Entrevistas
Anne-Marie Chartier
Realizada em: 14/6/1999
Atuação: Professora Pesquisadora do Instituto National de Recherche Pedagogique, na França
Obras: Discursos sobre a leitura, em co-autoria com Jean Hébrard, publicado pela Ática, 1995; Ler e escrever: entrando no mundo da escrita, em co-autoria com Christiane Clesse e Jean Hébrard, publicado pela Artmed Editora, 1996.
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Salto – Como podemos definir o papel da escola na formação de leitores?Anne-Marie – Este é um ótimo tema, já que muitos estudos sobre como as crianças se tornam leitoras evidenciam o peso da família no aprendizado do gosto pela leitura. Um ponto que tem sido relegado é a importância da escola na formação do leitor. Recentes pesquisas de opinião pediram a adolescentes que citassem seus livros preferidos para, depois, compará-los aos livros recomendados pelos professores como leitura obrigatória. O fato surpreendente, até mesmo para os pesquisadores foi que, com freqüência, há uma correlação entre os livros prescritos pelo professor e os livros escolhidos pelos alunos. Ao contrário do que pensavam muitos professores, os mestres têm um grande peso como mediadores de leitura. A questão que se coloca é: será que a cultura literária do professor basta para que ele seja um bom mediador? Tenho discutido este problema junto a meus alunos, futuros professores. Alguns (ou algumas) possuem boa formação em literatura infantil por serem mães e lerem para seus filhos, enquanto os outros não têm nenhuma cultura necessária por serem solteiros, não terem filhos, não viverem esta experiência familiar. Estes se mostram despreparados para ajudar as crianças a entrarem no mundo imaginário ou documentário, o que fará com que a criança pequena queira ler um bom livro sozinha. Para mim, é importante que a formação do professor torne obrigatória uma bagagem mínima de livros de leitura à disposição deste professor, para ser trabalhada com os alunos. O problema é que o tempo de formação é muito curto. Ensinar crianças pequenas a ler um conto de fadas, por exemplo, é um trabalho lento e longo, para o qual não se tem tempo na época da formação. Parece-me importante que os futuros mestres saibam que precisam ler para os alunos antes que eles consigam ler sozinhos. Isto vale para que os que não lêem ainda e também para os que já lêem. Há uma série de livros para crianças entre 8 a 12 anos para serem lidos primeiro em sala, pelo professor. E isto é algo pouco produtivo. A idéia que um jovem professor tem é dizer: "Tento ler um livro com as crianças, mas elas parecem desinteressadas. Então, procuro outro livro". O que eu lhes digo é: Recomece! "Como? O livro não interessa!" "Recomece uma segunda vez!" Na segunda vez, as crianças reconhecerão alguma coisa de familiar. Isto é totalmente oposto ao que nos diz a sociedade de consumo: "Eu provo; se gostar, como; se não, jogo fora". Na mediação da leitura, entra-se em um domínio em que o capricho e o prazer imediato não funcionam. Entra-se no campo de um prazer que se constrói na lentidão. E ainda que não se possa ensinar o prazer, pode-se partilhá-lo, aceitando a lentidão. Muitos jovens professores parecem ter pudor de ler com entusiasmo para as crianças e fazer com que elas sintam que o livro deve ser ótimo, porque o professor expressa emoções fortes através da leitura. É por identificação com este leitor magistral que é o professor que começo a sentir as emoções do livro que, mais tarde, vou reviver na releitura como adulto. Muitos professores se vêem demais, como técnicos ou instrumentos da aprendizagem da leitura. Eles devem ensinar a técnica, é claro. Mas também devem ser mediadores culturais, pessoas que transmitem sua própria relação com o livro. Devem aceitar o papel de primeiro leitor, o que lê por delegação, e não o que pensa que a leitura é um processo autônomo. Quando se diz que a criança precisa ser um leitor autônomo, para mim, soa como: "É preciso que a criança nos deixe em paz e leia sozinha". Acho que é necessário ler na sociabilidade e, mesmo quando souberem ler, as crianças precisarão partilhar a leitura com quem tenha lido com elas. Isto significa uma coisa terrível: as possibilidades de leitura são restritas. Se eu divido à leitura com um grupo, não é possível que cada criança tenha uma leitura diferente. Isto significa que terei que fazer uma escolha. E uma escolha de prioridade. Significa que terei que pensar num "corpus" literário. Talvez minha posição pareça tradicionalista, nada revolucionária. Na verdade, o que parece revolucionário é, de fato, uma posição consumista. Neste sentido, a escola tem um papel a cumprir que não é o mesmo que o dos pais. Eles podem comprar livros a metro, mas se não houver quem ponha a criança no colo e leia para ela, estes livros se tornarão objetos inúteis. A escola pensou no seu papel de mediação em relação ao acompanhamento da leitura e, de uma certa maneira, ela cumpre esse papel.
Salto – Como ocorreu a transformação do ensino, na França? E como essa transformação contribuiu para uma revalorização do professor?Anne-Marie – Eu poderia focalizar a revalorização do status, a revalorização simbólica e intelectual, ou, então, ser materialista e focalizar a revalorização dos salários. Vou começar sendo materialista, porque é a partir do materialismo que se pode construir o resto. Com efeito, a grande reforma dos últimos anos constituiu em equiparar os antigos professores primários (das séries iniciais do Ensino Fundamental) aos professores do segundo grau (do Ensino Médio), que passam a ter os mesmos direitos e os mesmos salários. Este foi o choque material sobre o qual se constituiu a revalorização. No entanto, isso não seria suficiente. Uma revalorização dos salários que não fosse acompanhada de uma revalorização intelectual, em que os professores tivessem a mesma paridade intelectual ao serem recrutados, não teria o mesmo efeito simbólico na própria identidade dos professores. O problema, hoje, não está mais na oposição entre professores secundários e professores primários. O problema reside nos quadros de professores primários. Há duas categorias: os antigos, não somente professores primários, recrutados pelas escolas normais, ou pelo sistema supletivo e com escolaridade de segundo grau, e os novos professores primários que possuem formação universitária. Entre estes dois níveis, não se passou do nível de segundo grau ao nível de licenciatura abruptamente. Houve uma passagem progressiva de uma formação à outra. Nem por isso se evitou que no corpo docente das escolas houvesse uma diferença qualitativa. Os nossos professores nos contam que nem sempre são bem recebidos pelos antigos professores primários, que lhes dizem: "Vocês que são novos, que têm tantos diplomas, que sabem tanto.... A vocês, não temos nada a ensinar. Somos simples professores primários, sem as suas qualificações universitárias. Nosso saber prático guardamos para nós". Quando, o que é importante, a meu ver, no espaço da revalorização dos professores do Ensino Fundamental, é fazer com que a integração entre antigos e novos professores primários exista. Acho que a tocha precisa continuar a ser passada nas escolas, porque o que os nossos professores não têm, apesar de seus títulos universitários, é a experiência prática. E o que os antigos professores têm, ainda que não possuam grau universitário, é a experiência da situação escolar, a competência profissional. O que digo sempre a meus estagiários é que quando se analisa a duração do sistema escolar francês, percebe-se que os professores primários sempre constituíram 20% dos mais capacitados da nação. Quando estes 20% correspondiam à instrução primária, os professores precisavam apenas ter esta formação para fazer parte dos 20% dos mais preparados. Nos anos 60, era necessário pelo menos o segundo grau para fazer parte desses 20%. Hoje, é preciso ter a licenciatura, devido à extraordinária democratização do ensino. Isto não significa que para ser professor primário seja preciso ter o terceiro grau. Há e houve professores excelentes, professores geniais em 1900, que não tinham nenhuma formação acadêmica e que foram pedagogos extraordinários. Mas, para atuar no meio escolar e transmitir escolaridade, é preciso ser qualificado e legitimado no âmbito da escola. E, para isso, é preciso fazer parte do grupo que passou por todo o sistema escolar e saiu do topo desse sistema. Não pensem que um mestrado em sociologia, ou um diploma em etnologia, ou medicina, lhes dá competência para ensinar. Eles lhe conferem legitimidade para ensinar. Os professores primários que vocês encontram nas escolas, que só têm o segundo grau, tinham, então, a mesma legitimidade que vocês hoje porque, na época, não havia uma porcentagem maior do país que tinha este diploma. O valor social de um diploma é sempre relativo à escolarização de um país. E já que vocês estiveram na universidade, façam o possível para se tornarem mais inteligentes na sala de aula. Este é o valor de uso do diploma, e não seu valor social.
Acho que a valorização na força da identidade dos futuros mestres não pode ter como preço a ruptura dentro do quadro de professores de primeiro grau. Para evitar esta ruptura, estabeleceu-se um concurso especial para que os antigos professores em atividade hoje se equiparem aos nossos, queimando etapas. Hoje se pode dizer que há um número grande de antigos professores que adquiriram o mesmo status e os mesmos direitos dos nossos professores através de um concurso que legitima sua experiência de campo. Acho que esta foi uma medida excelente para ajudar as novas gerações a serem solidárias com as antigas.
Salto – Como o ensino da leitura e da escrita influenciou na formação de uma identidade cultural francesa?Anne-Marie – Esta é uma pergunta que se refere à história do ler e do escrever na França. Devo começar bem antes de Jules Ferry, se pensarmos em como o ler e o escrever construíram a identidade da França. Todos começam a aprender a ler apenas a partir da Reforma, na França. É a Igreja Católica que incentiva a leitura para que todos leiam as orações em latim e acompanhem a missa. Pode-se dizer que a primeira aprendizagem de leitura universal contribuiu para a formação de uma identidade francesa católica. No século XIX, depois da Revolução Francesa, esta identidade vai se laicizar, vai-se aprender a ler, escrever e contar visando-se à edificação da criança da cidade ou da criança do campo, aberta ao saber moderno. A partir da popularização da imprensa no século XIX, quando os livros se tornam mais baratos, é preciso que haja leitores, é preciso que se ensinem as crianças a ler. No entanto, percebe-se que agora não se trata da mesma modalidade de leitura, nem do mesmo conteúdo de quando se pensava na formação de uma criança católica que dispunha apenas de um corpus de textos sagrados. O terceiro período seria o de Jules Ferry, que parece ser o começo das nossas atividades de ler, escrever e contar, mas que é, na verdade, uma época de resultados. A grande novidade do ensino primário de então é que se aprende a ler, a escrever e a contar para se chegar aos saberes científicos. A presença, no curso primário, da História, que ensina como se formou a França, as batalhas que foram travadas, como a Bastilha foi tomada e a conseqüente mudança do antigo para o Novo Regime; da Geografia, que ensina a nomenclatura de montanhas e rios; a Ciência, que ensina os professores médicos; a literatura, que ensina Victor Hugo às crianças e as faz decorar textos. Percebe-se que a leitura e a escritura deixam de ser a finalidade da escola e se tornam os instrumentos através dos quais a escola forma um saber mínimo, que será o conhecimento dos alunos franceses. E, ao partirem da escola, os alunos levam não apenas seus objetivos escolares, mas também uma categorização do mundo diferente da que tinham antes. Sabem também que não se aprende a rezar na escola, mas no catecismo ou na escola dominical. Os saberes leigos se separam dos saberes religiosos. Esta é a escola de Jules Ferry, que foi substituída pela escola da modernidade.Hoje, a escola se caracteriza pela presença contínua da leitura e da escrita. Hoje, já não basta ter uma bagagem de conhecimentos elementares, mas é preciso lidar permanentemente com a escrita, que é necessária na vida cotidiana, para responder aos jornais, para entrar na Internet, para participar da sociedade interativa, para ter acesso a esta leitura permanente que nos solicita como profissionais e cidadãos. Assim, chegamos a uma definição da leitura e da escrita e sentimos que há sempre crianças em atraso com relação a estes conhecimentos. Por isso, pode-se dizer que, embora o nível da leitura e da escrita tenha crescido consideravelmente para muitos, ainda há hoje um problema de analfabetismo, já que não conseguimos vencer todos os desafios de todos.
Salto – O que a escola pode e o que não pode ensinar?Anne-Marie – É certo que a escola tem um tempo, que é tempo limitado. Idealmente, ela poderia ensinar muitas coisas. O problema da escola e do legislador é decidir o que é prioritário. Neste momento, na França, debate-se muito uma atitude de consumismo escolar. Os pais dos alunos querem que seus filhos saibam não apenas o que eles aprenderam quando pequenos, mas também tudo o que não aprenderam. Querem que a escola ensine línguas novas, informática, equitação, natação antes dos 9 anos e, além disso, a tradicional ortografia. É claro que o desempenho deve ser melhor que o anterior. Logo se sente que estamos diante de uma demanda muito grande: por exemplo, deseja-se que a escola ensine também boas maneiras às crianças, já que nas famílias de uma só criança as regras de convívio familiar não educam para o convívio social. Mas esta excessiva demanda produz mediocridade.
Finalmente, um dos problemas dos educadores e do legislador é saber como distinguir o prioritário do acessório. Há um verdadeiro debate político no espaço público. Os pais dos alunos pressionam para que se acrescentem conhecimentos urgentes e necessários, como, por exemplo, a iniciação às línguas estrangeiras. O que ninguém se pergunta é: o que vai ser suprimido? Porque toda vez que se acrescenta uma nova matéria, diminui-se o tempo das outras. Sentimos que há uma espécie de oscilação, na recente história política da escola, entre os conhecimentos básicos que são ler, escrever, contar, a iniciação das disciplinas obrigatórias antes do 2º grau e, no outro extremo, a necessidade de transmitir conhecimentos da modernidade, já que a criança é jovem e a escola deve ser um lugar de inovação. E cada vez que se ganha em quantidade, perde-se em profundidade. Quanto mais se faz, menor é o tempo para cada atividade. E notaremos de novo que a criança vai mal em ortografia.
No momento, o grande debate no nosso Ministério diz respeito à educação para a cidadania. Haverá novamente cursos para ensinar às crianças o que é a lei, o que é aceitável e inaceitável no sistema escolar no 1º e no 2º graus. Há uma discussão no 2º grau para saber que professores ensinarão esta matéria e o que não será feito. Nessas horas, vemos que a escola do legislador deve responder ao que é sentido como uma urgência social. Houve uma época em que se ensinava costura na escola. O nível de costura se tornou catastrófico na França, as moças não sabem mais enfiar uma agulha, assim como os rapazes. O nível caiu vertiginosamente, mas vê-se que não há mais nenhuma demanda social neste campo. Eu diria que muitas disciplinas sofrem esta variação: em um certo momento, são ensinadas; depois, a demanda social acaba e é substituída por uma outra demanda social, constituindo, assim uma evolução de conteúdos escolares.
Creio que a escola, em termos ideais, pode ensinar tudo. Depois de escolher, a questão é o que ela deve ensinar, dentro de uma certa conjuntura histórica, conjugando a fidelidade à tradição, a resistência à pressão das famílias e a vontade de se adaptar à sociedade como ela é.
Tradução José Roberto Mendes