O KANTISMO NO BRASIL
José Osvaldo de Meira Penna
Embaixador, escritor e
ex-professor da Universidade de Brasília
Neste trabalho são
apresentadas idéias de importantes pensadores brasileiros sobre Kant. Inicialmente,
comenta-se o 6° capítulo do livro de Antonio Paim, Histórias das Idéias
Filosóficas no Brasil , onde o autor aborda os primórdios da influência de Kant
no País, e destaca a temática kantiana a partir de aspectos como os relativos à
moral e ao culturalismo. Em José Guilherme Merquior, salienta-se a dicotomia
postulada entre liberdade negativa e liberdade positiva, enquanto que em Mário
Vieira de Mello aparece a crítica em torno do kantismo. Finalmente, é
apresentado Olavo de Carvalho, pensador brasileiro de particular relevância nos
debates atuais em torno de Kant. A conclusão do texto repousa sobre Kant e o
subjetivismo.
Palavras-chave: kantismo;
moral; liberdade; cultura; subjetivismo.
Intróito
Em sua História das ldéias
Filosóficas no Brasil (Primeira Edição USP, 1967; 3a Edição, Convívio, INL, 1984), Antonio Paim
reserva um capítulo inteiro, o 6°, ao estudo dos primórdios da influência do
kantismo no Brasil. Paim coloca o início dessa influência quando a problemática
moral foi levantada durante o Segundo Reinado, no cerne do espiritualismo
eclético. No que se tornaria a principal corrente filosófica do período, o
kantismo e o empirismo britânico de Hume penetram no Brasil por intermédio do
ecletismo dos franceses Maine de Biran, Victor Cousin e Paul Janet. O grande
pensador brasileiro que, primeiramente, veicula essas idéias e as desenvolve é
Domingos José Gonçalves de Magalhães, o Visconde de Araguaia (+1882). Paim
considera, no entanto, que ele chega a resultados frágeis. Ocupando-se dos sentimentos
morais a partir de seus estudos de psicologia, Magalhães é autor de uma obra, A
Alma e o Cérebro (1876), em que não se afasta dos pressupostos de fé em Deus,
familiares entre os católicos ortodoxos.
"Não se trata de
substituir a moral do sentimento; mas apenas de nos levantarmos contra os
exageros de Kant,,,
Observa Paim que os
ecléticos brasileiros cedo se alinham pelas idéias de Paul Janet ("V1907),
um pensador de segunda linha que, numa doutrina denominada eudemonis-mo
racional e formulada num Tratado Elementar de Filosofia (traduzido para o
português em 1886), procura conciliar o caráter radical, repressor e inibidor
da ética de Kant com a tese que os bons sentimentos e inclinações naturais
positivas devem ser acrescentados ao Imperativo moral. Janet conclui que
"não se trata de substituir a moral do dever pela moral do sentimento; mas
apenas de nos levantarmos contra os exageros de Kant, que exclui inteiramente o
sentimento do domínio da moralidade e, freqüentemente, parece confundir na moral
o meio com o fim...". Paim salienta que, para muitos desses comentaristas
e críticos da obra de Kant, o defeito de sua moral seria, precisamente, de
atirar uma espécie de desfavor aos bons sentimentos e às inclinações naturais
que nos conduzem, espontaneamente e sem esforço, ao bem. Embora não concorde
com esse posicionamento, pois o imperativo moral consiste, precisamente, em
controlar ou se opor às emoções, aos sentimentos, aos impulsos espontâneos da
psique – não se pode deixar de admitir que a educação forma o caráter do homem
de tal modo que deixa um substrato permanente o qual participa do complexo de
condicionamentos da Ação nas emergências da vida. De qualquer forma, é evidente
que grande parte dos posicionamentos dos pensadores brasileiros, antigos e contemporâneos,
em relação à fria e categórica moral de Kant, está determinado pelo
temperamento emotivo e afetivo que – como tenho insistido – se descobre nesse
difícil conceito de "caráter nacional"1 .
Uma influência mais direta
do Kantismo se manifestaria, segundo Paim, através da tradução para o português
do livro do francês Charles Villers que, em 1801, publicou um tratado sobre
"A Filosofia de Kant ou Princípios Fundamentais da Filosofia
Trans-cendental". Essa obra seria popularizada em nosso país e em Portugal
por Francisco Bento Targini, Visconde de São Lourenço – que acompanhara a
família real e fora conselheiro de Dom João VI. Mas são sobretudo os Cadernos
de Filosofia do padre Diogo Feijó que devem ser salientados como o principal
veículo do kantismo, seguido da obra a esse respeito de Martim Francisco
Ribeiro de Andrada, que nos foi revelada graças a importante pesquisa de Miguel
Reale. Na Introdução e Nota aosCadernos de Feijó, Reale adverte que, em que
pese o abandono pelo padre, em favor da inspiração tradicional, da orientação
kantiana no que diz respeito à Razão Prática – não se poderia senão elogiar os
méritos de Feijó. Não se poderá tampouco saber, "onde havia mais
Filosofia, se nas intuições morais do humilde padre-mestre, ou na existência concreta
do estadista poderoso". A obra de nosso grande mestre Miguel Reale sobre A
Doutrina de Kant no Brasil (SP, 1949) cobre esse período inicial da influência
da doutrina kantiana no incipiente pensamento filosófico brasileiro.
Referência especial merece,
novamente, o nome de Hermann Cohen (1842/1918). Fundador da Escola de Marburg
de filosofia neokantiana, Cohen é repetidamente mencionado por Paim por sua
influência no desenvolvimento do culturalismo brasileiro a partir do
neokantismo. O que é curioso na obra desse pensador alemão, que retornou no fim
da vida à religião de seus avós israelitas, é a tentativa de conciliação do
kantismo e do Marxismo. Paim aponta as divergências entre ele e Nicolai
Hartmann, outro prócer da Escola de Marburg e de maior influência ainda sobre o
culturalismo neokantiano brasileiro.O que parece relevante na obra do filósofo
teuto-israelita é a convicção que adquiriu, após sua reconversão, que do ponto
de vista filosófico a ética só pode ser considerada num âmbito da humanidade
como um todo. Se o seu coletivismo o conduzia a desejar, em favor do
socialismo, repudiar todo individualismo liberal, Cohen teria percebido pelo
menos que, na transcendência do Imperativo, temos que abarcar toda a humanidade
e não o âmbito estreito de um grupo social, mesmo da extensão de um "povo
escolhido", uma nação.
No período seguinte, ou
seja, na década dos oitenta do século XIX, salienta-se Tobias Barreto. O
principal filósofo brasileiro da época alinha-se com o neokantismo proveniente
da Alemanha, mas não aparenta se haver preocupado dominantemente com a ética. Dirigindo
sua atenção para o movimento evolu-cionista originado em Darwin, na versão
peculiar de Haeckel –cujo "monismo" era então muito popular em nosso
meio intelectual – Tobias Barreto sobrevive graças à reedição das suas obras
pelo INL, em 1939, e ao livro de Paulo Mercadante e Antonio Paim, de 1972,
Tobias Barreto na Cultura Brasileira. O curioso em Tobias Barreto é que não
parece se haver dado conta da problemática brutal que o Darwinismo causa a toda
filosofia ética. Poucos filósofos europeus disso tampouco se deram conta:
Nietzsche foi provavelmente o único.
É em seguida com Farias
Brito (V1917) e a denominada Escola de Recife que o pensamento kantiano
reaparece. Trata-se de uma "interpre-tação autônoma" e a caminho para
conversão de parte da intelectualidade da época ao pensamento católico em nova
fase. Comportaria uma nova atenção aos problemas da consciência moral, tão
desprezados na época pela hegemonia do posi-tivismo, do "monismo"
haecke-liano, do "cientificismo" e do "materialismo
histórico" em seus primórdios. Sobre o tema vide a obra de Aquiles Cortes
Guimarães Farias Brito e as Origens do Existencialismo no Brasil (Convívio, SP
1984).
Posteriormente, verifica-se
que é por intermédio do marxismo e do integralismo, ambos com raízes comuns no
sistema de Hegel, que a influência indireta de Kant se exerce. Paim nota
ironicamente que, no Brasil estatizante que principia a se caracterizar após a
Revolução de 1930, uma revolução dita "liberal" que conduziu a quinze
anos de ditadura personalista, os princípios morais de Kant se traduzem por uma
exigência profunda de racio-nalidade. É na base de uma espécie de
pseudo-imperativo categórico, de fundo econômico e relacionado com o postulado
da luta de classes, que o Kantismo se manifesta. O Imperativo é: "Nao
explorarás o trabalho alheio"... O "desenvolvi-mentismo" começa
a surgir. Kant é assim admitido pelas portas do fundo na integração do novo
dogma que fascina aintelligentsia brasileira. Para o professor Leônidas de
Rezende no entanto, Kant, como "dualista", estava destinado aos fogos
do inferno ideológico, sob a-meaça das labaredas inquisitoriais das patrulhas
ideológicas de esquerda.
Finalmente, acentua Paim que
a herança kantiana constitui o próprio sustentáculo da corrente culturalista
que, por intermédio de Tobias Barreto, se desenvolve contemporaneamente,
integrada por nomes como Djacir Menezes, Luis Washington Vita, Roque Spencer
Maciel de Barros (os três já falecidos), Miguel Reale – por exemplo, em Verdade
e Conjetura, de 1983–, Paulo Mercadante, Nelson Saldanha, Ricardo Vélez
Rodríguez e o próprio Paim. Atrevo-me, modestamente, a apresentar minha
candidatura ao ingresso nesse grupo seleto...
Sobre o problema específico
do Culturalismo, podemos mais uma vez fazer referência a Paim e a seu
ensaioProblemática do Cultu-ralismo (Porto Alegre 1995, Coleção Filosofia,
EDIPUCRS). O trabalho é encabeçado por uma cita ção pertinente de Wilhelm
Windelband (V1915): "A filosofia transcendental de Kant é, nos seus
resultados, a ciência dos princípios de tudo aquilo que hoje reunimos sob o
nome de Cultura". O Culturalismo no Brasil estaria, por conseguinte,
associado ao neokantismo com as figuras "catalisadoras" de
Windelband, Heinrich Rickert (V1936), do já aludido Hermann Cohen, além do
próprio Max Weber como acrescenta nosso autor, e de Ernst Cassirer. Eric
Voegelin, no domínio da filosofia da história, um nome da maior relevância que
constantemente citamos e invocamos alhures, se juntaria a essa plêiade de
sumidades de origem germânica. Se ao grupo de pensadores já mencionados e todos
falecidos, adicionarmos o nome de Miguel Reale, teriamos, na perspectiva de
Paim, um quadro completo do cultura-lismo kantiano brasileiro – e poderíamos
definir seu princípio orientador como "a consideração da experiência humana
em toda sua amplitude. Partindo de Kant, que a limitava ao contato com o mundo
natural, o culturalismo aplica o conceito aos vários campos da criação humana,
de que resulta o mundo da Cultura. Mas respeita os parâmetros fixados por Kant
com vistas a evitar nova reintrodução de dogmatismo" (op. cit., p. 70) e
sustenta toda a visão do mundo na história e na sociedade moderna em seu
fundamento essencialmente ético. Aos nomes acima aludidos nos permitiremos,
todavia, adicionar os de Mário Vieira de Mello e de Olavo de Carvalho.
É na base de uma espécie de
pseudo-imperativo categórico, de fundo econômico e relacionado com o postulado
da luta de classes, que o kantismo se manifesta.
Em sua "Metafísica dos
Costumes", prevenia Kant que "a adversidade, a dor, a pobreza são
grandes tentações que levam o homem a violar seu dever". São também as
grandes tentações do pensamento filosófico na modemidade. A esta altura, na
situação pós-1989, devemos salientar que se torna de imensa relevância, em
nosso país, a consideração da postura exata de Kant em face do liberalismo.
Vimos que o tema é polêmico. Deve Kant ser considerado um dos pró-homens do
liberalismo ou seria ele, pelo contrário, juntamente com seu detestável colega
franco-suiço que tanto admirava, Jean-Jacques Rousseau, o autor de idéias de
moral tão ambíguas que o tornam um longínquo antepassado do autoritarismo
totalitário?
José Guilherme Merquior
Como primeira tentativa de
esclarecer as posições dos que se posicionaram nesse debate sobre o liberalismo
de Kant, lembremos nosso jovem e saudoso pensador José Guilherme Merquior,
ressaltando, neste contexto, a dicotomia postulada entre liberdade negativa e
liberdade positiva. Não faria eu nada melhor reproduzir o que, em seu ensaio O
Liberalismo – Antigo e Moderno, escreve Merquior. Ele cita os conceitos de
Isaiah Berlin e Charles Taylor. Numa conferência em Oxford, em 1958, Berlin, um
dos mais respeitados liberais britânicos, "definiu a liberdade negativa
como estar livre de coerção. A liberdade negativa é sempre liberdade contra a
possível interferência de alguém... A liberdade positiva, por outro lado, é
essencialmente um desejo de governar-se, um anseio de autonomia... Enquanto a
liberdade negativa significa independência de interferência, a liberdade
positiva está relacionada à incorporação do controle". Referindo-se a
Charles Taylor, Merquior igualmente observa que, segundo o filósofo canadense,
os críticos da liberdade positiva tendem a salientar que "os partidários
da liberdade positiva terminam justificando o governo tirânico das elites
'esclarecidas' e afirmando objetivos humanos 'verdadeiros' ou 'mais nobres'...
inspirados por elevados ideais de humanidade".
Prossegue Merquior seu
discurso sobre este ponto, analisando as escolas de pensamento que realçam as
diferenças entre autonomia e liberdade. Depois de mencionar a Inglaterra e a
França, o ensaista chega à Alemanha, quando cita Humboldt, Kant e Hegel. Ao
afirmar que o homem, não como animal mas como pessoa, devia "ser
considerado um fim em si mesmo", Kant cria "uma outra dimensão chave
dos conceitos alemães de liberdade: autotelia ou realização pessoal. Kant
colocou a autotelia no centro da moralidade". Um exemplo da noção de
liberdade positiva se descobre na definição de Locke segundo a qual a Liberdade
"é o poder que tem um homem de fazer ou deixar de fazer qualquer ação em
particular, de acordo com que tenha ou não sua ação a preferência de sua mente,
o que é o mesmo do que dizer, conforme o queira ou não" (emEssay
concerning Human Understanding II. 21.15).
Mário Vieira de Mello
O segundo pensador
contemporâneo importante na discussão em torno do Kantismo no Brasil é Mário
Vieira de Mello. À primeira vista, Mário se colocaria a favor de Kant como
defensor entusiasta, em primeiro lugar, da cultura e, em segundo, da liberdade.
É a impressão inicial que se retira do brilhante argumento desse que, como
Merquior, é diplomata-filósofo, contido em sua obra principal e tão
injustamente esquecidaDesenvolvimento e Cultura – um marco no pensamento
brasileiro. Nesse primeiro livro, já velho de trinta anos mas tão expressivo do
esforço relevante que fazem alguns espíritos de elite para salientar a ausência
de um autêntico influxo ético na sociedade brasileira – tão comprometida pelo
caráter a-ético, para não dizer imoral, de sua estrutura política – Vieira de
Mello, inspirado pela dico-tomia postulada por Kierkekaarg entre o ético e o
estético, constrói um edifício monumental de apologia em favor de uma nova
educação para a cultura em nossa terra, baseada em princípios éticos.
Passaram-se os anos e, em
1996, Mário nos apresentou O Huma-nista. Na nova obra (Topbooks, edit.), o
pensador não abandona sua predileção inicial pela linhagem platônica. Pelo
contrário: numa linha bem socrática, ele oferece como subtítulo ao livro a
idéia do relacionamento entre A Ordem na Alma do Indivíduo e na Sociedade.
Colorindo o arrazoado com sua também tradicional simpatia por Nietzsche, na
vertente dos chamados "existen-cialistas", ele parece se mover na
direção da filosofia da história de Eric Voegelin2 . Em O Humanista, que logo
se seguiu ao O Cidadão , Mário evolui em seu filosofar e propõe uma nova
dicotomia entre "Estruturas de Poder" e "Estruturas de
Cultura". A dicotomia é, segundo me parece, uma maneira gravemente
distorcida de julgar as sociedades num contexto histórico: as cidades antigas e
as nações modernas atingem seu estágio de maior criatividade cultural no
momento mesmo em que manifestam mais brutalmente sua Vontade de Poder. Os
séculos de Péricles, de Augusto, de Elizabeth, de Luís XIV, da rainha Victoria,
do II° Reich alemão foram, simultaneamente, séculos de expressão de seu
imperialismo. Mas não é aqui o momento de polemizar em torno desse ponto. Cabe
apenas apontar para o fato que a aludida dicotomia conduz Mário a classificar a
ciência dentro das estruturas de poder.
Nessas estruturas é então
incluído Kant cujo pensamento estaria "centrado de forma decisiva na
problemática da ciência" (p. 77). "Impregnado de ciência e de
ima-nência"... "não poderia ver outro tipo de razão que não fosse em
termos de causalidade e universalidade". E isso dificultou, naturalmente,
a compreensão pelo filósofo prus-siano da estrutura íntima do princípio da
liberdade" (p. 78-79). Mário não parece se dar conta que, ao se
arregimentar junto à velha tradição que postulava uma oposição essencial entre
a ciência, determinista, empirista e materialista, e a filosofia espiritualista
de natureza religiosa que insistia no livre-arbítrio – ele ignora os avanços da
física modema cujas teorias de ponta, pelo menos entre os que cozinham as
conse-qüências metafísicas dos Quanta, estão aparentemente re-introduzindo a
indeterminação e, com ela, certos fatores irracionais que, paradoxalmente,
reforçam a preeminência e prioridade da subjetividade humana. No entanto, Mário
admite que a concepção dinâmica que tinha Platão do universo físico está mais
próxima das concepções da física moderna do que a concepção aristo-télica.
Neste ponto, aliás, tenho também salientado que a introdução na cosmologia da
dimensão temporal, subjetiva e histórica, efetuada por Agostinho na linha de
Platão, se coaduna perfeitamente com a noção moderna de universo ilimitado,
porém finito e histórico – sendo incompatível com a de um universo eterno e
infinito da cosmologia de Aristóteles, geralmente admitidaaté princípios do
século XX. Em poucas palavras, Mário acusa Kant de "não haver sabido
discerner a natureza do relacionamento entre razão e liberdade" (p. 80).
Acusa-o de haver "aceito uma espécie de abismo" nessa questão. Kant,
além disso, teria elaborado uma formidável análise da "razão
desengajada" e, esta, obedece a leis copiadas da ciência ou, no mínimo,
postula uma causalidade livre "milagrosa" (p. 121). Seguindo
Descartes, acusado por Mário de vícios semelhantes, Kant teria provocado
"a distorção de nossa consciência humanista", sendo assim responsável
pelo rompimento da comunicação, dentro da vida do espírito, entre razão e
liberdade" (p. 125). Kant criou um fosso entre razão e liberdade, fosso
que não conseguiu cobrir – impedindo assim um retorno ao humanismo platônico do
pensamento germânico que, a partir de Hegel, descambou para o dialético. (I 3
5). Kant teria ignorado a dialética mas "ignorou também, como Hegel, o
processo educacional" (148). A opinião de nosso amigo, à página 248, que
"Kant perfilhou-se ao grupo de filósofos que, como Descartes, estavam
interessados na conquista do universo físico, do poder, e relegava a um segundo
plano os problemas do espírito e da moralidade" – alinha-se, segundo
creio, com a áspera crítica daqueles que, como já notei, vêem em Kant um
prussiano inimigo da liberdade, anunciador do totalitarismo e profeta das
"estruturas de poder". Estas estariam hoje configuradas na sociedade
americana que repudiou os elementos afetivos, de philia, de amor, de paixão, de
Eros platônico presentes na alma do filósofo antigo que participava do drama da
busca da verdade e era personagem na tragédia da existência (279). Em
conclusão, Descartes, Kant, Hegel, Husserl fazem parte de "uma série de
gigantes cujas pernas são de louça: o que vai acontecer quando essas pernas se
quebrarem?" pergunta nosso velho amigo (307)... Basta, por enquanto. Por
mais que admire a obra de Mário Vieira de Mello não posso aceitar esse áspero
ataque ao Kantismo e compreendo o ardor da polêmica que ocorreu, em certo
momento, entre Merquior e Vieira de Mello, em torno de Platão, com respingos
para o lado de Kant. Julgo o ataque profundamente injusto e incompatível com os
próprios postulados do edifício filosófico que Mário ergueu através de sua
longa produtividade de pensador "conservador". Não me admira, no
entanto, que após tão complexa evolução, tenha ele atingido um ponto em que
propõe como paradigma para nossa sociedade a monarquia absolutista anglicana do
tempo da rainha Elizabeth e do rei Jaime Stuart...
Mário admite que a concepção
dinâmica que tinha Platão do universo físico está mais próxima das consepções
da física moderna do que a concepção aristotélica.
Olavo de Carvalho
O terceiro pensador
brasileiro que considero de particular relevância nos debates atuais que possam
se desenvolver em torno de Kant é Olavo de Carvalho. O filósofo paulista faz
diversas referências ao de Koenigsberg em sua obra de grande impacto polêmico,
num sentido que não consigo exatamente definir. EmO Imbecil Coletivo, que é de
1996, com várias edições posteriores, Olavo já acentua que "uma
consciência moral cindida, que afirma no plano da conduta o que nega no dos
princípios, é uma herança moral do kantismo", argumentando que a
contradição entre a metafísica de Kant e o imperative categórico, ao qual o
homem "deveria curvar-se simplesmente porque sim", cria um
"abismo entre inteligência e vontade", nunca superada pelo filósofo.
Com isso teria Kant exercido grande influência no positivismo e,
particularmente, em Weber. Através do positivismo, teria influenciado o
nascimento das ciências sociais que "cultivam um relativismo
metódico".
Em O Futuro do Pensamento
Brasileiro, que é de 1997 (Faculdade da Cidade Editora, Rio), volta Olavo de
Carvalho à crítica de Kant que, "na pacata Koenigsberg, promove em
silêncio uma revolução de conseqüências ainda mais devastadoras" do que
aquela que ocorria em Paris, na mesma época. A crítica de Olavo se dirige então
ao que alega seja a "universalidade do subjetivo" na filosofia do Mestre
prussiano. Ele acusa Kant de haver, por sua universalização do subjetivismo,
colaborado no que descreve como "o ciclo de dissolução da consciência
individual na suposta consciência coletiva"...
Esse tipo de acusação me
parece semelhante à que atingiu a teoria de Jung sobre o "Inconsciente
Coletivo" e, por extensão, sobre toda a psicologia analítica moderna.
Descobriu-se, no método analítico, até mesmo uma versão racista da noção de
"alma da raça" ou "espírito do povo" (Volksgeist) que contaminou
o Idealismo germânico a partir de Fichte e Hegel. É um mistério, no
aprofundamento do qual certamente não vou tentar penetrar, que a meditação de
Kant tenha podido evoluir para interpretações progressivamente mais românticas
e nacionalistas, nas duas primeiras décadas do século XIX, dando origem ao
monstro ideológico que ameaçou a humanidade no século seguinte. A semente
talvez estivesse em Rousseau. Certamente, havia raízes mais remotas do que o
Jacobinismo de 1793 – raízes de fundo religioso. É de se lamentar, quiçá, que
não tenha Kant mais claramente enfatizado sua simpatia com o papel de Hume em
livrá-lo do "sonho dogmático", em detrimento de Rousseau. Mas não é
aqui o momento de me aproximar desse perigoso tema – bastando retornar à
opinião que uma injustiça é cometida quando se coloca Kant como responsável
pelo absolutismo autoritário germânico com suas raízes na Prússia.
Em vários outros momentos de
sua obra, Olavo parece insistir em sua crítica ao subjetivismo kantiano. Ele
criaria uma "espécie de supra-consciência que transcende todas as
consciências individuais" e que, não podendo ser divina, "só pode
então ser a consciência da comunidade humana, substancializada, personalizada e
tornada mais consciente do que os indivíduos" (opus cit., p. 138-139).
Olavo explica assim a afinidade que Lucien Goldmann descobre entre kantismo e
marxismo – do mesmo modo como entre Kant e Rousseau, cuja noção de
"Volonté Générale" ele, ao que parece, teria absorvido. Não desejo,
contudo, me aprofundar na análise dessa crítica da crítica kantiana – pois em
outra parte desta obra tento penetrar e debater o problema central do
subjetivismo. Desde logo insisto que é o liberalismo, e não o coletivismo, o
que descubro em germe no kantismo, por mais que certos de seus aspectos possam
ser ambíguos.
Kant e o Subjetivismo.
Conclusões
Lembro desde logo que, no
meu entender, a postura correta no vestíbulo de toda meditação filosófica é
aquela que, em face do dualismo "eu e o mundo", parte do Subjetivo,
antes de contemplar o Objetivo. Nisso me coloco dentro da augusta linhagem da
"filosofia perene". É a trilha que, a partir de
Heráclito/Sócrates/Platão, passando pelo "in interiore homine habitat
Veritas" de Agostinho, o cogito de Descartes, o ceticismo de Hume e o
subjetivismo do imperativo de Kant, até chegar ao Perspectivismo de Nietzsche,
ao intuicionismo de Bergson, à metafísica de linguagem de Wittgenstein, às
intuições mais avançadas da física moderna que introduzem o observador como
elemento essencial de toda observação, e à psicologia analítica e introspectiva
de Jung – depois de pular, inclusive, por cima do alegado autismo de Berkeley –
percorre toda nossa afanosa e louca procura da sedutora, caprichosa e fugaz
Aletheia.
Para concluir, desejo propor
tentativamente o seguinte: a Lei moral fecunda, expressão da liberdade eterna
do espírito, é um poder criador no tempo . No tempo futuro. A ação humana é
poder de criação temporal e leva em consideração nossos planos e fins no futuro
– e, por conseguinte, é afetada pela causalidade final. A Humanidade que seremos
no futuro, depende das decisões particulares que tomamos constantemente no
momento em que vivemos, aqui e agora. O determinismo do passado que manda no
presente se transforma, agostinianamente, na liberdade que se projeta sobre o
futuro. A determinação da vontade livre do homem, por força de uma
"causalidade interior livre" – o que quer dizer, uma autodeterminação
em razão de uma virtude interior – se processa sob a forma de projeção do
julgamento subjetivo para um plano objetivo transcendente. No meu entender –
posso estar errado, mas é esta minha interpretação do imperativo de Kant – é
esse plano que fixa os valores determinantes da lei moral. Sua virtude tríplice
é a que se exprime como fé, como esperança e como amor. O Imperativo categórico
seria, então, alimentado substancialmente pelas três virtudes ditas
sobrenaturais – ou, melhor ainda, pelas virtudes que poderíamos qualificar de
"transcendentes"3 . Tais virtudes servem de fundamento a priori do
Imperativo moral kantiano.
A causalidade livre da lei
moral não é determinada pelo evento passado, é determinada pela meta futura. É
uma causa final, uma teleologia. Armada a partir de um plano de
"redenção" e "perfeição" que se pretende realizar pelos
séculos dos séculos, a lei moral nos obriga por força do destino transcendente
do Homem, destino que admitimos existir, precisamente, quando movidos pela
esperança. E é a esperança que, conforme propunha Agostinho, informando nossa
peregrinação na Terra em direção ao paradigma que se consubstancia no símbolo
da "cidade de Deus", gera a fé e o amor. Na perspectiva do Eu
moralmente consciente e racionalmente determinado, válido é o intencionalismo.
Agimos, em virtude de alguma intenção futura que, por força da nossa fé
"no que não se vê" mas se espera, revela sua conformidade com o
imperativo da razão prática. Nenhum "dever" é obedecido se não se
sustenta, previamente, na fidelidade a um código determinado de comportamento
considerado válido, qualquer que seja a angústia da dúvida quanto a seus meios
na ação. Do mesmo modo, o dever implica a esperança prévia que seu mandamento
corresponde a um princípio que será, no futuro, confirmado como correto. E
exige, simultaneamente, uma relação afetiva positiva para com o objeto da ação
que se seguirá ao cumprimento desse dever.
E é a esperança que,
conforme propunha Agostinho, informando nossa peregrinação na Terra em direção
ao paradigma que se consubstancia no símbolo da "cidade de Deus",
gera a fé e o amor.
É nesse sentido que podemos
conjeturar cada vida, cada pessoa humana, cada alma singular como introduzindo,
no universo, um quantum de indeterminação que o afeta por todo o sempre. O
universo não pode estar absolutamente determinado, enquanto exista esta parcela
infinitesimal de liberdade. E nessa visão, nessa perspectiva filosófica
transcendental kantiana em que nos devemos colocar, é que poderíamos construir
uma espécie de utopia, inspirada no "milenarismo filosófico"
promovido por Kant. A visão utópica projetada sobre o futuro implica que cada
um de nós, mulheres e homens, carrega como sentido último da existência na
transitoriedade de nosso triste, problemático e peregrino percurso terreno, a
missão ou dever de contribuir para o edifício de cultura universal.
A cultura é a grande obra
final que constrói a humanidade no gozo de sua liberdade e nas condições
restritivas de sua responsabilidade moral, diante da inextricável problemática
da dúvida na escolha. Uma outra célebre frase de Kant muito nos ilumina sobre
seu temperamento e suas convicções. Podemos utilizá-la como conclusão desta
meditação ético-culturalista. Ela traduz algo que sinto comoprofundamente
verdadeiro em minha própria meditação existencial:
"Sonhei e pensei que a
vida é beleza. Acordei-me e me convenci que ela é dever"
THE KANTISM IN BRAZIL
José Osvaldo de Meira Penna
Ideas of Brazilian important thinkers about Kant are
presented in this paper. Primarity, the 6th chapter of Antonio Paim's book,
"History of Philosophical Ideas in Brazil" is commented. In this
book, the author deals with the begirimings of Kant's influence in our country,
and emphasizes the kantian themes from
aspects such as those related to moral and culturalism. In José Guilherme
Merquior, the postulated dichotomyn between negative freedom and positive
freedom is emphasized, whit in Mário Vieira de Mello a cristicism involving
kantism in shoon. Finally, Olavo de Carvalho, Brazilian thinker of particular
relevance in nowadays debates about Kant is presented. The conclusion of the
text lies on Kant and the subjectivism.
Key words: kantism; moral; liberty; culture;
subjectivism.
1 É o que procuro determinar
na análise do "Caráter Nacional" que atrevidamente empreendi na obra
Em Berço Esplêndido.
2 Essa ênfase atrai
particularmente minha simpatia, eis que foi Mário quem, primeiramente, e isto
no final da década dos cinquenta, me chamou a atenção para o trabalho
monumental do pensador americano, de origem alemã, que pessoalmente cheguei a
conhecer numa visita a Munique em 1962. Incidentalmente, Ordem e História assim
como outras importantes obras de Voegelin nunca foram traduzidas
Obrigado pela visita, volte
sempre.
http://www.unopar.br/portugues/revfonte/v3/art6/art6.html
.