Gabryella Garcia
Colaboração para Universa, em São Paulo
19/09/2022 09h30
O advogado de Mariana Ferrer, Júlio Cesar Ferreira da Fonseca, encaminhou na quinta-feira (15) um ofício solicitando a retirada do nome da modelo e influenciadora digital do projeto de lei 1837/22, de autoria do deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ), que sugere aumento de pena em caso de comunicação falsa de crime quando a suposta denúncia for relacionada a crimes sexuais. Para justificar sua proposta, o deputado usou como exemplo o caso de Mari Ferrer, alegando que ela mentiu ao dizer que foi estuprada.
Atualmente, a pena para o crime é de um a seis meses de prisão ou multa. Com a qualificadora proposta por Jordy, a pena passaria a ser de um a três anos mais multa. Além disso, o deputado também sugere que a pena seja aumentada se ocorrer um aborto por parte de quem denunciou falso abuso.
Lei Mari Ferrer é ferramenta na luta por respeito ao direito de denunciar
Em conversa exclusiva com Universa, Fonseca diz que a justificativa do deputado citando o caso de Mariana é mentirosa. Ele classificou a situação como absurda. O advogado também destacou que o caso envolvendo Mariana ainda está correndo, podendo ser alterada a sentença que absolveu André de Cargo Aranha.
"A situação é tão absurda que no próprio documento que absolveu Aranha por enquanto, o desembargador [Vogal Paulo Sartorato] diz que Mariana não mentiu em momento algum. A absolvição aconteceu pela falta de materialidade do estado de vulnerabilidade da Mariana, e não porque ela mentiu sobre o que aconteceu. Então, de onde ele tirou isso? Queremos justiça e a verdade, e se ele tem opinião sobre isso, que guarde para ele, mas não use a mentira para justificar um projeto de lei".
"O acórdão foi taxativo em dizer que Mariana não cometeu qualquer crime, seja de denunciação caluniosa, seja de falsa comunicação de crime", diz trecho do ofício enviado por Fonseca a Carlos Jordy, ao qual Universa teve acesso.
Ele também afirmou que após a apresentação do projeto, Mariana passou a receber diversas mensagens que citavam a proposta. "Ela ficou muito chateada e, por isso, me repassou. Perguntou o que eu achava e disse que se sentia em uma situação absurda."
Além do caso de Mariana, o deputado também citou como exemplo o caso entre Neymar e a modelo Najila Trindade, que o acusou de estupro em 2019, e o caso entre Johnny Depp e Amber Heard, em 2022. Com base nos três exemplos, Jordy argumentou que é "público e notório que tem se tornado recorrente a falsa comunicação de crimes atinentes à dignidade sexual no Brasil".
"Ele cita o caso de Johnny Depp, que aconteceu no exterior. E, pior, coloca esse tipo de situação como pública e notória no Brasil, então quer dizer que temos uma enxurrada. Cadê os dados estatísticos? De onde ele tirou isso?"
Júlio Cesar Ferreira da Fonseca, advogado de Mariana Ferrer, sobre projeto de lei que aumenta pena para falsa comunicação de crime e a cita
Por fim, Fonseca também afirmou que a proposta favorece estupradores e inibe mulheres a fazerem denúncias. "Parece que o PL foi feito para causar polêmica. A falsa comunicação é crime relacionado a qualquer episódio, não pode querer uma pena maior porque fez falsa comunicação de estupro. E o homicídio, como fica? Ele criou uma presunção de que o Brasil está sendo tomado por denúncias mentirosas sobre estupro, o que é um absurdo. Pode até ter algumas situações, mas é raro. A mulher não se submete e não se expõe a isso".
Universa tentou contato com o deputado Carlos Jordy, mas não obteve retorno até a publicação deste texto. O espaço permanece aberto para manifestações.
Proposta vai desencorajar denúncias
Para Tainã Góis, advogada e coordenadora do Núcleo de Direito e Diversidade da Escola Superior de Advocacia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a proposição é totalmente ideológica e não está baseada em nenhum tipo de evidência. Ela também diz que, "com toda a certeza", esse tipo de proposta acaba desencorajando mulheres que realmente foram agredidas sexualmente a não fazerem denúncias.
"Esse projeto é baseado em populismo penal", diz Tainã, que fala da complexidade dos casos de estupro e a dificuldade em comprová-los —nem por isso, porém, são denúncias mentirosas. "Muitas vezes, a condenação só existe com prova pericial, mas muitos casos não deixam marcas visíveis, então é um crime de difícil comprovação por geralmente só ter a vítima e o agressor como testemunhas oculares", diz Tainã.
"O segundo ponto é que os tribunais tendem a não reconhecer as várias modalidades do crime, porque o estupro não é apenas o carnal. Além disso, existe a revitimização das mulheres e um dos grandes elementos da defesa dos acusados é tentar desmoralizar a vítima como se ela pudesse ser estuprada porque não tem moral. Essa questão moral, a dificuldade de provas e a estratégia de desmoralizar as vítimas de crimes sexuais faz com que possa acontecer a absolvição. Se, no decorrer do processo não haver provas materiais do crime de estupro e não houver condenação, não se pode também afirmar que a denúncia inicial foi falsa".
Sobre a afirmação do deputado Carlos Jordy em sua argumentação de que é "notório que tem se tornado recorrente a falsa comunicação de crimes atinentes à dignidade sexual", ela destacou que esses dados não existem.
"Tem que fazer lei pensando em estatísticas, e não em casos excepcionais que com certeza existem, mas não são estatisticamente relevantes para virar lei. Considerando que a maior parte das mulheres não denuncia crimes sexuais e tem medo, todo esse populismo penal em torno das denunciadoras aumenta o medo. Caso aprovado [o projeto de lei], com certeza vai criar uma tensão a mais, para que as mulheres tenham ainda mais medo de denunciar."
A advogada ainda relembrou que Aranha foi absolvido pela falta de comprovação de que Mariana estaria em estado de vulnerabilidade, e não porque teria mentido. Os próprios desembargadores afirmaram que não houve qualquer crime cometido por Mari Ferrer. Ela ainda criticou a postura do deputado Carlos Jordy.
"É um projeto ideológico que não parte de uma realidade concreta. O feminismo baseia leis em evidências, e ele baseia tudo em uma narrativa. Não olhou para os dados nem estudou a questão", finaliza.
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