sexta-feira, 19 de maio de 2023

As Forças Demoníacas: Os Quatro Maras



Dr. Alexander Berzin

Mara na Mitologia Hindu

Na mitologia Hindu, Mara (bdud) é equivalente a Kama (‘dod-pa’i lha), o deus do desejo. Essa equivalência também é aceita no budismo. A figura búdica do Kalachakra, por exemplo, tem Kama embaixo de seu pé direito, representando todos os quatro maras. Kama era um dos filhos de Krishna e Rukmini, e casado com Rati. Os deuses enviaram Kama para tirar Shiva do estado meditativo, a fim de que ele se interessasse por Parvati e juntos tivessem um filho, Karttikeya, que, segundo profecias, quando tivesse sete anos de idade conseguiria matar o demônio Taraka. Para tirar Shiva do estado meditativo, Kama lançou cinco flechas:

  • Para deixar estático (dga’-byed)
  • Para deixar desejoso (sred-byed)
  • Para deixar estupefato (rmongs-byed), ou seja, desatento ou senil.
  • Para deixar magro, emaciado e seco (skem-byed), que nesse contexto pode significar que ele ficaria fatigado, com fome e com sede, de forma que abandonaria a meditação. Em outro contexto, no entanto, talvez seja pelo trabalho de Mara que nos tornemos secos, amargos, sem o sumo da compaixão.
  • Para deixar morto, ou seja, deixar Shiva preocupado em morrer durante a meditação, fazendo-o abandonar o estado meditativo por medo.

Essas cinco flechas são os cinco obstáculos considerados os trabalhos de Mara. Shiva irritou-se com Kama e carbonizou-o com o fogo de seu terceiro olho, porém, mais tarde, atendendo a um pedido de Rati, permitiu que ele renascesse como Pradyaumna. Quando Pradyumna completou seis anos de idade ele foi roubado pelo demônio Shambara, que o jogou no mar por causa da profecia que dizia que Pradyumna o mataria. No mar, o menino foi engolido por um peixe, que foi pescado por um pescador, que tirou o menino do estômago do peixe e o deu para a amante de Shambhara, Mayavati, que o criou. Mayavati, por sua vez, acabou desenvolvendo desejo por Pradyumna, tamanha era sua beleza, mas Pradyumna a rejeitou porque pensava que ela era sua mãe. Então Mayavati lhe revelou que ele era filho de Krishna e Rukmini, e que Shambara o havia atirado ao mar. Pradyaumna ficou com raiva de Shambara e o matou usando seu poder de emanação. Então Mayavati o levou à casa de Krishna e Pradyumna e Mayavati se casaram.

Portanto, Mara pode ser personificado na forma de um ser divino. Na cosmologia budista ele vive no mais elevado dos reinos divinos do plano dos desejos sensoriais (Reino dos Desejos), no topo do Monte Meru. Esse lugar é chamado de Paraíso Daqueles Que Tem o Poder de Emanar (gZhan-‘phrul dbang-byed, sânscr Paranirmita-vashavartin). Os budistas normalmente dizem que esse paraíso é o lugar onde os deuses têm o poder de apreciar a emanação dos outros, mas os termos tibetano e sânscrito fazem mais sentido quando entendidos no contexto da mitologia hindu.

Mara na Mitologia Budista

No Budismo, Mara personifica as visões não-budistas incorretas, que foi a última coisa que o Buda precisou superar com o terceiro olho da sabedoria; em um episódio análogo ao da mitologia hindu, em que Kama tenta perturbar Shiva e ele o destrói com o fogo de seu terceiro olho. Vários relatos em vários sutras descrevem o Buda derrotando Mara. No Sutra do Esforço (Padhana Sutta) no cânone Pali, por exemplo, Mara aproximou-se de Shakyamuni enquanto ele fazia práticas ascéticas dizendo “Você está tão magro e pálido. Não busque a liberação — o que significaria afastar-se o mundo — mas fique no mundo e faça o bem”. Em outras palavras, Mara intima Shakyamuni a viver uma vida mundana, apesar de dedicada a ajudar os outros, e manda um exército para derrotá-lo. Shakyamuni especificou os exércitos de Mara da seguinte forma: desejo sensual, descontentamento, fome, sede, anseio, preguiça, medo, indecisão, inquietação, desejo pelas coisas transitórias da vida (ganhos, elogios, honra e fama) e elogiar a si próprio enquanto critica os outros. O Buda percebeu que, para superar tudo isso, ele teria que parar de identificar-se como os pensamentos sobre essas coisas.

Mais tarde, Mara apareceu como um fazendeiro pobre e como um velho brâmane bufão — simbolizando o mundo. Shakyamuni reconheceu Mara em todos os agregados que apareceram, e disse que Mara não tinha como se esconder. Shakyamuni o viu como a criatura patética que era, simbolizada pelas formas patéticas do fazendeiro e do brâmane. Mara então apareceu como desastres naturais e feras perigosas, mas Shakyamuni não tinha medo da morte. Mara mandou suas três filhas para que tentassem seduzi-lo, mas elas não tiveram sucesso. Então Mara tentou enganar Shakyamuni concordando que não havia nada a temer na morte e que portanto poderia ignorá-la. Mas, seguindo essa linha de raciocínio, ele também tentou convencer Shakyamuni de que a vida é longa e portanto ele deveria simplesmente aproveitá-la. Shakyamuni disse não, a vida é curta e devemos viver como se nosso cabelo estivesse pegando fogo. A qualquer momento a vida pode terminar, abruptamente, portanto, devemos aproveitar imediatamente a preciosidade de nossa vida humana. Assim, Mara desistiu e retirou-se.

Os Quatro Maras

O termo mara deriva da raíz sânscrita mr, que significa assassinar. Portanto, mara é aquilo que assassina ou causa interferência em nossa vida, como seres limitados, e em nossas ações construtivas que nos levam aos três objetivos espirituais: renascimentos melhores, liberação e iluminação. Também explica-se mara como “aquilo que dá fim” (mthar-byed, Skt. antaka) – aquilo que dá um fim à prática espiritual.

Existem quatro tipos de mara:

  • O mara da morte (O Senhor da Morte)
  • O mara das emoções e atitudes perturbadoras
  • O mara dos fatores agregados da experiência (os cinco agregados, skandhas)
  • O Mara que é filho dos deuses.

O Mara da Morte

A morte, logicamente, é o que mais interfere em nossa prática espiritual. Não há como ter certeza de que nossa próxima vida será uma vida humana preciosa, com todas as folgas e oportunidades que nos permitem praticar sem obstáculos. Mesmo que tenhamos tal renascimento, precisamos começar novamente o caminho espiritual como criança. Além disso, a morte é um evento incontrolavelmente recorrente ao final de cada vida.

Portanto, Mara também é considerado Yama (gShin-rje), o Senhor da Morte (‘Chi-bdag); e no sistema do anuttarayoga tantra, o Buda é Yamataka (gShin-rje gshed), Aquele Que Dá Fim à Yama. Entretanto, no tantra, Yama não é simplesmente a morte em si, mas existem três níveis de Yama, que detalham os três níveis daquilo que está envolvido na morte.

  • Yama exterior - é a morte em si.
  • Yama interior - são as emoções e atitudes perturbadoras, que ativam o rescaldo kármico e nos propulsionam em direção a renascimentos subsequentes, perpetuando o ciclo de renascimento e morte.
  • Yama oculto ou secreto - são as três mentes conceituais mais sutis que criam as aparências de uma existência verdadeira: limiar (nyer-thob, quase-atingimento, aparência preta), difusão (mched, aumento, aparência vermelha), e aparecimento (snang, aparência, aparência branca). Cada renascimento começa com essas três mentes conceituais sutis criando aparências que parecem existir verdadeiramente. Tendo por base a falta de consciência, acreditamos que essas aparências correspondem à realidade, e assim nos agarramos à existência verdadeira e temos todas as emoções e atitudes perturbadoras que derivam da falta de consciência e do agarramento.

Se ignorarmos a morte, seis obstáculos podem surgir e interferir em nosso estudo e prática espiritual; são eles:

  • Não nos lembrarmos das medidas do dharma
  • Mesmo que nos lembremos delas, não as colocarmos em prática.
  • Mesmo que as coloquemos em prática, não o fazer com pureza.
  • Não ter a determinação para praticar fervorosamente o tempo todo.
  • Devido às nossas ações destrutivas, não estarmos aptos a obter a liberação.
  • Morrer com arrependimentos.

Não praticamos o dharma com pureza porque, por ignoramos a morte, somos pegos nas oito situações transitórias da vida (‘jig-rten-pa’i chos-brgyad, os oito dharmas mundanos):

  • Elogio ou crítica
  • Boas notícias ou más notícias — inclusive ter ou não ter notícias das pessoas que amamos; ou ouvir sons agradáveis ou desagradáveis
  • Ganhos e perdas — tais como dinheiro e posses
  • Coisas darem certo ou darem errado — tal como estarmos saudáveis e felizes ou doentes e depressivos.

Ficamos contentes e encantados com as primeiras situações dos pares acima e ficamos deprimidos, desencantados e desapontados como as segundas situações.

Mas podemos manter equanimidade diante das oito situações transitórias da vida, adotando as dez atitudes internas que são como joias, da tradição Kadam (bka’-gdams phugs-nor bcu). Esse conjunto de dez atitudes é composto pelas quatro aceitações confiantes (gtad-pa bzhi), três convicções adamantinas (rdo-rje gsum), e as atitudes maduras em relação a ser expulso, a encontrar e a conquistar (bud-rnyed-thob gsum).

As quatro aceitações confiantes são:

  • Estarmos dispostos a aceitar com total confiança as medidas do dharma, sendo esse nosso posicionamento mais profundo em relação à vida.
  • Estarmos dispostos a aceitar até mesmo virar um mendigo, sendo esse nosso posicionamento mais íntimo em relação ao dharma.
  • Estarmos dispostos a aceitar até mesmo a morte, sendo esse nosso posicionamento mais íntimo em relação a virar um mendigo.
  • Estarmos dispostos a aceitar até mesmo morrer sozinho e sem amigos em uma caverna vazia, sendo esse nosso posicionamento mais íntimo perante a morte.

As três convicções adamantinas são:

  • Seguir com nossa prática do dharma sem nos importar com o que os outros pensam à nosso respeito
  • Manter sempre nossos compromissos e a consciência profunda
  • Seguir continuamente com nossa prática sem nos deixar levar por preocupações inúteis.

As atitudes maduras em relação a ser expulso, a encontrar e a conquistar são:

  • Estar disposto a ser expulso do grupo das assim-chamadas pessoas “normais”.
  • Estar disposto a encontrar-se na mesma posição hierárquica de um cachorro.
  • Estar totalmente envolvido na conquista da posição divina de um Buda.

É lógico que, em um nível mais profundo, só conseguiremos vencer o mara da morte quando tivermos uma compreensão da vacuidade, atingido a liberação e não estivermos mais sujeitos à morte e ao renascimento samsárico.

O Mara das Emoções e Atitudes Perturbadoras

Emoções e atitudes perturbadoras, (nyon-mongs, sânscr. klesha), interferem enormemente em nosso estudo e prática espiritual. As principais são desejo e apego, hostilidade e raiva, ingenuidade, orgulho, indecisão e atitudes perturbadoras relacionadas à nossa visão da realidade, como uma visão enganosa sobre coisas transitórias, por exemplo.

Quando sentimos que alguma dessas emoções e atitudes perturbadoras é muito forte, podemos praticar tonglen (gtong-len, dando e recebendo) pensamos em todos os outros seres que tem a mesma emoção ou atitude perturbadora e que isso não é um problema só nosso, mas de todo mundo. É razoável pensarmos dessa forma porque esse é um problema que afeta a todos os seres samsáricos e nós fazemos parte desses seres, portanto, precisamos lidar com isso por todos os seres. É como se fossemos uma mulher que estivesse enfrentando preconceito no ambiente de trabalho. O preconceito contra mulheres não seria um problema só nosso, pois é um problema de todas as mulheres. Portanto, para nos livrarmos do preconceito que sofremos por ser mulher, precisamos enfrentar o preconceito contra todas as mulheres.

No Treinamento da Mente em Sete Etapas (Blo-sbyong don-bdun-ma) por Geshe Chaykawa (dGe-bshes ‘Chad-kha-ba), uma das quatro ações (sbyor-ba bzhi) da etapa de transformar as condições adversas no caminho para a iluminação é fazer oferendas aos espíritos maléficos (maras) e pedir a eles que nos deem circunstâncias mais difíceis. Essa prática de “alimentar o demônio” é parecida com o tonglen. Mas aqui, nós primeiro praticamos o “dar” e depois pedimos ao demônio que nos ajude a receber mais sofrimento dos outros. Na prática de Vajrayogini, e também em outros rituais tântricos de oferendas, alimentar os demônios é parte da prática de fazer oferendas aos vários convidados: especialmente aos convidados que são nossos inimigos.

O Mara dos Agregados

O mara dos agregados refere-se aos agregados maculados (zag-bcas-kyi phung-po, agregados contaminados). Assim como Shakyamuni identificou que o sofrimento permeia todo o samsara (khyab-byed-kyi sdug-bsngal), ele identificou Mara em todos os agregados.

No Tesouro de Tópicos Especiais de Conhecimento (Chos mngon-pa’i mdzod, sânscr. Abhidharmakosha), Vasubandhu define “fenômenos maculados” como fenômenos não-estáticos (impermanentes) que derivam de uma atitude ou emoção perturbadora. Quando esses fenômenos são objetos de cognição de nossa mente limitada o resultado é mais emoções e atitudes perturbadoras no nosso continuum mental. Também são maculados os cinco fatores agregados que acompanham as emoções e atitudes perturbadoras. Portanto, Vasubandhu especifica os fenômenos maculados como sendo todos os fenômenos não-estáticos, excetuando-se aqueles que constituem a quarta nobre verdade.

Na Antologia de Tópicos Especiais de Conhecimento (Chos mngon-pa kun-las btus-pa, sânscr. Abhidharmasamuccaya), Asanga desenvolve mais esse tópico e considera a definição de Vasubandhu como apenas uma das categorias de fenômenos maculados. Asanga inclui entre esses fenômenos os fatores agregados que surgem do anseio e que geram outras situações samsáricas. Portanto, essa é a situação em que os fatores agregados de nossa experiência derivam do anseio e da inconsciência (que ativam os ventos kármicos), eles contém inconsciência e perpetuam a inconsciência.

Portanto, o “hardware” dos nossos agregados — nossa mente e corpo limitados — é o mara dos agregados, porque nos limita com mais e mais sofrimento e mata nossas chances de liberação

O Mara Que É Filho dos Deuses

Originalmente, parece que o Mara que é filho dos deuses refere-se a Kama, filho do deus Krishna, e a sua tentativa de interferir na meditação de Shiva. Os budistas consideram esse mara como sendo as visões enganosas dos não-budistas ou, conforme a escola Prasangika, até mesmo as perspectivas dos sistemas inferiores de filosofia budista que, apesar de úteis, devem ser superadas.

Esse mara também pode referir-se às 62 visões errôneas (lta-ba ngan-pa, visões más) propostas pelos 18 não-budistas extremistas (mu-stegs, sânscr. tirthika). E ainda, em A Filigrana de Realizações (mNgon-rtogs rgyan, sânscr. Abhisamayalamkara), Maitreya enumera 46 falhas que interferem no desenvolvimento das sabedorias aplicáveis aos bodhisattvas (sbyor-ba’i skyon). Essas falhas também são consideradas o trabalho de Mara que é o filho dos deuses.

Os Quatro Maras de Acordo com o Kalachakra

Em Notas sobre a Suprema Mandala do Glorioso Kalachakra, Fonte de Todas as Boas Qualidades (dPal dus-kyi ‘khor-lo’i dkyil-chog yon-tan kun-’byung-gi zin-bris), Buton (Bu-ston Rin-chen grub) explica que no Kalachakra os quatro maras tem o seguinte significado:

  • O mara dos agregados refere-se aos obscurecimentos do corpo, que são imputados na gota de energia criativa sutil do despertar.
  • O mara das atitudes perturbadoras refere-se aos obscurecimentos da fala, que são imputados na gota de energia criativa sutil do sonho.
  • O mara do Senhor da Morte refere-se aos obscurecimentos da mente, que são imputados na gota de energia criativa sutil do sono profundo sem sonho.
  • O mara que é filho dos deuses refere-se a entrar externamente na inconsciência (phyi-rol-gyi ma-rig-pa la ‘jug-pa), que talvez refira-se ao obscurecimento associado com a quarta gota, a gota de energia criativa sutil da bem-aventurança. Talvez isso refira-se aos obscurecimentos da inconsciência, que fazem com que emitamos nossas energias sutis quando da bem-aventurança do orgasmo. Quando atingimos a bem-aventurada consciência imutável da vacuidade, podemos dizer que temos o comportamento totalmente puro da realidade (de-kho-na nyid-gyi tshangs-spyod), onde estamos sempre na imutável bem-aventurança (mi-‘gyur-ba’i bde-ba) e nunca sentimos a bem-aventurança da emissão orgástica (dzag-bde). Isso porque nossa mente permanece absorvida na clara luz da realização da vacuidade e não se afasta dela quando da geração das três mentes conceituais de criação de aparências, que são análogas à emissão orgástica. Referimos a essa conquista como ter um bastão vajra (rdo-rje dbyug-pa) para derrotar os maras. Ter um bastão vajra é uma das dez qualidade de um mestre vajra, de acordo com o Kalachakra.

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