APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA
O lugar do conhecimento e da inteligência
Kátia Cristina Stocco Smole
Doutoranda em Educação pela FE-USP
Coordenadora do Mathema
Em todas as instâncias nas quais educadores reúnem-se para discutir sobre educação, parece haver um consenso de que a educação básica deveria visar fundamentalmente à preparação para o exercício da cidadania, cabendo à escola formar o aluno em conhecimentos, habilidades, valores, atitudes, formas de pensar e atuar na sociedade através de uma aprendizagem que seja significativa.
A despeito deste aparente consenso, em grande parte a realidade de nossas escolas continua dominada por uma concepção pedagógica tradicional, na qual se ensina uma grande quantidade de informações - geralmente tendo como base única e exclusivamente o programa do livro didático - que servirão momentaneamente e serão descartadas após a prova, não chegando sequer a modificar as concepções espontâneas que os alunos trazem de seu cotidiano.
É comum que os currículos escolares sejam organizados em torno de um conjunto de disciplinas nitidamente diferenciadas, dominadas por uma ritualização de procedimentos escolares muitas vezes obsoletos, cujos conteúdos se apoiam numa organização rigidamente estabelecida, desconectada das experiências dos próprios alunos e na qual uma etapa é preparação para a seguinte. A despeito de todo avanço das pesquisas em educação, da ciência e da tecnologia, nossas aulas mais se assemelham a modelos do início do século, tendo como perspectiva metodológica dominante a exposição, a exercitação e a comprovação.
A escola, organizada sob tal enfoque, carece de significados aos alunos, gera abandono, desmotivação e mesmo rebeldia que se manifesta, entre outras coisas, na agressividade dos alunos e em sua indisciplina.
A resposta que a escola dá a isso é, por vezes, acentuar procedimentos repressivos, impor recursos disciplinares ou atribuir os problemas a fatores externos tais como desequilíbrio familiar, imaturidade do aluno, ou os incontáveis problemas de aprendizagem.
Na essência, ainda temos uma escola meritocrática, classificatória que, se não exclui por meio de reprovações, exclui por uma aprendizagem que não ocorre.
Não estamos ainda preparados para as diferenças individuais. Falamos sobre classes heterogêneas, sonhando com a homogeneidade e, como conseqüência mais direta, criamos a categoria dos atrasados, dos excluídos, dos imaturos e dos carentes de pré-requisitos para estarem em nossas salas de aula.
Tal cenário certamente passa distante do discurso sobre formação para cidadania e, mais especificamente, da aprendizagem significativa.
De fato, para que uma aprendizagem ocorra ela deve ser significativa, o que exige que seja vista como a compreensão de significados, relacionando-se às experiências anteriores e vivências pessoais dos alunos, permitindo a formulação de problemas de algum modo desafiantes que incentivem o aprender mais, o estabelecimento de diferentes tipos de relações entre fatos, objetos, acontecimentos, noções e conceitos, desencadeando modificações de comportamentos e contribuindo para a utilização do que é aprendido em diferentes situações.
Em resumo, se queremos que os conhecimentos escolares contribuam para a formação do cidadão e que se incorporem como ferramentas, como recursos aos quais os alunos recorram para resolver com êxito diferentes tipos de problemas, que se apresentem a eles nas mais variadas situações, e não apenas num determinado momento pontual de uma aula, a aprendizagem deve desenvolver-se num processo de negociação de significados.
Por outro lado, se os alunos não apreciam o valor dos conceitos escolares para analisar, compreender e tomar decisões sobre a realidade que os cerca, não se pode produzir uma aprendizagem significativa.
Não queremos dizer com isso que todas as noções e conceitos que os alunos aprendem devem estar ligados à sua realidade imediata, o que seria olhar para os conteúdos escolares de maneira muito simplista, queremos isso sim afirmar que os conteúdos que a escola veicula devem servir para desenvolver novas formas de compreender e interpretar a realidade, questionar, discordar, propor soluções, ser um leitor reflexivo do mundo que o rodeia.
Nesse sentido Pérez Gómez (1998, p. 95) afirma que "o problema não é tanto como aprender, mas sim como construir a cultura da escola em virtude de sua função social e do significado que adquire como instituição dentro de uma comunidade social".
Ao nosso ver, para que o discurso da aprendizagem significativa passe à ação, para que haja integridade entre o processo de ensino e aprendizagem, é preciso mais do que novas metodologias, recursos didáticos e mesmo aparato tecnológico.
Certamente a condição mais básica para que as mudanças efetivamente ocorram é a melhoria da formação e das condições de trabalho do professor.
No entanto, neste artigo pretendemos destacar outros fatores que consideramos essenciais quando desejamos uma aprendizagem para a compreensão, em especial, a necessidade de transformação nas concepções de conhecimento e inteligência que permeiam as ações didáticas do professor.
Conhecimento: da linearidade à rede
A aprendizagem significativa não combina com a idéia de conhecimento encadeado, linear, seriado. Essa forma de conceber o conhecimento pode organizar o ensino mas não a aprendizagem, que acaba se constituindo como um processo à parte, marginal ao trabalho do professor. Conceber o conhecimento organizado linearmente contribui para reforçar a idéia de pré-requisitos que acaba justificando fracassos e impedindo aprendizagens posteriores.
Na concepção da linearidade do conhecimento, o ensino funcionaria como uma engrenagem, uma cadeia na qual cada fragmento tem função de permitir acesso a outro fragmento. Talvez esta forma de conceber o conhecimento permita ao aluno armazenar e mecanizar algumas informações por um tempo, ter bom desempenho em provas de devolução e até mesmo avançar de uma série para outra, o que não significa necessariamente uma aprendizagem com compreensão.
Falar em aprendizagem significativa é assumir que aprender possui um caráter dinâmico que exige ações de ensino direcionadas para que os alunos aprofundem e ampliem os significados elaborados mediante suas participações nas atividades de ensino e aprendizagem. Nessa concepção o ensino é um conjunto de atividades sistemáticas, cuidadosamente planejadas, em torno das quais conteúdo e forma articulam-se inevitavelmente e nas quais o professor e o aluno compartilham parcelas cada vez maiores de significados com relação aos conteúdos do currículo escolar, ou seja, o professor guia suas ações para que o aluno participe de tarefas e atividades que o façam se aproximar cada vez mais dos conteúdos que a escola tem para lhe ensinar.
Se pensarmos na aprendizagem significativa como o estabelecimento de relações entre significados, os preceitos de precisão, linearidade, hierarquia, encadeamento que estão presentes na escola, na organização do currículo e na seleção das atividades, devem dar lugar a outras perspectivas nas quais o conhecimento pode ser visto como uma rede de significados , em permanente processo de transformação no qual, a cada nova interação, a cada possibilidade de diferentes interpretações, uma nova ramificação se abre, um significado se transforma, novas relações se estabelecem, possibilidades de compreensão são criadas. Nesse sentido, rompendo com as teorias lineares que dão sustentação ao modelo tradicional de ensino, em que existem pré-requisitos, etapas rígidas e formais de ensino e aprendizagem, cadeias de conteúdos, escalas de avaliação da aprendizagem, a teoria do conhecimento como rede sustenta que a apreensão de um conceito, idéia, fato, procedimento, faz-se através das múltiplas relações que aquele que aprende faz entre os diferentes significados desse mesmo conceito.
Na prática escolar, essa teoria é determinante para a escolha dos conteúdos, a organização da sala de aula e da multiplicidade de recursos didáticos que serão utilizados pelo professor, implicando articular o ensino e a aprendizagem, o conteúdo e a forma de ensiná-lo, proporcionando cada vez mais um ambiente escolar favorável à aprendizagem, no qual todas as ações venham a favorecer o processo múltiplo, complexo e relacional de conhecer e incorporar dados novos ao repertório de significados, de modo a poder utilizá-los na compreensão orgânica dos fenômenos e no entendimento da prática social.
É preciso levar em conta ainda que uma aprendizagem significativa não se relaciona apenas a aspectos cognitivos dos sujeitos envolvidos no processo, mas está também intimamente relacionada com suas referências pessoais, sociais e afetivas. Nesse sentido, afeto e cognição, razão e emoção se compõem em uma perfeita interação para atualizar e reforçar, romper e ajustar, desejar ou repelir novas relações, novos significados na rede de conceitos de quem aprende. Por esse motivo, a aprendizagem não ocorre da mesma forma e no mesmo momento para todos; interferem nesse processo as diferenças individuais, o perfil de cada um, as diversas maneiras que as pessoas têm para aprender, o que nos remete para muitas outras variáveis de interferência na aprendizagem significativa, dentre as quais desejamos destacar a concepção de inteligência que permeia o processo.
Inteligência: da grandeza ao espectro
Uma aprendizagem significativa está relacionada à possibilidade dos alunos aprenderem por múltiplos caminhos e formas de inteligência, permitindo aos estudantes usar diversos meios e modos de expressão. De fato, se analisarmos os princípios da aprendizagem significativa já não parece ter lugar a concepção dominante de inteligência única, que possa ser quantificada e que sirva como padrão de comparação entre pessoas diferentes, para apontar suas desigualdades.
Em uma perspectiva de aprendizagem significativa, a inteligência está, acima de tudo, associada à aptidão de organizar comportamentos, descobrir valores, inventar projetos, mantê-los, ser capaz de libertar-se do determinismo da situação, solucionar problemas e analisá-los. Conceber a inteligência desse modo implica em pensá-la não como uma combinação apenas de competências lingüísticas e lógico-matemáticas, que têm sido a base da escola tradicional, mas de várias competências, chamadas de inteligências que podem ser melhor entendidas quando associamos a ela a imagem de espectro de competências.
Uma visão pluralista da mente reconhece muitas facetas diversas da cognição, reconhece também que as pessoas têm forças cognitivas diferenciadas e estilos de aprendizagem contrastantes. Uma vez assumido que crianças e jovens de diferentes idades ou fases da escolaridade têm necessidades diferentes, percebem as informações culturais de modo diverso e assimilam noções e conceitos a partir de diferentes estruturas motivacionais e cognitivas, a função da escola passa a ser a de propiciar o desenvolvimento harmônico destas inteligências e usar os diferentes potenciais de inteligência dos alunos para fazer com que eles aprendam.
Nessa perspectiva, o processo de ensino e aprendizagem deve cuidar para ampliar as dimensões dos conteúdos específicos dos diversos componentes curriculares, incluindo ações que possibilitem o desenvolvimento e a valorização de todas as competências intelectuais: corporais, pictóricas, espaciais, musicais, inter e intra pessoais, além das lingüísticas e lógico-matemáticas.
A importância da comunicação
Refletir sobre concepções de conhecimento e inteligência como fatores de interferência nas considerações sobre aprendizagem na escola nos faz perceber que aprender não é nunca um processo meramente individual, nem mesmo limitado às relações professor aluno. Ao contrário, é um processo que se dá imerso em um grupo social com vida própria, com interesses e necessidades dentro de uma cultura peculiar.
Por isso, a aula deve tornar-se um fórum de debate e negociação de concepções e representações da realidade, um espaço de conhecimento compartilhado no qual os alunos sejam vistos como indivíduos capazes de construir, modificar e integrar idéias, tendo a oportunidade de interagir com outras pessoas, com objetos e situações que exijam envolvimento, dispondo de tempo para pensar e refletir acerca de seus procedimentos, de suas aprendizagens, dos problemas que têm que superar.
A comunicação define a situação que vai dar sentido às mensagens trocadas e, portanto, não consiste apenas na transmissão de idéias e fatos, mas principalmente, em oferecer novas formas de ver essas idéias, de lidar com diferenças e ritmos individuais, de pensar e relacionar as informações recebidas de modo a construir significados.
Os alunos devem participar na aula trazendo tanto seus conhecimentos e concepções quanto seus interesses, preocupações e desejos para sentirem-se envolvidos num processo vivo, no qual o jogo de interações, conquistas e concessões provoque o enriquecimento de todos.
Assim, é inegável a importância da intervenção e mediação do professor e a troca com os pares para que cada um vá realizando tarefas e resolvendo problemas, que criem condições para desenvolverem competências e conhecimentos. Nesse aspecto a linguagem adquire papel fundamental por ser instrumento básico de intercâmbio entre pessoas tornando possível a aprendizagem em colaboração.
A comunicação pede o coletivo e transforma-se em redes de conversações em que pedidos e compromissos, ofertas e promessas, consultas e resoluções se entrecruzam e se modificam de forma recorrente nestas redes. Todos os membros da organização participam da criação e da manutenção deste processo de comunicação. Portanto, não são meras informações, mas sim atos de linguagem, que comprometem aqueles que os efetuam frente a si mesmos e aos outros.
A ação de comunicação desempenha um papel importante na construção de elos entre as noções intuitivas dos alunos e a linguagem simbólica da escola; desempenha também um papel chave na construção de relações entre as representações físicas, pictóricas, verbais, gráficas e escritas das diferentes noções e conceitos abordados nas aulas. Interagir com os colegas e professores auxilia os alunos a construir seu conhecimento, aprender outras formas de pensar sobre idéias e clarear seu próprio pensamento, enfim, construir significados, estabelecer relações interpessoais, perceber limites, descobrir no outro possibilidades para si.
Variando os processos e formas de comunicação, ampliamos a possibilidade de significação para uma idéia surgida no contexto da classe. A idéia de um aluno, quando colocada em evidência, provoca uma reação nos demais formando uma teia de interações e permitindo que diferentes inteligências se mobilizem durante a discussão.
Modificar a perspectiva sobre o conhecimento e a inteligência na busca por uma aprendizagem significativa tem conseqüências diretas e profundas na concepção e organização da vida em aula, supondo um desafio didático que envolve muito mais do que novas estratégias didáticas. Requer um mudança na concepção de todos os elementos que interferem e determinam a vida e o trabalho na aula, indicando novas lentes para contemplar os alunos, selecionar conteúdos de ensino e muito especialmente, a avaliação.
Coerência no processo de avaliar
Pode-se afirmar que a situação de ensino é também uma situação direcionada pela avaliação, que estabelece parâmetros de atuação de professores e alunos. Se considerarmos verdadeiramente que a aprendizagem deve ser significativa, e fundamentada em novas metáforas para o conhecimento e a inteligência, a avaliação necessita formar parte desse processo de aprender, servindo para mediar tomadas de decisão no processo de ensino e aprendizagem, ou seja, para corrigir os rumos das ações, através da reflexão sobre a prática docente.
Nesse sentido, a intenção de uma aprendizagem significativa, exige uma avaliação a favor do aluno, que contribua para torná-lo consciente de seus avanços e necessidades fazendo com que se sinta responsável por suas atitudes e sua aprendizagem.
A avaliação no contexto de uma aprendizagem significativa deveria ocorrer no próprio processo de trabalho dos alunos, no dia-a-dia da sala de aula, no momento das discussões coletivas, da realização de tarefas em grupos ou individuais. É nesses momentos que o professor pode perceber se os alunos estão ou não se aproximando dos conceitos e habilidades que considera importantes, localizar dificuldades e auxiliar para que elas sejam superadas através de intervenções, questionamentos, complementando informações, buscando novos caminhos que levem à aprendizagem.
Em razão disso, a avaliação nunca deveria ser referida a um único instrumento, nem restrita a um só momento, ou a uma única forma, pois somente um amplo espectro de múltiplos recursos de avaliação pode possibilitar canais adequados para a manifestação de múltiplas competências e de redes de significados, fornecendo condições para que o professor, analise, provoque, acione, raciocine, emocione-se e tome decisões e providências junto a cada aluno.
Uma nota final
As relações envolvidas numa perspectiva de aprendizagem significativa não se restringem aos métodos de ensino ou a processos de aprendizagem. Na sala de aula, o conhecimento não é apenas transmitido pelo professor e aprendido pelos alunos. Ensinar e aprender com significado implica em interação, disputa, aceitação, rejeição, caminhos diversos, percepção das diferenças, busca constante de todos os envolvidos na ação de conhecer. A aprendizagem significativa segue um caminho que não é linear, mas uma trama de relações cognitivas e afetivas, estabelecidas pelos diferentes atores que dela participam.
Quando há a busca pela integridade entre o discurso da aprendizagem significativa e as ações que podem favorecê-la junto aos alunos, então mais do que repetir procedimentos é preciso que nós, educadores, possamos refletir sobre todas as mudanças que se fazem necessárias para que passemos da intenção à ação de tornar a escola mais humana, mais justa e mais acolhedora para quem nela busca sua formação cidadã.
Referências Bibliográficas
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Perrenoud, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens - entre duas lógicas. Porto Alegre; Artmed, 1999.
Sacristán, J. G. e Pérez Gómez, A.I. Compreender e transformar o ensino. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
Sampaio, Maria M. F. Um gosto amargo de escola: relações entre currículo, ensino e fracasso escolar. São Paulo: EDUC/FAPESP, 1998.
Wiske, Martha S. (org.). La enseñanza para la comprensión: vinculación entre la investigación y la práctica. Barcelona: Paidós Educador, 1998.
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