Esclarecimento segundo Kant:
Alexander Martins Vianna
Em 1784, Immanuel Kant(1724-1804) publicou o seu artigo “O que é Esclarecimento?”. Observando a forma que desenvolve seu argumento, podemos notar que Kant entende o Esclarecimento como uma condição moral e não uma coisa, e seu sentido não pode ser restringido a saber ou conhecimento, pois é a combinação do conhecimento profundo sobre um assunto específico com a autonomia crítica do sujeito do conhecimento. Esquematicamente, Scholar
(Profundo conhecedor de um assunto) + Autonomia
(Falar em seu próprio nome)
Segundo Kant, todos (homem ou mulher) podem alcançar esclarecimento sobre qualquer assunto, embora a grande maioria não queira praticar ou desenvolver tal condição moral, seja por comodismo, oportunismo, medo ou preguiça. Logicamente, em seu processo social de formação (Bildung), todo indivíduo vive uma situação de menoridade em algum momento ou fase de sua vida. Neste caso, a menoridade é natural, pois confunde-se com imaturidade, tal como a imaturidade da semente em relação à árvore que ela pode vir a ser, já que nenhuma pessoa nasce pronta. No entanto, Kant questiona aquelas autoridades (principalmente religiosas) que, através do medo ou do constrangimento, mantenham seus sujeitos em menoridade quando já teriam condições intelectuais de não sê-lo; e ironiza aqueles sujeitos que, por comodismo, oportunismo ou preguiça, vivam uma situação de menoridade auto-imposta. Portanto, ser esclarecido não é apenas ter um profundo conhecimento sobre um assunto (condição de Scholar), mas combinar isso com a conquista da autonomia – passo moral fundamental apenas dado por uma minoria. Nesse sentido, todos potencialmente podem esclarecer-se, já que possuem capacidade de pensar, mas nem todos conseguem superar o medo, a preguiça ou o interesse particular para alcançar a condição de esclarecimento.
Além disso, deve-se considerar mais um detalhe: o sujeito do conhecimento apenas pode tornar-se Scholar sobre algumas matérias ou conjunto de matérias específicas, pois não é possível ter um conhecimento profundo sobre todas as coisas da vida social, natural ou sobrenatural. Isso significa que só se pode ser esclarecido sobre um assunto ou conjunto de assuntos, sobre os quais se lança críticas que ajudem no seu aperfeiçoamento; porém, em relação a outros assuntos sobre os quais não se possa ser Scholar, vive-se uma condição de menoridade necessária – o que é o mesmo que dizer, por exemplo, que somente um general pode criticar outro general, mas um general não poderia ser criticado por seu tenente, capitão ou coronel, pois isso, segundo a ótica de Kant, abalaria a ordem social e política e poderia levar a sociedade para a barbárie de lideranças religiosas ou políticas oportunistas. Portanto, apenas pode livremente criticar quem seja Scholar em relação a um assunto. No entanto, para criticar, o Scholar deve falar em seu próprio nome, em outras palavras, se ocupa um cargo, não pode criticá-lo enquanto o exerce, pois, além de ser perigoso para a ordem social e política, demonstraria hipocrisia ou falta de moral. Vejamos o exemplo que Kant dá a respeito do pastor:
“…O pastor dirá: ‘Nossa igreja ensina isso ou aquilo; estas são as provas que ela usa’. Nesse sentido, ele beneficia a sua congregação tanto quanto possível por apresentar doutrinas nas quais não acredita completamente, mas se compromete em ensiná-las pois não é completamente impossível que elas não possam conter alguma verdade oculta. Em todo caso, ele não encontrou nada nas doutrinas que contradiga o coração da religião. No entanto, se ele acredita que tais contradições existem, ele não estaria mais habilitado para administrar seu ofício com clareza de consciência. Ele teria que renunciar ao seu cargo…”
O mesmo argumento valeria para outros cargos ou atividades. Como Scholar, se um sujeito encontra contradições irremediáveis nos princípios que sustentam um cargo, ofício ou sistema filosófico, terá que sair da condição de menoridade e falar em seu próprio nome, o que significa abandonar a posição anterior. Ora, isso é um teste moral e um modo de evitar que a sociedade se tornasse refém de oportunistas e manipuladores, pois quem lança crítica deve ter o sentimento autêntico de aperfeiçoamento das coisas a ponto de abandonar seus interesses e comodismos particulares e voltar-se para o benefício do próximo, em vez de transformar sua crítica em meio de realização de seus interesses particulares. Este é o sentido do uso público da razão, em contraponto ao seu uso particular e privado. Nesse sentido, o Scholar usa privadamente a sua razão quando – como ator na competência particular de um cargo, posição funcional ou sistema filosófico – fala em nome da instituição em relação à qual tal competência está referida.
Portanto, ser esclarecido é, antes de tudo, um compromisso moral com o aperfeiçoamento e bem-estar da sociedade, respeitando as hierarquias sociais existentes. No entanto, por medo, comodismo, oportunismo ou preguiça, poucos Scholars tornam-se efetivamente esclarecidos, embora tenham condições intelectuais para tanto quando estão em uso privado da razão. Neste caso, a menoridade auto-imposta reverbera para um problema moral, que é o oposto do pragmatismo político de Maquiavel(1469-1527). A indagação moral kantiana por excelência é: “Tenho eu um sentimento não meramente centrado em meu interesse mas também um sentimento desinteressado concernente aos outros? Sim”. Ora, isso é um desdobramento para o mundo do princípio luterano de que toda obra deve derivar do amor – a exemplo de Cristo*. Deste modo, as pessoas deixariam de ser meios para se chegar a alguma coisa (fundação do Estado, vantagens materiais, cargos, prazer sensual ou salvação da alma) e tornar-se-iam fins em si mesmas.
A partir da segunda metade do século XVIII, novos espaços de sociabilidade e as transformações na vida econômica constituíram novos processos de construção de identidade que libertaram muitos indivíduos letrados dos referenciais político-jurídicos estamentais, definindo-se o valor da pessoa a partir de seu talento manifesto ou presumido (bom nascimento). Porém, em larga medida, “bom nascimento” teve seu sentido antigo atenuado, não significando necessariamente ser nobre de nascimento, mas enobrecido pelo mérito manifesto nas convivências em sociedade. No entanto, a nova liberdade (autoconstituição reflexiva de si mesmo) foi descoberta para ser logo constrangida, pois agora havia um leque preestabelecido de escolhas sociais baseado na progressiva especialização técnica e funcional da sociedade.
Em seu livro “Modernidade e Identidade”, Anthony Giddens enfoca os vários processos reflexivos de construção de identidade na sociedade moderna (que compreende para ele os sécs. XIX-XX), onde afirma que, até a década de 1950, era possível observar um indivíduo ainda pressionado entre as formas pré-modernas (mais fixistas) de identidade e os novos valores, típicos da modernidade, ligados à velocidade e à liberdade de ação, escolha e autoconstituição. No entanto, Giddens lembra que a liberdade de autoconstituição reflexiva chocava-se com um leque preestabelecido de opções. Ele entende tal fenômeno como associado à especialização tecnológica do trabalho e à multiplicidade de papéis sociais, percebendo que a autonomia na modernidade é em larga medida constrangida pelo próprio processo de modernização da vida social, que torna todos impessoalmente reféns de sistemas-perito, que são os efetivos criadores/programadores das agendas de escolha ou leques de opções das multidões. Nesse sentido, aplicando as inferências de Giddens às idéias de Kant sobre o “uso privado da razão”, observamos um limite funcional à liberdade, pois, em face das especialidades existentes numa sociedade, haverá sempre “cidadãos passivos” em relação a algum assunto. Logo, se uma sociedade em processo de esclarecimento pressupõe um tipo de liberdade ancorada na autonomia moral, tal liberdade é relativizada pelas relações funcionais de interdependência dos indivíduos. Enfim, segundo Kant, Você tem liberdade de criticar as coisas em relação às quais seja Scholar(perito, segundo vocabulário de Giddens), mas somente pode criticar se vive uma condição de autonomia funcional, condição para o uso público moralmente aceitável da razão.
O Que é Esclarecimento?[1]
(1784)
Immanuel Kant
Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade[2] auto-imposta. Menoridade é a inabilidade de usar seu próprio entendimento sem qualquer guia. Esta menoridade é auto-imposta se sua causa assenta-se não na falta de entendimento, mas na indecisão e falta de coragem de usar seu próprio pensamento sem qualquer guia. Sapere aude! (Ouse conhecer!). “Ter a coragem de usar o seu próprio entendimento” é, portanto, o motto do Esclarecimento. Preguiça e covardia são as razões de a maior parte da humanidade, de bom grado, viver como menor durante toda a sua vida, mesmo depois de a natureza a muito tempo ter livrado-a de guias externos. Preguiça e covardia demonstram porque é tão fácil para alguns se manterem como tutores.
É muito confortável ser um menor. Se eu tenho um livro que pensa por mim, um pastor que age como se fosse minha consciência, um físico que prescreve a minha dieta e assim sucessivamente, não tenho então necessidade de empenhar-me por conta própria. Se eu posso pagar, não tenho necessidade de pensar. Muitos poderão discordar comigo nessa matéria: os próprios guardiães que se encarregam de cuidar para que a esmagadora maioria da humanidade – e, dentro dela, todo o sexo feminino – não alcance a maturidade, não apenas por ser desagradável, mas extremamente perigosa. Tais guardiães tornam estúpido seu gado doméstico e cuidadosamente se previnem para que suas dóceis criaturas não tomem caminho próprio sem seus arreios. Assim, eles mostram para seu gado o perigo que pode ameaçá-los caso pretendam andar por sua própria conta.
Na verdade, o perigo não é realmente tão grande quanto parece. Afinal, depois de tropeçar um pouco, todos aprendem a andar. Entretanto, exemplos de tropeços intimidam e geralmente desencorajam todas as novas tentativas. Portanto, é muito difícil para o indivíduo agir por sua própria conta e superar a menoridade, que se torna para ele quase uma segunda natureza. Assim, mesmo que esteja já amadurecido, o indivíduo é desde o início incapaz de usar seu entendimento por conta própria porque nunca se permitiu tentar fazer isso. Dogmas e fórmulas – estas ferramentas mecânicas para usos razoáveis (ou, pelo contrário, abusivos) das dádivas naturais dos indivíduos – são os grilhões de uma duradoura menoridade. O homem que se livra deles dá um salto incerto acima do abismo, mas este tipo de movimento livre não é comum. Eis a razão para o fato de que apenas poucos homens caminham decididamente e saem da menoridade, cultivando seus próprios pensamentos. No entanto, é praticamente certo que o público possa esclarecer-se. De fato, basta que a liberdade seja dada para que o esclarecimento torne-se praticamente inevitável.
Sempre haverá pensadores independentes, mesmo entre os auto-intitulados guardiães da multidão. Uma vez que tais homens livrem-se do jugo da menoridade, derramarão sobre si o espírito de uma apreciação razoável do valor humano e de seu dever de pensar por conta própria. É interessante observar que o público que se manteve anteriormente sob o jugo destes guardiães, quando é incitado à revolta por alguns deles – que são incapazes de qualquer esclarecimento –, força-os posteriormente a permanecerem submissos. Isso demonstra o quanto é perigoso implantar preconceitos: estes eventualmente voltam-se contra seus próprios autores ou contra os descendentes dos autores. Portanto, apenas lentamente o público deve alcançar esclarecimento. Uma revolução pode levar ao fim de um despotismo pessoal ou de uma avarenta e tirânica opressão, mas nunca leva a uma verdadeira reforma dos modos de pensar. Novos preconceitos tomarão o lugar dos antigos como guias de uma multidão irracional.
O esclarecimento requer nada além do que liberdade – e o mais puro de tudo isso é a liberdade de fazer uso público da razão em qualquer assunto. Por outro lado, o uso privado da razão freqüentemente pode ser restrito, mas isso não necessariamente retarda o processo de esclarecimento. Atualmente, ouço clamores de todos os lados: “Não questione!”. Os oficiais militares dizem: “Não questione, mexa-se!”. O coletor de impostos: “Não questione, pague!”. O pastor: “Não questione, creia!”. Somente um único soberano[3] em todo mundo pode dizer: “Questiona tanto quanto quiseres, e sobre o que quiseres, mas obedeça!”. Nós encontramos restrições à liberdade em todo lugar. Mas qual restrição é nociva ao esclarecimento? Qual restrição é livre de erros e qual antecede o esclarecimento? Eu respondo: o uso público da razão deve ser livre todo o tempo e somente isso pode levar esclarecimento à humanidade.
Por “uso público da razão” entendo o uso que um homem, como scholar[4], faz da razão diante de um público letrado. Eu chamo de “uso privado da razão” aquele uso que um homem faz da razão em um posto civil que lhe foi confiado. Em alguns negócios que afetam o interesse da comunidade, um certo mecanismo [governamental] é necessário, em relação ao qual alguns membros da comunidade permanecem passivos. Isto cria uma unanimidade artificial que servirá para o cumprimento dos objetivos públicos, ou ao menos para proteger tais objetivos da destruição. Aqui, questionar não é permitido: deve-se obedecer. Uma vez que um participante deste mecanismo se considera ao mesmo tempo parte de uma comunidade universal (uma sociedade mundial de cidadãos) – lembrando que ele pensa por sua própria conta como um scholar que racionalmente se dirige ao seu público através de seus escritos –, ele pode efetivamente questionar – mas nada sofrerão os assuntos com os quais ele está associado parcialmente como membro passivo[5]. Portanto, seria um completo infortúnio se um oficial militar (no cumprimento de seu dever ou sob ordens de seus superiores) quisesse questionar a adequação ou utilidade de suas ordens. Ele deve obedecer. No entanto, como um scholar, ele certamente não poderia evitar de reconhecer os erros no serviço militar e deve expor suas visões ao julgamento de seu público. Um cidadão não pode deixar de pagar os impostos que lhe são cobrados – e impertinentes críticas a esses impostos podem ser punidas (como um escândalo que pode provocar uma desobediência geral). Não obstante, tal homem não viola os deveres de um cidadão se, como um scholar, publicamente expressa suas objeções a respeito da inadequação ou possível injustiça de tais impostos.
Um pastor também é limitado a pregar para sua congregação de acordo com as doutrinas da igreja à qual serve, pois ele foi ordenado para isso. Mas como um scholar ele tem completa liberdade, na verdade, a obrigação, de comunicar a seu público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e construídos a respeito dos erros nessa doutrina e expor suas proposições a respeito do progresso do dogma religioso e das instituições eclesiásticas – o que não é nada que possa sobrecarregar a sua consciência. No entanto, quando ensina seguindo seu ofício de representante da igreja, o pastor representa alguma coisa da qual ele não é livre para ensinar tanto quanto observar. Ele fala como alguém que é empregado para falar em nome e sob as ordens de alguém. O pastor dirá: “Nossa igreja ensina isso ou aquilo; estas são as provas que ela usa”. Nesse sentido, ele beneficia a sua congregação tanto quanto possível por apresentar doutrinas nas quais não acredita completamente, mas se compromete em ensiná-las pois não é completamente impossível que elas não possam conter alguma verdade oculta. Em todo caso, ele não encontrou nada nas doutrinas que contradiga o coração da religião. No entanto, se ele acredita que tais contradições existem, ele não estaria mais habilitado para administrar seu ofício com clareza de consciência. Ele teria que renunciar ao seu cargo.
Portanto, o uso que um scholar faz de sua razão diante da congregação que o emprega é somente um uso privado (para uma audiência doméstica), não importa o quão importante seja. Em vista disso, o pastor, como um pregador, não é livre e nem deve ser livre se ele está encarregado das ordens de alguém. Por outro lado, como um scholar que fala para seu público (o mundo) através de seus escritos, o ministro – no uso público de sua razão – goza de liberdade ilimitada para usar sua própria razão e para falar por si. Que os guardiães espirituais do povo devam tratar a si mesmos como menores é um absurdo que resultaria em perpétuos absurdos.
No entanto, deve uma sociedade de ministros, digo um Conselho Eclesiástico, ter o direito de se comprometer, por juramento, com uma doutrina inalterável de modo a assegurar-se como guia perpétuo acima de todos os seus membros e, através destes, acima do povo? Eu digo que isso é praticamente impossível. Tal contrato – concluído para privar a humanidade de qualquer novo esclarecimento – é simplesmente nulo ou vazio, mesmo que tenha sido confirmado por um poder soberano, parlamentos e pelos tratados mais solenes. Uma época não pode fazer um pacto que comprometa as idades futuras, não pode evitar que elas aumentem suas significantes inspirações, purifiquem-se de erros e gradativamente progridam no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cujo destino assenta-se justamente em tal progresso. Portanto, as idades futuras têm pleno direito de repudiar tais decisões como desautorizadas e ultrajantes. A pedra de toque de todas essas decisões – que devem tornar-se leis para um povo – baseia-se nesta questão: Poderia um povo impor tal lei a si mesmo?
Pode ser possível introduzir no momento presente uma ordem provisória enquanto se espera uma ordem melhor. Entretanto, enquanto tal ordem provisória continuar, cada cidadão – e, acima de tudo, cada pastor atuando como scholar – deve ser livre para publicar suas críticas das falhas das instituições existentes. Isso deve continuar até que a compreensão pública dessas questões vá tão longe que – unindo a voz de muitos scholars, mas não necessariamente todos – as propostas de reforma possam ser trazidas diante do soberano para proteger aquelas congregações que tenham decidido, de acordo com suas melhores luzes, alterar a ordem religiosa, sem prejuízo, entretanto, para aquelas congregações que queiram sinceramente permanecer nas instituições antigas. Mas concordar com uma constituição religiosa perpétua não passível a ser publicamente questionada por ninguém seria, como foi, aniquilar um período para o progresso do aperfeiçoamento humano. Isso deve ser absolutamente proibido.
Um homem pode postergar seu próprio esclarecimento, mas somente por um período limitado. No entanto, suspender o esclarecimento de uma só vez, para si mesmo ou para seus descendentes, é violar e pisar nos sagrados direitos do homem. O que um povo não pode decidir por si mesmo, menos ainda pode ser decidido por um monarca, pois sua reputação como administrador consiste precisamente na maneira que une a vontade de todo o povo com a sua própria. Se o monarca percebe que toda verdade ou suposto progresso [religioso] permanece regulado ao nível da ordem civil, ele pode para o restante das coisas da fé deixar seus súditos livres para fazerem o que acharem necessário para a salvação de suas almas. Salvação não é assunto para monarca; é seu atributo impedir que todo homem seja compelido por outrem em matéria de fé, para que possa promover a sua própria salvação da melhor forma possível. De fato, seria prejudicial para a sua majestade que o monarca se imiscuísse nestes assuntos e vigiasse os escritos nos quais seus súditos expõem suas visões [religiosas], mesmo quando baseado na mais alta inspiração, pois assim expor-se-ia à reprovação: Caesar non est supra grammaticos [César não está acima dos gramáticos]. É ainda pior quando o monarca degrada seu poder soberano de modo a apoiar o despotismo espiritual de uns poucos tiranos no Estado em prejuízo do restante dos súditos.
Quando nós perguntamos “Vivemos agora numa época esclarecida?”. A resposta é “Não”, mas vivemos numa época de esclarecimento[6]. Tal como as coisas se apresentam agora, estamos longe de ver homens verdadeiramente capazes de usar sua própria razão em assuntos religiosos de forma confiante e correta sem guias externos. No entanto, temos óbvias indicações de que o campo de trabalho em direção à meta [da verdade religiosa] está sendo aberto agora. Mais ainda: os impeditivos contra o esclarecimento geral ou contra a saída de uma menoridade auto-imposta estão diminuindo gradativamente. Nesse sentido, esta é a idade do esclarecimento e o século de Frederico, o Grande.
Um príncipe não deve pensar que desqualifica a dignidade de seu estamento pelo fato de não considerar ser seu dever guiar seus súditos em assuntos religiosos; pelo contrário, ele deve deixá-los em completa liberdade. Se ele repudia a arrogante palavra tolerante, ele é em si mesmo esclarecido; ele merece ser louvado por um mundo gracioso e próspero, como um homem que primeiro soube libertar a humanidade da dependência (ao menos de guia) e deixar todos usarem sua própria razão em assuntos de consciência. Em seu reinado, pastores honrosos – atuantes como scholar, malgrado os deveres de ofício – podem publicar livre e abertamente suas idéias para o mundo avaliá-las, mesmo que desviem aqui ou ali da doutrina aceita. Isso é tanto mais verdadeiro para as pessoas que não estão sujeitas a juramento de ofício. Este espírito de liberdade está espalhando-se para além das fronteiras [da Prússia], mesmo onde tem tido que lutar contra os impeditivos externos estabelecidos por um governo que falha em compreender seu verdadeiro interesse. [Frederico II da Prússia] é um claro exemplo de que a necessidade de liberdade não provoca o menor estorvo à ordem pública ou à unidade da comunidade.
Quando deliberadamente não se mantém os homens no barbarismo, eles gradativamente superam tal condição por si mesmos. Eu tenho enfatizado o ponto principal do esclarecimento – o homem sair de sua auto-imposta menoridade – primeiramente em assuntos religiosos porque nossos administradores não têm interesse em se manter no papel de guardiães de seus súditos nas artes e nas ciências. Acima de tudo, menoridade em religião não é apenas nociva, mas desonrosa. Mas a disposição de um governo soberano em favorecer a liberdade nas artes e ciências vai mais além: o governante sabe que não há perigo em permitir que seus súditos façam uso público de sua razão e publiquem suas idéias a respeito da melhor constituição, assim como as suas cândidas críticas às leis básicas existentes. Nós já temos um flagrante exemplo [de tal liberdade], e nenhum monarca pode igualar-se àquele que nós veneramos.
Somente o homem esclarecido, que não teme as sombras e comanda um exército ao mesmo tempo bem disciplinado e numeroso como mantenedor da paz pública, pode dizer aquilo que [o soberano de] um estado livre não pode ousar dizer: “Questiona tanto quanto quiseres, e sobre o que quiseres, mas obedeça!”. Assim, nós observamos aqui, como em qualquer outro assunto humano (em que quase tudo é paradoxal), uma surpreendente e inesperada cadeia de acontecimentos: se um amplo grau de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade intelectual das pessoas, isso ao mesmo tempo estabelece insuperáveis barreiras; entretanto, um grau menor de liberdade civil dá a oportunidade para o espírito expandir-se até o limite de sua capacidade. Por isso, a natureza tem cultivado cuidadosamente a semente dentro de uma casca dura – nomeadamente, o desejo de e a vocação para o livre pensamento. E quanto mais este livre pensamento gradativamente resiste aos modos de pensamento do povo, mais os homens tornam-se cada vez mais capazes de agir em liberdade. Enfim, o livre pensamento age até mesmo nos fundamentos de governo, e o Estado acha isso agradável para tratar o homem – que é agora mais do que uma máquina – de acordo com sua dignidade.
Revista Espaço Acadêmico
http://www.espacoacademico.com.br/
Fonte: http://blog.controversia.com.br/2007/11/12/esclarecimento-segundo-kant/
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