sábado, 4 de dezembro de 2021

"TERCEIRA VIA"Chegada de leão, saída de cão ― A tragédia do juiz candidato

Com a biografia emoldurada pela classe média ex-petista, antipetista e protopetista, o ex-juiz e ex-ministro tem diante de si o desafio de aprender a ser contrariado
2 de dezembro de 2021 por Cristian Derosa
“O Brasil não precisa de um líder com a voz bonita”, admitiu Sérgio Moro em seu discurso de filiação ao Podemos, com sua costumeira voz fraca, transparecendo insegurança, quase como se estivesse sempre à beira do choro. E completou: “mas de líderes que ouçam e atendam a voz do povo”. A estratégia era afastar o candidato do estereótipo que a voz associa, o do homem fraco e inseguro.
Como juiz e funcionário público, Moro demonstrou diversas vezes sua dificuldade de enfrentar a contrariedade, o que poderá prejudicar a eventual carreira política. Sua pré-campanha tem na biografia e na autoimagem o desafio mais difícil.
A carreira de Sérgio Moro foi meteórica. Começou como um astro da justiça, incandescente, implacável e popular, para cair inexperiente na cova política das negociações e sucumbir diante da primeira contrariedade. De magistrado técnico a menino mimado, Moro saiu do governo depois de ser cobrado publicamente pelo presidente numa reunião por sua omissão diante das prisões ilegais contra cidadãos na pandemia. Aquela humilhação pública não parecia combinar com a biografia tão laboriosamente construída.
Mas a gota d’água da reunião apenas concluiu uma série de desaforos que a imagem do então herói nacional vinha sofrendo, como quando foi criticado diante da tentativa de nomear a ativista desarmamentista Illona Szabo para um cargo no ministério. Ligada ao grande financiador da extrema-esquerda no mundo, Geroge Soros, Szabo foi rejeitada pela ala conservadora então atuante no governo, após o alerta de sites e redes sociais da base. A imagem de técnico e anti-ideológico fora maculada. “Este governo não te valoriza”, deve ter dito a esposa Rosângela.
A tentativa da nomeação de Szabó não foi um flerte isolado com o globalismo. Em sua tese de doutorado, Moro já havia defendido o ativismo judicial em nome de “valores” que os senhores do mundo consideram elevados e dignos do destino do homem. Como o elogio de Moro à decisão da Suprema Corte norte-americana no caso emblemático Roe versus Wade, que legalizou o aborto no país.
Sua esposa Rosângela já havia manifestado a opinião favorável ao aborto nas redes sociais, para espanto de alguns conservadores que ainda admiravam o “juiz antipetista”. Talvez tenham sido as palavras da esposa que o foram conduzindo para a maior exposição de sua verdadeira personalidade.
Moro havia se exonerado do pódio da sua vida, a magistratura. Havia deixado para trás a sua galinha dos ovos de ouro na expectativa de se tornar um ícone, quem sabe fazer história, no combate à corrupção. A saída do governo sinalizou o início de uma longa queda. Aparentemente, tudo estava ameaçado e parecia ter sido um imenso equívoco. Um erro que era preciso disfarçar e desviar do foco para fazê-lo parecer uma vitória. Uma tarefa hercúlea que ocupará a quase totalidade do programa de sua eventual campanha.
A imagem do herói que havia aprisionado o monstro Lula no fundo do mar despencou. Foi maculada pelas atitudes (e a falta delas) do então ministro que já não era mais herói. Tanto a sua ousada auto-exoneração em aparente sacrifício patriótico, quanto a entrada na política, tudo estava, na verdade, apoiado no fugaz elogio vindo da classe média brasileira, sempre seduzida por um juiz técnico, uma estampa de homem correto.
Ao sair do governo, acusando o presidente de interferir na Polícia Federal que julgava a sua milícia privada desde a Lava Jato, acabou sendo acusado de Judas e visto como um fracassado. Humilhado, com a imagem arranhada e ofendida, chegou a comemorar a prisão dos apoiadores do governo pelos inquéritos persecutórios do STF, perdendo a estampa do técnico jurídico ao associar-se às fileiras do estamento. Fora do poder institucional, Moro buscou abrigo no poder real: na mídia dos globalistas, os mestres com os quais flertou no doutorado.
O zelo com a biografia, explicitado numa das icônicas frases que precederam (e precipitaram) a sua brusca saída do governo, pode ser uma das marcas mais características do que representa o ex-juíz Sérgio Moro. Elevado à posição de herói nacional por sua atuação aparentemente técnica da Operação Lava Jato, a imagem do juiz vestido de Super-Homem varreu o país que já havia feito o mesmo com o ex-ministro Joaquim Barbosa.
É impossível entender a imagem de Sérgio Moro sem perceber a Lava Jato como uma espécie de Liga da Justiça, elevada a patrimônio nacional da classe média antipetista que desejava ver Lula preso pelo maior crime que povoa o imaginário dessa elite: a lavagem de dinheiro, a propriedade de um triplex…
Nascido em Maringá, interior paranaense, Moro é filho de professores e cedo trilhou o caminho da magistratura, talvez ambicionando uma biografia digna de ser contada. A biografia carece de relações políticas ou ideológicas e é marcada por um tecnicismo jurídico e acadêmico. É aí que reside a grande aposta do seu marketing eleitoral. A carreira técnica é cara à elite brasileira que sempre viu o desenvolvimento e a prosperidade do primeiro mundo com olhos de cachorro em frente ao açougue.
Foi como professor universitário substituto que conheceu Rosângela, com quem casou e teve dois filhos. Da carreira acadêmica até a magistratura, a busca pela relevância profissional pode explicar a defesa do ativismo modernoso de Dworking, guru que ocupa lugar de destaque na carreira do ministro Barroso (ao lado de Felipe Neto e João de Deus).
Mas o juiz maringaense só chamou a atenção a partir da operação Lava Jato, quando chegou ao cume da carreira ao ser retratado na série O Mecanismo, da Netflix. Na série, Moro é um juiz implacável, durão e discreto, que anda de bicicleta com proteções e toma decisões difíceis de maneira impassível. Os espectadores da série engoliram a imagem que a realidade acabou desconstruindo. A imagem do homem correto, juiz técnico, foi sendo aos poucos enterrada pela do homem inseguro e egocêntrico que tropeça na própria biografia na tentativa de salvá-la.
Agora, se a Lei da Ficha Limpa permitir que Moro seja mesmo candidato, a sua imagem se consagrará como o seu maior desafio, seu maior problema.
Como candidato, Moro apostará exatamente na desconstrução de si mesmo como estratégia de construção do personagem: o homem correto, cumpridor das leis, técnico, impassível e seguro. Enfim, o personagem enriquecido pela estética da série. Tudo para esconder a face do bajulador das grandes narrativas, das forças poderosas e utopias mais hegemônicas em nome da construção de uma verdadeira torre de Babel que se tornou a sua inefável biografia.
 
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