sábado, 15 de maio de 2021

Atma-nivedana: Rendição Completa ao Senhor

Atma-nivedana: Rendição Completa ao Senhor

 

 

Dvarakadhisa Devi Dasi

 

O último dos nove processos do serviço devocional a Krishna incorpora todos os demais.

 

Leitores fiéis da Volta ao Supremo vão se lembrar dos primeiros episódios nessa série dos nove processos do serviço devocional. Completar todos os nove levou muitos anos, porque tenho uma grande inquietação quando se trata de expor sobre tópicos tão sagrados e poderosos. Entretanto, essa discussão de atma-nivedana, “entregar tudo ao Senhor”, completa a série. Para os novos leitores, aqui está uma breve contextualização sobre o assunto.

 

No Srimad-Bhagavatam (7.5.23-24), o devoto Prahlada Maharaja, uma grande autoridade espiritual, diz: “Ouvir e cantar sobre os transcendentais santos nomes, forma, qualidades, parafernália e passatempos do Senhor Vishnu, lembrarmo-nos deles, prestar serviço aos pés de lótus do Senhor, oferecer ao Senhor respeitosa adoração, oferecer-Lhe orações, tornar-se Seu servo, considerar o Senhor como o melhor amigo e render-se totalmente a Ele (em outras palavras, servi-lO com o corpo, a mente e as palavras) – estes nove processos são considerados o serviço devocional puro. Quem quer que dedique sua vida a servir Krishna através destes nove métodos deve ser visto como a pessoa mais culta, pois obteve conhecimento completo.” Srila Prabhupada escreve: “Uma pessoa pode ocupar-se em todos os nove processos devocionais, ou em oito, sete, ou pelo menos um, e isto com certeza o tornará perfeito.” (Bg. 11.55, Significado) E em O Néctar da Devoção, Srila Prabhupada lista exemplos de devotos que, dedicando-se a cada um dos nove processos, tornaram-se perfeitos.

 

A Rendição do Rei Bali

 

Ao considerar atma-nivedana, é bom começar com a história do devoto que Srila Prabhupada citou como o melhor exemplo de rendição completa ao Senhor Supremo, o grandioso rei Bali Maharaja. A história se dá em uma época antiga, então alguns dos elementos podem nos parecer fantásticos agora. No entanto, a natureza humana é tão reconhecível neste conto quanto nas manchetes de ontem. Ganância, inveja, traição e redenção aparecem quando um magnífico rei é forçado a fazer uma escolha difícil.

 

Bali Maharaja havia conquistado este planeta inteiro, e o seu poder era tão grandioso que ele superou até mesmo os devas, os encarregados dos planetas celestiais. Bali era uma alma pura e piedosa, mas havia nascido em uma família de materialistas ateístas. O autor do Srimad-Bhagavatam denomina tais ateístas de asuras, ou demônios, pois, ainda que tivessem grandes riquezas, poderosos exércitos e belos reinos, eles permaneciam sem consciência da majestade do Senhor Supremo

 

A motivação dos asuras era um ganho materialista, e até mesmo a religião era uma simples ferramenta para obter mais opulência material. Com a conquista dos planetas celestiais por parte de Bali Maharaja, uma tremenda onda de poder demoníaco alarmou profundamente os devas. Embora os devas tenham riquezas além do que podemos imaginar, eles são, em última análise, servos do Senhor. Assim, naturalmente, em sua angústia, eles recorreram ao Senhor Supremo com orações, solicitando Sua intervenção.

 

Quando Deus decide envolver-Se com os assuntos deste mundo, Ele geralmente vem em uma forma que demostre Seu talento pela surpresa e pelo humor. Talvez os devas estivessem visualizando o Senhor na forma de um guerreiro assustador, devastando o formidável exército de Bali Maharaja. Eles certamente não esperavam a forma que o Senhor de fato assumiu, a de um jovem anão brahmana, chamado Vamana. Certamente, ninguém poderia causar menos ansiedade no coração de um poderoso rei do que essa pequena e pacífica criança. No entanto, foi Vamana quem fez Bali Maharaja curvas seus joelhos.

 

 

Quando Deus faz Seu advento, Ele geralmente o faz assumindo uma forma surpreendente.

 

Temos que falar um pouco sobre Bali Maharaja. Muito antes, em outra história, ele havia sido morto e depois ressuscitado por um poderoso místico, Shukracharya. Shukracharya agia como o maior conselheiro de Bali Maharaja, tanto em questões materiais quanto espirituais. Para os demônios, os assuntos espirituais consistem na realização de sacrifícios apropriados para aumentar sua riqueza e seu poder. Não subestime a importância de Shukracharya para Bali Maharaja; naqueles tempos, um rei como Bali preferia morrer a desobedecer a seu mestre espiritual.

 

Vamana na Corte de Bali

 

Então, o doce jovem brahmana foi até a corte de Bali Maharaja. Vamana era tão refulgente e belo que ficou imediatamente evidente que Ele não era um brahmana qualquer. Era o costume da época que a classe governante servisse aos brahmanas santos. Então, quando Vamana entrou no palácio de Bali, ele observou o costume de lavar os pés de Vamana.

 

Embora Bali Maharaja e sua família fossem asuras, eles ainda compreendiam a necessidade de uma classe de pessoas de coração puro, apta a realizar austeridades e sacrifícios para o benefício de todos. Esse tipo de adoração aos brahmanas é algo muito diferente do serviço devocional; é mais como um acordo espiritual comercial.

 

O ar parecia cheio de energia, e Bali Maharaja entendeu que aquela era uma pessoa divina. Com a humildade nascida de sua piedade natural, Bali Maharaja colocou a água dos pés de Vamana em sua cabeça.

 

Shukracharya não ficou satisfeito ao ver tudo isso. Ele foi instantaneamente capaz de perceber a verdadeira identidade de Vamana, e tal conhecimento o encheu de medo, que apenas aumentava à medida que ouvia o rei Bali oferecer a Vamana qualquer bênção que Ele desejasse. Ali estava uma pessoa que poderia lhes tomar tudo, toda a riqueza e o poder que Bali Maharaja adquiriu ao longo de tantos anos de conquistas triunfantes. No entanto, o Senhor Vamana fez o mais humilde dos pedidos. Tudo o que ele pediu foram três passos de terra. E, olhando o jovem anão à sua frente, Bali só podia pensar que seriam três passos bem pequenos. Então, Bali tentou convencer Vamana de uma oferta mais substancial, talvez uma ilha inteira. Mas Vamana negou, declarando filosoficamente que três passos de terra eram tudo o que um humilde brahmana precisava. Bali concordou com o pedido de Vamana.

 

Um Guru Ensandecido

 

Shukracharya, porém, não podia tolerar isso. “É um truque”, ele sussurrou a Bali Maharaja. “Obviamente, esse pequeno brahmana é o Senhor Supremo, sempre preocupado com o bem-estar dos devas, nossos inimigos. Se você concordar em dar a Ele alguma coisa, perderá tudo.”

 

 

Shukracharya aconselha seu discípulo exasperadamente.

 

Que belo mestre espiritual esse Shukracharya! Ele exigiu que Bali retratasse sua promessa de conceder os três passos de terra, basicamente dizendo que, se Bali não o fizesse, ele poderia ir para os planetas infernais. Embora fosse um grave pecado mentir para um brahmana, e o que dizer de um brahmana tão magnífico como Vamana, Shukracharya insistia que Bali não poderia ser culpado por quebrar sua promessa, pois ele estaria apenas defendendo seu reino que fora duramente conquistado.

 

O intenso sofrimento enfrentado por Bali Maharaja naquele momento dificilmente pode ser entendido. Ele sabia, com a mais profunda convicção em seu coração, que Vamana realmente era o Senhor Supremo. E, apesar de sua criação, ele entendia que tudo neste mundo pertencia verdadeiramente a Ele. Ainda assim, ele estava diante de uma ira sem precedentes vinda do mesmo homem que lhe deu a vida e o guiou tão bem ao longo dos anos. Teria sido fácil, tão fácil, apenas se render às instruções do seu mestre espiritual, ignorando a verdade martelando em seu coração. Até onde sabia Bali, as maldições de Shukracharya eram precisas, e este presente de três passos de terra resultaria em sofrimento eterno para Bali.

 

Bali falou respeitosa, mas firmemente, com Shukracharya, explicando sua decisão de cumprir a promessa que havia feito ao brahmana Vamana. De toda forma, toda a maravilhosa opulência que ele havia adquirido seria perdida no momento da morte, ele disse. Depois de sua morte, tudo que restaria dele seria o legado sombrio de sua mentira, de sua traição ao brahmana. Já que o Senhor Supremo é, na verdade, o beneficiário de todos os sacrifícios elaborados de Shukracharya, o que importaria se Bali simplesmente entregasse tudo hoje?

 

Bem, nada disso convenceu Shukracharya. Furioso, ele amaldiçoou seu antigo discípulo amado a perder toda a sua opulência. Sendo um yogi muito poderoso, Shukracharya poderia de fato fazer isso acontecer.

 

Aparentemente imperturbável, Bali lavou novamente os pés de Vamana e colocou a água sobre sua própria cabeça. Então, ele convidou Vamana a dar seus três passos de terra.

 

Três Grandes Passos

 

Shukracharya estava certo sobre uma coisa: era um truque. De uma só vez, Vamana cresceu a um tamanho tremendo e, com Seu primeiro passo gigantesco, cobriu todo o universo. É difícil visualizar, mas o Srimad-Bhagavatam nos ajuda descrevendo como tudo no universo passou a fazer parte do corpo de Vamana. As superfícies terrestres estavam no topo de Seus pés, todas as aves do universo em Seus joelhos, os sete oceanos em Sua cintura e assim por diante. Quando Bali observou essa incrível visão, ele ficou deslumbrado. Seus amigos asuras, entretanto, estavam muito assustados. Uma coisa era especular sobre a potência desse divino jovem brahmana, e outra bem diferente era ver o universo inteiro absorto em Sua enorme forma.

 

 

Vamana revela Sua forma gigantesca ao receber os passos de terra.

 

Então, Vamana deu Seu segundo passo. Esse passo se estendeu para tão longe, até perder a vista, para além de todos os reinos celestiais, que cobriu tudo o que existia. Após esse passo, não havia sobrado nenhum espaço para o terceiro passo. A essa altura, os demônios asuras, amigos de Bali, estavam extremamente furiosos e houve um pequeno confronto com os devas, mas os demônios perderam ao final. E o próprio Bali foi preso e humilhado por falhar no cumprimento de sua promessa dos três passos.

 

Nada a Se Apegar

 

Então, Vamana parou diante do minúsculo Bali e exigiu: “Onde posso dar Meu terceiro passo?”

 

Em um dos momentos mais bonitos de todo o Srimad-Bhagavatam, Bali abaixa sua cabeça e responde: “Por favor, dê o terceiro passo de Seus pés de lótus em minha cabeça.”

 

É a isso que Prahlada Maharaja se referia quando falou sobre atma-nivedana: esse incrível momento de amor e realização, quando não há nada mais em que se refugiar, e nenhuma razão para temer qualquer perda.

 

Para pouquíssimos, o teste vem com imensa clareza e dramaticidade; para a maioria de nós, nos lembrarmos de quem realmente somos e quem realmente controla tudo ao nosso redor é uma batalha constante, a cada minuto. Nós nos apegamos à nossa coleção de posses, ao nosso papel na comunidade, às nossas louváveis práticas religiosas. Talvez haja dias em que ansiemos por esse ato único, determinante. Mas as verdadeiras batalhas estão naqueles momentos em que o ressentimento aflora (“Como ele ousa fazer isso comigo?”), ou quando o controle vacila (“Eu nunca disse para fazer isso!”), ou quando a inveja ardente surge (“Parece bom, mas ela deve ter trapaceado!”).

 

Nossas chances de atma-nivedana vêm com mais frequência na privacidade dos nossos corações, quando Krishna está removendo nossos apegos e nós respondemos com gratidão ou com raiva. Estarmos dispostos a abrir mão do nosso senso de superioridade em relação aos outros, afastarmo-nos de insultos com um coração leve, sentirmos as necessidades do outro mais profundamente do que nossas próprias necessidades – essas são intimidades preciosas que Krishna nos oferece repetidamente na vida humana. Às vezes, é tão simples quanto acenar com a cabeça ou assinar um cheque. E, às vezes, é tão complicado quanto mudar seu meio de subsistência. Para cada alma, as expressões da devoção são altamente pessoais e imprevisíveis.

 

Para Bali Maharaja, o final foi feliz, muito mais feliz, na verdade, do que se ele tivesse se apegado ao seu reino enorme. Vamana concedeu a Bali um planeta inteiro para governar, e Ele mesmo seria o porteiro. O verdadeiro prêmio não foi a amplitude do novo reino de Bali, mas a oportunidade da associação eterna com o Senhor Supremo.

 

Além da Entrega dos Bens

 

Então, uma pessoa pode reivindicar a recompensa do serviço devocional só por abrir mão de todas as suas coisas? Muitos já tentaram, mas, para a maioria, abandonar tudo é simplesmente renunciar a responsabilidades que já se tornaram indesejáveis de qualquer forma. Para outros, a “renúncia” tem real fundamento no medo de intimidade, ou medo do fracasso, ou até mesmo medo do sucesso. Alguém pode renunciar a todas as suas posses e embarcar em uma vida monástica por milhares de razões que nada têm a ver com se entregar ao Senhor Supremo. Por outro lado, uma pessoa que é capaz de se desapegar das armadilhas materialistas está em uma posição vantajosa para começar a trabalhar nos apegos mais sutis da mente e da inteligência. O impulso original pode ser egocêntrico, mas certamente é mais fácil se desapegar de seus bens se você não tem nenhum.

 

Um bom sistema de dízimo pode ajudar a afrouxar nosso controle sobre nosso bem-estar material. Mas tenha a certeza de que está doando seu dinheiro a alguém que realmente irá gastá-lo a serviço do Senhor. Se você apoiar as atividades das almas de coração puro, você receberá algum benefício. Se jogar seu dinheiro para uma instituição de caridade que é corrupta, ou não é centrada em Deus, você estará se privando da chance de prestar um serviço real.

 

Com uma elegante simetria, o nono processo do serviço devocional incorpora os oito primeiros. Nós precisamos falar, por que, então, não falar sobre Deus? Nós precisamos trabalhar, servir, então por que não servir a Deus? Nós precisamos de nossas histórias, nossas memórias, nossas orações, então por que não construir tudo isso ao redor de Deus?

 

Depois de explicar sobre os nove processos do serviço devocional, Srila Prabhupada destaca um devoto excepcional, Maharaja Ambarisha, que praticou todos os nove. Seria muito apropriado encerrar esta série com uma descrição do memorável Maharaja Ambarisha:

 

“O rei Ambarisha fixava sua mente nos pés de lótus do Senhor Krishna, ocupava suas palavras em descrever a morada do Senhor, suas mãos em limpar o templo do Senhor, seus ouvidos em ouvir os passatempos do Senhor, seus olhos em ver a forma do Senhor, seu corpo em tocar os corpos dos devotos, seu nariz em cheirar o aroma das flores oferecidas aos pés de lótus do Senhor, sua língua em saborear as folhas de Tulasi oferecidas a Ele, suas pernas em caminhar aos lugares sagrados onde estão situados os templos do Senhor, sua cabeça em prestar reverências ao Senhor, e seus desejos em satisfazer os desejos do Senhor... e todas essas qualificações o fizeram apto a se tornar um mat-parah, um devoto do Senhor.” (Srimad-Bhagavatam 9.4.18-20)

 

Tradução de Lilesvari Devi Dasi. Revisão de Bhagavan Dasa.


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