras", teoriza a coordenadora pedagógica Gessi Palmeira da Silva.
A preocupação de Gessi tem fundamento. A pedagoga Marci Brondi, mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista, pesquisou a história da pré-escola da cidade de São Paulo, de 1896 a 1996. "A brincadeira estava presente desde o início, no final do século passado, mas isso foi se perdendo quando, nos anos 70, começaram a jogar para o ensino infantil a responsabilidade de impedir o fracasso na alfabetização", diz Marci. A tendência atual é não perder de vista o lúdico, e por isso a Aske está no caminho certo. Atividades prazerosas que envolvem a leitura, a pesquisa e a observação do mundo fazem parte do dia-a-dia dos alunos.
Durante o desenvolvimento do projeto Natureza Viva, em que os pequenos estudaram os vegetais, os animais e as pessoas, isso ficou muito claro. As turmas de 3 a 5 anos cultivaram uma horta e vibraram quando começaram a nascer as verduras e os legumes, depois transformados em salada. "Eles aprenderam a proteger as plantas", comemora a educadora Nelcina Maria Neto.
Vários dos animais que antes só apareciam nos livros foram visitar a creche. Eram papagaios, cachorros e tartarugas, bichos de estimação dos moradores da comunidade. As crianças de 2 anos foram as que mais se encantaram. "Alguns tocavam os animais e os imitavam", afirma a professora Maria Iva Freitas. "Possibilitar o contato com animais desenvolve a percepção de que é preciso cuidar deles, e isso gera responsabilidade", comenta Maria Clotilde. Na hora de estudar o tema "gente", todos foram para a frente de um espelho, reparando em cada parte do corpo, para se conhecer melhor. "Em roda, as classes de 6 anos conversaram sobre a necessidade de respeitar o espaço e os direitos de cada um", completa Gessi.
Guerra por verbas
O período de transição por que passa a Aske serve de exemplo para muitas creches brasileiras que ainda não foram incorporadas aos sistemas educacionais. "Alguns municípios temem desvinculá-las da área social por medo de perder verbas já reservadas e não poder contar com recursos na nova pasta", argumenta Neroaldo Pontes de Azevedo, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
A argumentação se baseia no fato de que o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) não prevê verbas para classes de até 6 anos. Por isso, segundo ele, está diminuindo a oferta de vagas em entidades mantidas por prefeituras. Para a coordenadora de Educação Infantil da Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, Stela Maris Lagos Oliveira, é importante lembrar que a parte da verba que não vai para o Fundef fica nos municípios. "Essa parcela significativa de recursos poderia ser utilizada nesse nível de ensino, mas nem sempre é."
A Undime rebate com outros dados: nos municípios mais pobres esse montante seria muito pequeno. "Queremos discutir programas de apoio com fontes complementares de financiamento", diz Neroaldo. "Falta no país uma política nacional para o setor, que una a Previdência Social, o Trabalho e a Justiça, com a coordenação do MEC", critica Gizele de Souza, do Interfóruns.
Reconhecer a importância dessa fase do Ensino Básico e a necessidade de dedicar mais recursos (como defende a professora Regina de Assis na entrevista da página 23) ultrapassa as fronteiras brasileiras. Em reunião da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), realizada na República Dominicana em fevereiro, os países da América Latina, da América do Norte e do Caribe estabeleceram entre seus compromissos para os próximos quinze anos elevar o investimento na primeira infância. "O aumento de verbas vai possibilitar a melhoria da oferta e da qualidade nos serviços oferecidos", prevê Stela Maris. Para o bem de nossas crianças. E o futuro da educação.
Uma alternativa para a falta de vagas
O período de transição por que passa a Aske serve de exemplo para muitas creches brasileiras que ainda não foram incorporadas aos sistemas educacionais. "Alguns municípios temem desvinculá-las da área social por medo de perder verbas já reservadas e não poder contar com recursos na nova pasta", argumenta Neroaldo Pontes de Azevedo, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
A argumentação se baseia no fato de que o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) não prevê verbas para classes de até 6 anos. Por isso, segundo ele, está diminuindo a oferta de vagas em entidades mantidas por prefeituras. Para a coordenadora de Educação Infantil da Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, Stela Maris Lagos Oliveira, é importante lembrar que a parte da verba que não vai para o Fundef fica nos municípios. "Essa parcela significativa de recursos poderia ser utilizada nesse nível de ensino, mas nem sempre é."
A Undime rebate com outros dados: nos municípios mais pobres esse montante seria muito pequeno. "Queremos discutir programas de apoio com fontes complementares de financiamento", diz Neroaldo. "Falta no país uma política nacional para o setor, que una a Previdência Social, o Trabalho e a Justiça, com a coordenação do MEC", critica Gizele de Souza, do Interfóruns.
Reconhecer a importância dessa fase do Ensino Básico e a necessidade de dedicar mais recursos (como defende a professora Regina de Assis na entrevista da página 23) ultrapassa as fronteiras brasileiras. Em reunião da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), realizada na República Dominicana em fevereiro, os países da América Latina, da América do Norte e do Caribe estabeleceram entre seus compromissos para os próximos quinze anos elevar o investimento na primeira infância. "O aumento de verbas vai possibilitar a melhoria da oferta e da qualidade nos serviços oferecidos", prevê Stela Maris. Para o bem de nossas crianças. E o futuro da educação.
Tarefa feminina ou puro preconceito?
Os professores homens ocupam apenas 0,25% do total de vagas nas creches paulistanas. A constatação faz parte dos resultados de pesquisa realizada há três anos por Eliana Saparolli, da Universidade Federal de São Paulo. "Os dados podem ser extrapolados para o país", avalia Eliana, que defendeu sua tese na Pontifícia Universidade Católica da capital paulista.
Entre as razões para tamanha disparidade, segundo ela, estão o salário baixo e o pouco status oferecidos pela profissão — bem como o fato de a função carregar o estereótipo de feminina. A postura com relação ao trabalho, conclui a pesquisa, não muda conforme o sexo. "Também as professoras consideram essa tarefa desvalorizada."
Um dos poucos pontos em que a opinião de homens e mulheres diverge diz respeito ao relacionamento com os pais: 60% dos entrevistados afirmaram ter enfrentado problemas com as famílias, contra apenas 6% de suas colegas. Todos, porém, concordam num ponto: a presença masculina é fundamental para as crianças. Paulo Sérgio dos Santos, da Escola Municipal Mutari, de Santa Cruz de Cabrália (BA), diz já ter sofrido preconceito por ensinar os pequenos, mas garante que seu trabalho é tão importante quanto o de uma mulher na sala de aula. "Muitas crianças não têm a figura do pai em casa, e assim eu acabo me tornando uma referência para elas."
Quer saber mais?
Assistência Social Kennedy, R. Aline, 907, CEP 30880-400, Belo Horizonte, MG, tel. (31) 473-1245
Colégio Miró, R. Candido Portinari, 58, CEP 40140-440, Salvador, BA, tel. (71) 235-6757
Creche Aventura do Aprender, R. Frei Gaspar, 39, CEP 06230-000, Osasco, SP, tel. (11) 7086-4183
Escola de Educação Infantil Tiradentes, Av. Beira-Mar, s/nº, CEP 45983-000, Prado, BA
Escola Municipal Infantil Érico Veríssimo, R. Modesto Franco, 100, CEP 91230-100, Porto Alegre, RS, tel. (51) 348-1408
Escola Parque, R. Marquês de São Vicente, 483, CEP: 22451-041, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 274-2949
BIBLIOGRAFIA
Os Fazeres na Educação Infantil, Maria Clotilde Rossetti-Ferreira (org.), 195 págs., Ed. Cortez, tel. (11) 864-0111, 23 reais
Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos - Uma Abordagem Reflexiva, Anna Bondiolli e Susanna Mantovani, 355 págs., Ed. Artmed, tel. (11) 883-6160, 44 reais
Qualidade em Educação Infantil, Miguel Zabalza, 288 págs., Ed. Artmed, tel. (11) 883-6160, 34 reais
Obrigado por sua visita, volte sempre.
Um comentário:
Maravilha o seu cantinho.
Na intenção de divulgar o meu trabalho, cheguei até você.
Gostei muito do seu espaço. Eu não estou podendo ler tudo de uma vez porque a tela do computador atrapalha um pouco a minha visão, mas certamente voltarei mais vezes. O meu oftamologista pediu que desse um tempo da telinha... e eu sou fraca ?
O meu território já está demarcado.
Convido a dar uma espiada em "FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER.." ( o seu cantinho de leitura), em:
http://www.silnunesprof.blogspot.com
Terei sempre uma história para contar.
Saudações Florestais !
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