Se tem uma fase da minha vida da qual me envergonho foi aquela por volta dos 23 anos, já formado, trabalhando, pegando uma garota, com os músculos começando a aparecer, alguns livros na prateleira, um currículo que já não era folha branca e muito interesse em política, naquele afã de transformar o mundo. Por este quadro um tanto distante da maturidade, mas já desgarrado da adolescência, me sentia no pleno direito de sair dando palpite em tudo quanto é assunto, inclusive de bancar o indignado, o nervosinho, diante do caótico quadro geral da sociedade brasileira.
Usava o cabelo partido de lado, óculos sem armação, calças na altura da cintura e aquele sapato social preto de bico quadrado, crente de que ostentava uma masculinidade adulta e respeitável. Reforçava assim a posição superior de quem dá pitos nos amigos por qualquer desviozinho de moralidade, como um palavrão ou copo a mais de cerveja.
Era um típico almofadinha, com uma inteligência curiosa, alguma perspicácia, mas uma ingenuidade que beirava o ridículo. Não sabia sequer atrair uma mulher na rua, quanto mais compreender os jogos de poder que permeiam o universo tipicamente masculino da política.
Há uma cena magistral no filme Garota Exemplar em que Amy, uma esposa traída em busca de vingança, forja um sequestro do seu ex-namorado dos tempos de faculdade. Desi é um engravatado no estilo Deltan Dellagnol, certinho, engomado. Em um breve momento de despedida, Amy alarga a gravata de Desi com força e desajeita seu cabelo como quem diz: “vira homem, filho”. Em outro momento, durante um beijo, ela morde a sua boca, arrancando-lhe sangue, prendendo assim, progressivamente, o homem em sua teia, como uma espécie de mentora de sua puberdade tardia.
De tudo que a minha esposa já fez por mim nessa vida, nada foi mais importante do que isso: botar uma dose de caos na ordem. Porque a minha educação foi alemã por demais, a chegada de uma italiana na minha história reajustou os rumos, das ambições idealistas para um realismo mais humano. Troquei o piano clássico pelo rock and roll, o suco de uva pela Heineken, os livros de autoajuda pelo mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (…). Sem esta forja meio nietzschiana eu não seria o marido, pai e intelectual que me tornei.
Quando olho para Deltan Dallagnol, não consigo evitar a recordação daquela versão inofensiva de homem da qual, um dia, me orgulhei. Sim, ele é um bom cristão, pai de família, aparentemente honesto, portanto admirável sob a ótica horizontal da cidadania. Longe de mim defenestrar o sujeito, mas para o jogo político, não dá. É insuficiente.
Depois da absurda cassação de seu mandato como deputado federal pelo TSE, na última semana, fiz um esforço por encontrar palavras para defende-lo. Justo, pois o ex-procurador recebeu 344 mil votos, a maior votação do Paraná em 2022. A perseguição pelo poder judiciário a qualquer político que tenha se oposto, de forma contundente, ao atual governo é o início de uma ditadura silenciosa que ameaça a liberdade de todos os brasileiros em nome das tais instituições democráticas, o clímax da vitória da burocracia sobre o povo, uma briga que define a nossa república desde a sua fundação.
Mas quando vi a foto da coletiva de imprensa de Deltan com Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis e outros tantos expoentes do conservadorismo político lhe entregando o palco e o microfone, percebi que a minha obrigação era, novamente, abrir os olhos desta direita perdida.
Até quando irão se misturar com essa gentalha? Quantos dellagnols, dórias, aécios, joices, mandetas, felipes mouras e santos cruzes serão necessários para que aprendamos a nos aliar com os liberais sem lhes dar a faca e o queijo?
Percebam nesta pequena lista a evidência do que foram os primeiros meses de governo Bolsonaro: um desgaste desnecessário, uma perda de tempo e esforços para limpar, do seu entorno, os alpinistas sociais de suposta convicção liberal (porque a única convicção liberal que conheço, de fato, é o interesse pessoal).
Leia as palavras proferidas pelo próprio ex-coordenador da Lava-Jato em entrevista à Revista Veja, publicada em julho de 2020:
“Hoje o que nós vemos é uma radicalização do discurso. Muitas pessoas têm pregado o fechamento das instituições e o cometimento de crimes contra ministros. Isso é absolutamente descabido, antidemocrático e deve ser alvo de toda a força da lei, desde que dentro do devido processo legal. […] A democracia não corre risco, mas vemos com preocupação uma escalada das manifestações autoritárias tanto por meio de atos que pregam a intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo como por meio de arroubos verbais do presidente em que ele ou pessoas próximas afirmam que estaria chegando o momento de ruptura”.
Deltan Dallagnol, Revista VEJA
No auge da pandemia, em uma escalada de agressões às liberdades individuais por autoridades do poder executivo e judiciário, com Oswaldo Eustáquio na cadeia e Allan dos Santos sendo alvo de busca e apreensão em sua casa, nosso amigo Deltan estava mais preocupado com a verborragia de Bolsonaro, como bom paladino que é na defesa dos direitos abstratos no lugar da liberdade concreta.
Ele mesmo disse, na mesma entrevista: “Não estou defendendo nem acusando o governo Bolsonaro. Eu defendo causas…”.
Prudente, sofisticado e biografado.
Revisitando seu Twitter, aliás, percebi que há mais repostagens de Sergio e Rosângela Moro do que palavras do próprio. Mas em nada me admira que Dallagnol ainda seja um propagador do projeto Lava-Jato de país, mesmo depois da fracassada tentativa de Moro em chegar à presidência. O império da técnica e da formalidade, da auditoria no lugar do trabalho, ainda é um sonho de uma pequena parte da população brasileira, especialmente uma elite controlista, diplomada, que insiste em empreender uma contracultura modernista ao estilo de vida despojado da nossa tropicalidade brasileira.
Bolsonaro nunca se encaixou nesse estereótipo, ciente de que o formalismo é tão arma para a esquerda quanto a debandada, a arruaça. Por isso mesmo, foi rejeitado por este progenitor de Kim Kataguiri, o Sr. Dallagnol, que reserva sua espontaneidade apenas para o seu rentável empreendedorismo de palco, as palestras no Beach Park.
Claro que a obrigação dos conservadores, em mais um episódio preocupante de autoritarismo do Ovo togado, era ser solidária, fazer suas postagens indignadas, notas de repúdio, mas também deixar o cartucho de Dallagnol queimar enquanto ganha tempo na verdadeira briga pelo poder: a guerra cultural (esta é uma estratégia muito bem arquitetada pela esquerda: largar aliados para trás, satisfazendo a fome de sangue do inimigo, enquanto os soldados de frente avançam. Não foi o caso do impeachment de Dilma?).
Não precisava posar para a foto.
Porque o mesmo juridiquês pomposo que fez Dallagnol, Moro, Kataguiri e tantos engravatados destruírem a reputação de Bolsonaro perante as elites corporativistas, cientificistas e religiosas durante a última disputa presidencial, um golpe fatal contra a sua reeleição, é a linguagem utilizada pelos ministros do STF para justificar os inquéritos infinitos, o combate ao radicalismo, à polarização política.
Enquanto a direita brasileira continuar dando as caras e os cus para esse tipo de gente, será presa fácil nos jogos de poder da esquerda, que usa e descarta os engomadinhos de gravata como uma garota exemplar com sede de revanche.
E de gente vingativa este governo está cheio.
Direitos de imagem: Bruno Spada/Câmara dos Deputados.
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