segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O Polêmico Manual do ciclista do inferno urbano


O Polêmico Manual do ciclista do inferno urbano

O sucesso da banda Los Hermanos, quer isso fosse previsto ou não, acarretou alguns prejuízos ou mazelas sociais de quarta ou quinta grandeza, nada muito sério porém com reflexos expressivos em alguns substratos sociais ou “tribos urbanas”. Aos meus olhos o principal dano é a impressão que ficou de que você pode ser “underground” e algo do tipo “do bem” ao mesmo tempo. Olha eu até curto uma música ou outra dos caras mas eu tenho que escancarar isso.
Funciona assim: você até vai protestar, se rebelar, bradar contra o establishment, porém você não ousaria colocar em risco sua integridade física e social pixando muros, explodindo bombas ou atirando fezes em bancos e senhores de terno. Para o cara underground de bem, causas mais nobres e elevadas como o veganismo e o cicloativismo são chances perfeitas de expressar a sua rebeldia.
Você já viu esses sujeitos por aí. Vou me focar no estereótipo masculino, que é invariavelmente mais restrito e menos variado que o feminino e por isso mesmo mais fácil de ser generalizado. São aqueles caras barbudos, desleixados, de camisas elegantes mas nem tanto, tudo meio surrado mas na medida, óculos grossos… volto a reforçar o Los Hermanos como referência. Claro que existem as variações mas eu gostaria, honestamente, de estereotipar o máximo possível nesse texto. Continuemos: esses caras andam por aí com suas bicicletas e plaquinhas escritas “paz no trânsito” e vão criar blogs ensinando você a se virar na cidade com sua bike.
Procurei “cicloativistas” no Google Images.
Mais do que isso: lhe dirão que você tem direitos, que existe algo como “um metro e meio de distância do carro para a bike” etc. Dirão que a lei está a seu favor e que você deve reforçar o seu direito de andar de bicicleta tranquilamente pelas grandes cidades sem maiores preocupações. Mentiras e mais mentiras. Bons hábitos, bom humor, consciência e essas coisas não fazem o trânsito bom ou humano. Trânsito se faz com planejamento urbano, interesses de montadoras de automóveis etc. Tudo está perdido. Não dê ouvidos aos cicloativistas.
Traffic congestion, Sao Paulo, Brazil
“Não esqueça de usar o capacete” (Photo credit: Wikipedia)
Não quero defender aqui que você não deve utilizar as leis que estiverem a seu favor no eventual caso de precisar delas (se você ainda estiver vivo ou fisicamente habilitado quando precisar recorrer à lei). Mas o que penso de todas essas leis, direitos e métodos é que são como um livro que ensina natação. Você pode ler o livro inteiro, mas a hora que você pular na piscina…
Não acredite em civilidade nas ruas. Há muito tempo o trânsito se tornou guerra. Se você precisar ou quer usar sua bicicleta de forma efetiva na cidade, como seu transporte cotidiano, isto é, chegar na hora certa aos lugares, íntegro, disposto e o menos suado possível, você não precisa procurar mais, aqui está seu guia, o manual do ciclista do inferno urbano.
Aqui está um conjunto de práticas, recomendações e disposições mentais que lhe auxiliarão a percorrer as cidades com sua bike e fazer tudo o que deseja, com muito mais facilidade e rapidez do que se tivesse um automóvel (isso é comprovado com bicicletas em comparação a carros em grandes cidades dentro de um raio de 6km – Fonte: The house of lies.).
Escrito por uma pessoa que anda de bike em grandes centros urbanos há mais de 10 anos e não possui nenhum atropelamento em sua breve porém rica história, o manual se inicia nada menos do que pelo tópico número um:
  • UM: todo motorista é um imbecil e quer te matar violentamente. É evidente que isto não é verdade, porém isso é uma disposição mental que você deve manter a todo momento, e que vai guiar todas as suas ações enquanto estiver pedalando na cidade. Confiar em um motorista é um erro crasso, juvenil e perigoso. O que nos leva ao tópico seguinte.
  • DOIS: procure olhar para os olhos do motorista e não para o carro. O primeiro efeito benéfico dessa ação é saber o que realmente está acontecendo com aquele veículo. “Mas eu estava olhando o carro”, grande merda. O motorista pode estar trocando o som, olhando para o outro lado, falando ao celular, enfim. O segundo efeito, não esperado mas reparei que é frequente quando há contato visual, é que o motorista se assusta um pouco e geralmente freia moderadamente, sei lá, as pessoas não estão acostumadas a se olhar nos olhos, mas pensando bem isso é muito Los Hermanos.
  • TRÊS: evite a contramão a todo custo. Essa faz parte do repertório dos cicloativistas, eu devo admitir que eles tem umas sacadas. É simplesmente a sua velocidade contra a do carro, e não dá nem tempo pra fazer o contato visual mencionado acima. Sério, você fica muito mais exposto à desatenção do motorista; pegue contramão apenas em casos extremos e inevitáveis (existem vários, infelizmente).
  • QUATRO: evite a calçada (ou ainda, utilize a calçada na hora certa). A calçada deve ser evitada não porque é contra a lei, ou é dos pedestres ou coisa assim. A rua em teoria é também das bicicletas, mas há casos de ruas estreitas, com calçadas altas, onde é extremamente perigoso andar na pista, sob o risco de não poder escapar em caso de necessidade, como por exemplo, pulando para a calçada. A principal desvantagem da calçada é o fato de estar cheia de pedestres e o seu trajeto virar uma espécie de videogame onde você não atropelar os pedestres, o que prejudica muito o fator chegar no horário mencionado no início do artigo.
  • CINCO: os cães ladram, a caravana passa. Você deve ter ouvido falar de uma mulher que morreu recentemente atropelada por um ônibus na Avenida Paulista. O que ela estava fazendo, segundo os relatos? Xingando o motorista de outro ônibus que quase a tinha atropelado anteriormente. Verdade, ou não, você entendeu a dica. Não discuta com motoristas. Lembre: todos querem a sua morte violenta e nada mais. Respire fundo e siga em frente, deixando a raiva de lado – sentimentos como estes fazem sua respiração e seu equilíbrio perderem o compasso, aumentando os índices de lamentabilidade do seu rolê ciclístico.
  • SEIS: capacete, usar ou não? Aí depende. Como eu sou um ciclista da guerra muitas vezes preciso chegar minimamente asseado a alguns lugares. Se você tem cabelos e precisa chegar com eles mais ou menos em ordem em algum canto, você vai ter problemas: suor, deformação do penteado e mau cheiro são alguns prováveis. Nessa hora vale equilibrar a sua habilidade e confiança na bike, suas necessidades e a probabilidade de você sofrer algum acidente grave e rachar o crânio no meio. Eu mesmo só costumo usar capacete em rolês extremos, viagens etc. Mas se você perguntar aos cicloativistas eles vão dizer que até um capacete de moto não faria mal em certos casos. Nosso manual vai se prestar a um serviço inútil agora e deixar essa decisão na sua mão.
  • SETE: se você está na mão certa e vem outro ciclista na contramão… Você dá um jeito de deixar bem claro pra ele que não vai sair do seu caminho, e que até os cicloativistas e o Los Hermanos desaprovariam a atitude dele/dela. Acima de tudo, não saia do seu eixo.
  • OITO: olhe para a frente. É óbvio? Talvez. Mas o óbvio nem sempre é evidente. Quando pedalamos na mão certa é natural que sintamos a vontade de olhar pra trás pra conferir a aproximação dos carros. Dica: isso não vai te ajudar muito. É necessária uma espécie de confiança meio louca pra andar de bike na cidade e olhar pra frente é a materialização desse estado de espírito.
  • NOVE: fones de ouvido. Na guerra? Em meio ao inferno urbano? Em velocidade? Simplesmente ridículo. Conheço gente que foi atropelada porque estava mais preocupada em fazer a vida parecer um videoclipe.
  • DEZ: cargas. Eu trabalho a 10km da minha casa e faço o percurso de ida e volta quase diariamente na bike. Gosto de chegar minimamente apresentável no serviço, e eu sou uma pessoa que transpira bastante… Uma mochila nas costas num dia quente pode ter resultados drásticos nesse sentido. Por opção instalei um bagageiro (vulgo garupa de luxo) e sempre pedalo sem nada nas costas, preservando uma relativa integridade de minhas vestes e economizando algumas lavagens de roupa (antes do bagageiro eu “gastava” 2 camisetas por dia as vezes).
  • BÔNUS: sobre pedalar alcoolizado. Muitas vezes eu prefiro ir de bike para o bar. Me dá a tranquilidade espiritual necessária para cachaçar sem limites quando assim desejo. A volta costuma ser algo meio nebuloso do qual você não se lembra direito, alternando bons momentos de descidas e retas com subidas sofridas e o famoso suor de cachaça no bigode. Se houver disposição, na chegada, o ideal é uma bela chuveirada e cair na cama: o sono do bêbado ciclista é de uma profundidade comovente. Mas cuidado, não é só porque você está de bike que as mazelas do trânsito vão lhe passar ao largo. Procure fazer isso apenas de madrugada.
  • BÔNUS DOIS: sobre bicicletas e sexo. Você tem que estar ciente do seguinte: você passou horas pedalando, movimentando suas pernas e transpirando bastante na região da púbis – não quero entrar em detalhes. Se for encontrar alguém com intenções de afeto carnal intenso, leve este fator em consideração. Considere também além de seu nível de intimidade com o parceiro ou parceira: como a pessoa em questão reagiria após abaixar suas calças e se deparar com um estado de provável lamentabilidade de suas partes pudendas? Faça a matemática mental necessária: levar aparatos para tomar um banho? Tacar o foda-se? Eu particularmente prefiro o caminho da honestidade: “Você quer que eu tome um banho. Acredite em mim“. Tem gente que não quer nem saber de esperar banho, tem gente que agradece… a glória da diversidade. Claro que em caso de pedaladas curtas isso não se aplica, mas o ciclista da guerra e do inferno urbano dificilmente faz pedaladas curtas.
CONCLUINDO: a situação das ruas nas cidades médias/grandes é de miséria espiritual. As pessoas estão literalmente se matando pra chegar 5 minutos mais cedo ou 5 minutos menos atrasados em lugares onde elas vão continuar esfolando a si mesmas de todas as maneiras possíveis. Mas o ciclista do inferno urbano é diferente. Ele desliza pela cidade indiferente à toda a mediocridade e pobreza interna de seus habitantes. Ele chega rapidamente onde os carros não chegam. Ele conhece a cidade em sua intimidade e usa suas particularidades a seu favor. Além disso, ele não deixa que os lastimáveis hábitos alimentares e cotidianos da cidade destruam seu corpo, pois está sempre fazendo exercícios aeróbicos e fortalecendo a si mesmo, sua resistência e sua auto-estima. Alheio às comiserações de seus companheiros de espécie, o ciclista do inferno urbano é um ser atento, disposto, dedicado à sua mobilidade e alheio aos gritos, latidos e buzinas de nossos agressivos motoristas. Tempo, esforço e dedicação são extremamente necessários para tanto, mas se me perguntarem, lhes digo que vale muito a pena.

Texto escrito por Rafael (dedos) – http://dedos.info

fonte:  http://diariofnord.wordpress.com/2012/09/13/o-polemico-manual-do-ciclista-do-inferno-urbano/

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