sexta-feira, 25 de abril de 2008

Educação e atualidade brasileira.


Freire, Paulo. (2001). Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez.
125 p.ISBN 85-24908-27-0
Resenhado por Pilar O’CadizUniversidade da Califórnia, Irvine
8 de setembro de 2003
Quase meio século se passou desde que Paulo Freire penetrou seu olhar de extraordinária concisão crítica e enorme compaixão humana na sombria paisagem educacional de seu amado Brasil. Ao escrever Educação e atualidade brasileira, no Brasil de 1950, um analfabetismo monstruoso era a norma, com não menos do que 50% (Note 1) da população adulta sem saber ler e escrever e, conseqüentemente, impossibilitados de votar em uma república que, desde de seu extenso regime colonial e escravocrata a menos de um século antes (Note 2), afastou a maioria da participação política ao negar a eles as oportunidades mais básicas de estudo (Note 3), enquanto fazia do analfabetismo um pré-requisito para a votação. Além disso, este sonho de democracia que Freire ousou em visionar para seus desprivilegiados conterrâneos foi rapidamente interrompido pela instalação do regime militar, que permaneceu vigente de 1964, quando Freire foi forçado a deixar o país, exilado, até ele voltar ao Brasil 16 anos depois, em 1979, onde ele morreu em 1997.
E ainda, a perspectiva visionária retratada em Educação e atualidade brasileira –– uma realidade de mais de 40 anos atrás –– foi o precursor da formulação de sua poderosa visão utópica e pedagógica de filósofo. Depois de escrever este texto, ele foi capaz de colocar em prática algumas de suas idéias durante o breve período antes de seu exílio do Brasil, e posteriormente os desenvolveu em prática e teoria em diversos contextos no exterior. Ele escreveu este texto num momento de grande promessa revolucionária e momento reformista na América Latina, e como tal isso representa os raios de esperança iniciais que Freire projetou ao longo do horizonte empobrecido de sua terra natal pernambucana dos anos 50. Ultimamente, o elucidante utopianismo pedagógico de Freire cruzou a imensa geografia do Brasil, alcançando as favelas de São Paulo e Rio de Janeiro do início dos anos 60, além de toda a América Latina e do mundo. E agora no início do século 21, ele é reconhecido como um dos pensadores pedagógicos mais influentes de sua época.
Ao se deparar com a inconstância desse novo milênio, Educação e atualidade brasileira dirige gentilmente o leitor a um lugar de otimismo, fortificado pela voz autêntica de seu autor, o até então jovem bolsista educacional que, em seu aparentemente modesto manuscrito –– sua tese de doutorado na Universidade de Pernambuco –– proclama os elementos centrais do que estava para se tornar a filosofia pedagógica e projeto democrático que significaria uma mudança no paradigma da teoria e prática educacional na região da América Latina nas décadas que seguiram a sua composição. É basicamente uma tese sobre a condição atual da sociedade brasileira e a exigência urgente por um tipo de educação diferente daquela ditada pela tradição acadêmica e relações sociais repressivas, a fim de aproveitar as forças democráticas em desenvolvimento na época. Realmente, em uma publicação posterior de Pedagogia dos oprimidos em 1970, em que as premissas de Educação e atualidade foram adiantadas mais tarde, resultariam em uma multidão de iniciativas pedagógicas do mundo inteiro da inspiração Freiriana. Falando de um lugar de crença genuína em uma sociedade futuramente mais humana e democrática, a confiança de Freire na capacidade humana de amar, aprender juntos e – na solidariedade – transformar as realidades opressivas oferece uma suspensão necessária do senso fatalista que nos invade nos tempos de circunstâncias esmagadoras do mundo. (Note 4)
Esta publicação póstuma da dissertação de Freire de 1959 pela Editora Cortez e o Instituto Paulo Freire (2001), inclui três textos preliminares como uma forma de apresentação do texto principal escrito por Freire. O primeiro –– “Contextualização: Paulo Freire e o Pacto Populista” oferece uma visão perspicaz única do contexto histórico e político no qual Freire escreveu em seu tratado acadêmico. Freire escreveu em um ambiente intelectual dominado pelas tensões entre as ideologias populistas e de esquerda, que ainda submergiam na familiaridade de sua cidade natal, Recife, no nordeste de Pernambuco. De maneira apropriada, para esta tarefa de contextualização, os editores alistaram os esforços de um nordestino contemporâneo, José Eustáquo Romão. Romão foi rápido em afirmar a importância de Educação e atualidade brasileira em entender a origem de alguns dos principais conceitos que Freire estava por desenvolver em escritos futuros, em particular seu trabalho de seminário Pedagogia dos Oprimidos (p. XV). Ele descreve, efetivamente, o clima intelectual e as tendências políticas da época, tanto nacional quanto internacionalmente, que convergiu em criar o contexto social do Brasil do meio do século vinte, que permitiu a Freire escrever sua dissertação aos 38 anos. Apropriado ao momento histórico em que foi escrito, o texto de Freire é caracterizado por uma visão utópica e crítica dualista, evitando uma postura elitista e fatalística, e abrangendo uma fé implícita nas possibilidades de uma transformação educacional, diálogo crítico e humanístico e a criação de uma vida mais democrática para seus companheiros brasileiros.
Ressaltando o valor da contribuição de Romão ao seu livro, Moacir Gadotti, um colega de trabalho de toda a vida e amigo pessoal de Freire, escreveu em algum lugar, “O pensamento de Paulo Freire – sua teoria do conhecimento – deve ser entendido no contexto em que surgiu o Nordeste brasileiro – onde, no início da década de 1960, metade de seus 30 milhões de habitantes vivia na “cultura do silêncio”, como ele dizia, isto é, eram analfabetos. Era preciso “dar-lhes a palavra” para que transitassem para a participação na construção de um Brasil que fosse dono de seu próprio destino e que superasse o colonialismo.”
Romão documenta para o leitor, com competência, os principais fatores sócio-históricos que influenciariam necessariamente as perspectivas de Freire durante este período de sua vida. Um período em que ele compartilhou como colega de Freire, trabalhando no Serviço Social da Indústria (Sesi), onde Freire inicialmente vivenciou o poder de uma mudança educacional culturalmente baseada “com” e não “para” os trabalhadores em Recife. Além de fornecer um contexto histórico geral, Romão dá uma breve visão geral das raízes intelectuais de Freire, enquanto se refere ao trabalho de um outro contemporâneo de Freire, Celso de Rui Biesegel, como uma fonte fundamental para mais investigações a esse respeito: Política e educação popular: A teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil (1982). Romão reconhece a influência do existencialismo europeu na formação filosófica de Freire, afirmando que “O existencialismo foi muito importante para a geração dos anos 50 e 60 no Brasil e, desta forma, acabou por insinuar-se no pensamento Freiriano dos primeiros escritos” (XIX). O próprio Freire reivindicou em escritos futuros, que sua perspectiva era decididamente “dialética e fenomenológica” (1985). Além disso, Freire estava escrevendo sua tese de doutorado em um momento em que o clima intelectual na América Latina estava vivendo um renascimento do Marxismo, com o crescimento da influência de autores como Althuser e Gramsci, e o aparecimento de um Marxismo Cristão que, mais tarde, evoluiria para uma teologia de libertação. A perspectiva de Freire não escapou do impacto dessas tendências políticas-ideológicas na região. Em uma observação menos radical, o trabalho de Joan Dewey também executou uma função fundamental na evolução da pedagogia progressiva no Brasil. A insistência de Dewey foi de particular importância na ligação entre o aprendizado e a contextualização na realidade. Para Freire, esta realidade era a vida cultural da comunidade local, que deveria ser uma consideração fundamental de qualquer ação educacional; caracterizando assim, sua abordagem pedagógica e explicitamente política.
Ao mesmo tempo, como Romão aponta, este foi um período imbuído com o otimismo desenvolvimentalista da recuperação econômica da Segunda Guerra Mundial e substituição da importação na industrialização no Brasil, epitomada pela construção da moderna cidade de Brasília durante o governo de Kubistcheck (1956-1961), subseqüente ao regime populista de Getúlio Vargas nos anos 40 e início dos anos 50. Este paradigma desenvolvimentalista teórico dominante foi desenvolvido mais tarde no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), estabelecido em 1955. De acordo com Romão, o ISEB – um tipo de reservatório de pensamento que, na década de sua existência, funcionou para gerar uma ideologia nacionalista, que iria grifar os esforços liberais, para avançar a modernização da vida política, econômica e cultural do Brasil – tornou-se cada vez mais orientado por intelectuais de esquerda. A influência desses pensadores “esquerdistas” do ISEB no desenvolvimento intelectual de Freire aparece em diversas referências aos argumentos populistas de suas principais ideologias. Romão introduz, necessariamente ao leitor, a chave para os intelectuais brasileiros que fizeram parte do ISEB, que podem não ser tão conhecidos internacionalmente, como são em círculos estudantis no Brasil ou na América Latina. É o caso de Anísio Teixeira (1900-1971), que Freire cita repetidamente em sua crítica do centralismo, autoritarismo e elitismo geral da educação brasileira. Um outro mentor intelectual ao qual Freire faz referência em sua tese é Álvaro Vieira Pinto. Freire cita Pinto como aquele que clama pela criação de uma sociedade brasileira modernizada e mais democrática por uma elite política e intelectual querendo trabalhar de mãos dadas com as massas, nunca impondo suas visões e planos, mas destilando-os da “consciência coletiva” da população (p. 22).
Romão ainda afirma, que Freire se distingue de seus predecessores e colegas do ISEB, em seu reconhecimento de que aquela “intransitividade” e passividade humana não são, necessariamente, uma condição absoluta. De fato, como Romão aponta, Freire iria desenvolver em sua tese a postulação de que os humanos sempre têm a possibilidade de se mover dentro da auto-afirmação e a busca de seu autêntico objetivo ontológico e, portanto, os humanos mantêm, essencialmente o poder de fazer valer seus direitos, como sujeitos de sua própria história (xxxi). Ressaltando suas tendências Mannheimianas, Rosas conclui que Freire adota a noção de uma agência humana democratizante que se dirige em direção à justiça política e econômica e para longe do totalitarismo da direita e da esquerda (xlii). Apesar dos elementos “ingênuos” inevitáveis que caracteriza isto, um dos primeiros textos de Freire, Romão lembra ao leitor da “lamentável contemporaneidade” das realidades analisadas por Freire, que metade de um século depois persiste em um país que continua para todos os objetivos intensivos “assistencialista, autoritário e paternalista… nas relações sociais e da educação “inautêntica” e “inorgânica” que predomina o sistema nacional (xxxv).”
Além dos esforços de Romão em contextualizar historicamente as teses de Freire, esta edição oferece ao leitor duas “testemunhas” como prólogos ao antigo texto de 40 anos: um de um colega de Freire na época e outro de sua filha, Cristina. O primeiro, de Paulo Rosas, oferece um acompanhamento único que vai além do papel do comentário intelectual em reconstruir os eventos que aconteceram ao redor da elaboração de Freire de sua tese, especificamente em respeito às particularidades da cultura da academia da qual ele, evidentemente, participou como um candidato doutoral. Rosas era psicólogo, mudou-se de Natal (também no nordeste brasileiro) para Recife em 1951 e foi, portanto, um contemporâneo de Freire na época em que ele escreveu sua dissertação.
Rosas é testemunha e participante da institucionalização das forças democratizantes nos rígidos corredores da Universidade brasileira dos anos 50. Ele fala do começo de uma nova abordagem participatória para pesquisar e expandir dentro da comunidade. Assim era a comunidade intelectual na qual Freire formulou pela primeira vez seu pensamento sobre as possibilidades de uma transformação educacional. Ainda, ele é rápido em observar que as conceitualizações de Freire em uma prática educacional democratizante eram distintivamente mais radicais do que às de seus contemporâneos na universidade, que estavam longe de validar as experiências, a cultura dos setores populares da maneira que Freire propõe. Rosas ressalta as tarefas de Freire enquanto trabalhava no serviço industrial social da escola de Pernambuco (Sesi) durante os anos 50. Este papel de liderança educacional, Rosas confirma, ofereceu a ele a experiência de aprendizado de engajar em uma mudança dialógica dentro dos Círculos de Pais e Professores, começando como diretor da Divisão de Educação e Cultura, tornando-se mais tarde, Superintendente. Rosas também recalcula a trajetória do Movimento da Cultura Popular (MCP) e os movimentos paralelos da Ação Católica e Juventude Universitária Católica (JUC) e o Movimento de Educação de Base (MEB), todos os quais executaram papéis fundamentais na construção do ímpeto do movimento popular do período que, inevitavelmente, informou a conceitualização de Freire da ação pedagógica para a transformação social (LIX–LXIV).
Incentivado por forças progressivas mais radicais, que desafiou a legitimidade de uma oligarquia anacrônica e uma burguesia brasileira contraditória se esforçando para estabelecer seu controle político, movimentos originados do povo, como o Movimento da Cultura Popular (MCP) que emergiu. Conseqüentemente, com a inauguração da presidência de João Goulart em 1963, Freire foi chamado para auxiliar o governo de Goulart em lançar a campanha da alfabetização nacional. A campanha foi feita para adotar seu eficiente método de ensino de ler e escrever, enquanto edificava a consciência dos alunos adultos que Freire começou a implementar no nordeste brasileiro nos anos entrementes da escrita de sua dissertação. A implementação do tão chamado “Método Freire” como uma política de educação nacional do governo deposto de Goulart resultaria em sua perseguição e exílio logo após o golpe militar de 1964.
Cristina Heiniger Freire, filha de Paulo Freire, oferece algumas palavras emocionadas de lembranças carinhosas no segundo testemunho chamado “Convivência com meus pais (1947-64)”. Cristina evoca a essência da humildade de Freire, contando a história – verídica das memórias e vozes de sua infância – do engajamento inicial de seus pais no movimento educacional popular no Brasil do fim dos anos 40 ao fim dos anos 50, e a passagem de sua família pelo trauma do exílio em 1964. Escrevendo em abril de 1999 (dois anos após a morte de seu pai, em abril de 1997) ela evita qualquer pretensão intelectual e faz referência às últimas impressões de ser criada sob o cuidado afetuoso e experiente do grande pedagogo. Ao concluir seu breve testemunho, a filha de Freire se lembra de como seu pai sempre costumava dizer, “Basta ser pais para errar,” (p. xxxi) revelando a boa vontade do pai de preservar uma abordagem auto-reflexiva, mesmo no poderoso papel de pai. Através da vida e obra de Freire, ele nos chamava para reconhecer nossa própria humanidade e a verdade que aprendemos através dos erros, crescimento, progresso e humanização. Antes de engrenar no texto teoricamente denso que está por vir, o comentário de Cristina serve para esboçar na cabeça do leitor a face sempre muito humana que Paulo Freire sempre vestiu seu intelectualismo e sua boa vontade de continuar a tributar suas asserções teóricas na luz da crítica contemporânea e interesses humanísticos universais.
A tese de Freire para uma cadeira na História da Filosofia da Educação na Universidade de Pernambuco – embora, evidentemente, um de seus primeiros escritos – permanece dentro do estilo tradicional de narrativa do eminente pedagogo e caminho argumentativo circular característico. Ele reitera repetidamente pelo texto – com a tranqüila firmeza do contador de histórias convencido da necessidade de instilar a moral de sua narrativa – o estado opressivo das relações sócio-políticas brasileiras; as tendências culturais paternalistas e fatalísticas que resulta de tal contexto material-histórico, e os elementos básicos de sua proposta para uma prática educacional que procura transformar o status quo, para libertar as pessoas das correntes de uma consciência colonizada subjugada em um estado de conformidade, encaminhando-os as um engajamento ativo e coletivo, – através de diálogo, reflexão crítica e ação política – em um caminho necessário rumo a democratização da sociedade.
Para desenvolver sua narrativa, ele adota, necessariamente, uma postura dialética, expondo no início, com o brilho para declarar sem pudores o que é mais óbvio, embora mais imperativo: “O problema educacional brasileiro, de importância incontestavelmente grande, é desses que precisam ser vistos organicamente. Precisam ser vistos do ponto de vista de nossa atualidade. No jogo de suas forças, algumas ou muitas dentre elas, e antinomia umas com as outras.” (p. 9-10). Para Freire, uma contradição saliente dentro da realidade brasileira da época era a co-existência das áreas “altamente industrializadas” com aqueles que eram “intensivamente subdesenvolvidos”. Portanto, dessas condições contraditórias, desenvolve-se a necessidade de criar “uma educação em prol do desenvolvimento e da democracia” (p. 51).
Citando Corbisier (1956), Freire afirma nos primeiros parágrafos de sua dissertação uma premissa fundamental que tem marcado o trabalho de sua vida: uma convicção inabalável nos dialetos da existência humana: de ser e agir no mundo. Esta transitividade da condição humana como Freire a define, se refere à capacidade dos humanos de transformar e ser transformado ao mesmo tempo. Freire escreve, “A posição do homem, realmente, diante destes dois aspectos de sua “moldura”, não é simplesmente passiva. No jogo de suas relações com esses mundos ele se deixa marcar, enquanto marca igualmente.” (p. 10). Para esta conclusão, Freire propõe uma abordagem que compromete os alunos em um processo dialógico que os movimentos de um estado de imersão dentro do mundo e de uma posição fatalística em uma posição de imersão (para estar presente com o mundo). Isto leva a uma compreensão autêntica e dialética da realidade permitindo expectativa crítica e ação transformadora. Em seu característico estilo argumentativo circular, Freire volta para essa premissa em suas observações conclusivas: reafirmando uma aderência a um conceito de agência, ele insiste que certos processos educacionais que contextualizam o aprendizado tornam possível um vínculo orgânico com a realidade, criando, portanto, a possibilidade do material histórico e compreensão crítica dessa realidade, e então o poder de transformá-la.
Da mesma maneira, Freire escreve de forma direta a respeito dos imperativos do diálogo, participação e relevância cultural para que um processo educacional autêntico aconteça. Estes são os três elementos fundamentais da pedagogia libertadora apontada para a “democratização” e superando as condições nas quais os alunos/professores estão submergidos e, portanto, suscetíveis à trincheira nos estados da “consciência falsa” e um senso de impotência em determinar seus destinos. Tomando a sociedade brasileira de meio do século XX como ponto inicial de suas postulações teóricas em educação e democracia, Freire aponta para o “centralismo, verbalismo, antidiálogo, autoritarismo e assistencialismo” como manifestações da “inexperiência democrática” dos brasileiros da época. Esta tese é essencialmente um chamado para que os brasileiros ganhem experiência democrática através de uma abordagem diferente em educação. Por esse motivo, Freire insiste em uma relação horizontal de respeito mútuo e até mesmo, reciprocidade de troca de conhecimento entre os educadores e os educandos; uma troca estabelecida em uma reflexão crítica da realidade. Freire explica, “Por isso mesmo é que falamos tanto, em termos teóricos, na necessidade de uma vinculação da nossa escola com a sua realidade local, regional e nacional, de que haveria de resultar a sua organicidade e continuamos, na prática, a nos distanciar dessas realidades todas e a nos perder em tudo o que signifique antidiálogo, antiparticipação, anti-responsabilidade.” (p. 13).
De acordo com esta perspectiva, um dos principais temas de Educação e Atualidade brasileira é uma crítica sólida de assistencialismo ao populismo que se difundiu e as políticas sociais desenvolvimentalistas que pôs em evidência a assistência aos pobres e incultos, em vez de empobrecê-los. Esta crítica do assistencialismo é uma rejeição da teoria capital humana que denunciou as reformas educacionais na região da América Latina na época. Seu desprezo pelas abordagens parternalistas à reforma social e educacional é demonstrada em sua consistente afirmação por toda sua tese, sobre o aforismo: “um trabalho com o povo e nunca sobre o povo ou simplesmente para ele”, “Educação democrática que fosse, portanto, um trabalho do homem com o homem, e nunca um trabalho verticalmente do homem sobre o homem ou de maneira assistencial do homem para o homem, sem ele.” (p. 14). Para reforçar suas críticas adicionais sobre as tendências paternalistas do paradigma do desenvolvimentalismo dominante, Freire cita Vieira Pinto (um diretor do ISEB): “ideologia do desenvolvimento, diz ele, só é legítima quando exprime a consciência coletiva, e revela os seus anseios em um projeto que não é imposto, mesmo de bom grado às massas, mas provém delas.” (p.22).
Freire observa que o Brasil foi, durante metade do século XX, uma “sociedade em trânsito” de formas antidemocráticas tradicionais, de relações sociais e organização econômica de exportação baseada em seu desenvolvimento anterior sob o colonialismo voltado para a economia de mercado capitalista com mobilidade social crescente, enfrentando a promessa de uma infinidade de possibilidades democráticas. Na opinião de Freire, Educação era a chave para mover a sociedade brasileira em direção a relações de poder mais democráticas dentro de uma economia capitalista em processo de modernização. Para Freire, isto pediria que os brasileiros mudassem de uma consciência que ele caracteriza como transitivo-ingênua para uma “consciência crítica transitiva”: consciência articulada com prática. Ele apresenta a noção da “dialogação” como o método pedagógico voltado para essa “consciência crítica transitiva” que em outros textos ele desenvolve cuidadosamente em uma noção de consciência crítica histórica ou conscientização.
Evidentemente, para Paulo Freire, o vínculo essencial entre teoria e prática já se tornou uma premissa fundamental de suas idéias e feitos em prol da transformação educacional no Brasil (e mais tarde em todos os lugares). Com 38 anos, ele cita os 10 anos de “intimidade” que ele já viveu voltado para as mudanças educacionais com trabalhadores urbanos do SESI em Recife como a base nas observações e declarações feitas em sua tese. Sobre as discussões democráticas com origens da classe trabalhadora na qual ele participou como diretor do SESI, ele enfatiza: “Nunca ditamos uma solução aos pais de alunos de escolas sesianas.” (p.24). Esta é a experiência concreta da qual Freire deduz a inspiração e afirmação de sua tese para uma abordagem participatória na educação e ação política, enquanto faz referência aos influentes líderes intelectuais da época. Novamente ele cita Vieira Pinto para sublinhar seu argumento: “A questão se faz clara. Não está, realmente, em que as classes dirigentes, superpostas ao povo, lhe apresentem e lhe imponham a solução de seus problemas. Solução pensada por elas, distanciadas do povo. É preciso que ele cresça em interferência dessa solução.” (p. 23).
No segundo capítulo – baseado em uma análise da formação histórico-cultural da consciência brasileira (p. 59) – Freire disseca as condições da inexperiência democrática do Brasil, devido a sua herança colonial. Freire reivindica que este “espírito democrático subdesenvolvido” deve-se, em parte, por causa da colonização Portuguesa: 1) a expansão geográfica foi muito inexplorada pelos Portugueses devido ao interesse principal da Coroa em fomentar o comércio com o oriente; 2) o tamanho relativamente pequeno de Portugal limitou sua capacidade de povoar e, conseqüentemente, colonizar totalmente o Brasil. Resumindo, ele diz: “Faltou-lhes organicidade com a colônia.” E queriam somente explorar o país. Esta postura particularmente colonizadora, Freire explica, leva à emergência da Fazenda como a forma dominante de comercialização da terra, e o estabelecimento de relações hierárquicas de poder marcadas entre uma classe oligárquica e camponeses e escravos que trabalhavam na terra (p.65). Ele considera esta realidade social estratificada verticalmente como uma dominação que ultrapassa o diálogo e o autogoverno (p. 65). Entretanto, em sua análise da formação social brasileira, é notável que Freire não se aprofunda com êxito nas repercussões da escravidão além de uma consideração do tão chamado “mandonismo” ou “paternalismo” condescendente que resultou da longa situação do regime escravocrata do Brasil. Dado o tempo em que ele estava escrevendo este texto, o esperado era que ele não se engajasse em nenhuma discussão sobre caráter complexo das relações raciais no Brasil, e os efeitos nas iniqüidades contemporâneas econômicas e sociais. Esta é uma crítica a seu trabalho que Freire enfrentaria no futuro.
No terceiro capítulo, Freire esboça as condições básicas necessárias para que os brasileiros deixassem as condições limitadores que ele identifica no capítulo anterior, focando especificamente em uma crítica sobre o sistema educacional contemporâneo, enquanto propõe uma prática educacional democratizante. A meta, de acordo com Freire – considerando a fase história em que o Brasil se encontrava na época em que ele escrevia – era criar uma nova disposição mental crítica em uma parte dos brasileiros, que permitiria que eles sobrepujassem suas inexperiências com o comprometimento político e social (p. 79). Novamente ele cita Mannheim ao insistir que somente através da aquisição do “conhecimento concreto” os brasileiros poderiam se comprometer com uma tributação crítica de seu passado e, portanto, uma transformação radical de seu presente e a formação de um futuro mais democrático. (p. 82.)
A fim de concluir tal mudança ideológica, Freire assegura que uma educação verdadeiramente democratizante deve ser definida fora dos confins de uma aprendizagem institucionalizada: “E é precisamente uma educação assim que, ultrapassando as paredes das escolas, precisa ser incrementada entre nós.” Por outro lado, esta democratização da educação brasileira não deveria ser realizada somente nas escolas, como ele articula nesta visão de esperança por uma nova escola: “Somente uma escola centrada democraticamente no seu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas circunstâncias, integrada com seus problemas, levará os seus estudantes a uma nova postura diante dos problemas de contexto.” (p. 85). Trinta anos mais tarde, durante sua liderança no Secretariado Municipal da Educação de São Paulo (MSE-SP) no início dos anos 90, Freire e seus colegas explorariam em prática este modelo da maneira como ele foi incorporado no empenho do Partido dos Trabalhadores em avançar a democratização das escolas públicas no Brasil. Fundamental para este empenho era a reorientação sistemática dos cursos oferecidos pela escola baseado na realidade da comunidade a qual ela serve. (Note 5)
As conceitualizações chave do pensamento de Freire são apresentadas e exploradas do princípio ao fim deste livro, e resumidas no capítulo conclusivo. O livro serve como uma plataforma da qual Freire emite sua crítica preliminar do sistema educacional brasileiro e aponta as práticas predominantes que não estavam suprindo com êxito a crescente demanda do país por uma força de trabalho qualificada, que abasteceria os motores de uma economia industrializada emergente. Para Freire, a precariedade do sistema educacional não correspondia ao seu papel histórico para inserir o “homem” brasileiro (e a mulher) em um “ritmo democrático” cultural e político da maneira que ele coloca. Freire fala sinceramente das tendências sociais brasileiras em “auto-selecionar” (discriminar) e hiperbolizar as divisões de classe como contraditórias ao desenvolvimento das forças democráticas no país. O livro sublinha a permanente convicção do autor no papel emancipatório do ato de saber. Enquanto designava explicitamente as condições limitadas da existência humana em um contexto social e momento histórico propensos, Freire conclui a declaração de sua posição pedagógica-filosófica fundamental: aquele que propõe uma abordagem alternativa para a educação que objetiva a “libertação do homem dessas limitações por meio da consciência das limitações” (p. 114).
Notas
1. MEC (Ministério da Educação e Cultura), Educação para o desenvolvimento, 1958, como citado por Freire em Educação e atualidade brasileira, p. 87.
2. A escravidão foi abolida em 1887. A República e a primeira Constituição Brasileira foi proclamada em 1891.
3. David N. Plank, The Means of Our Salvation: Public Education in Brazil, 1930-1995 (Boulder, CO: Westview Press, 1996).
4. Esta resenha foi escrita durante a deflagração da viciosa guerra do governo dos Estados Unidos no Iraque.
5. Carlos Alberto Torres, Maria del Pilar O’Cadiz e Pia Lindquist Wong, Educacão e democracia: a praxis de Paulo Freire em São Paulo, São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2002.
Acerca da autora da resenha
Maria del Pilar O'Cadiz, Ph.D. é diretora executiva da Collaborative After School Project (CASP)–– um projeto de pesquisa e assitencia técnica para os programas educacionais fora do horário escolar –– na Universidade de California, Irvine. O projecto CASP colabora com a Los Angeles County Office of Education e o Departamento de Educacão do estado da California no organizacao da formacao professional e a producao de materias para orientar o trabalo do educadores no sector de “After School.” Dr. O’Cadiz e autora com Pia Lindquist Wong e Carlos Alberto Torres, do livro, Education and Democracy Paulo Freire, Social Movements and Educational Reform in São Paulo, (Westview, 1998), (traduzido ao Portuguese)

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