Por César Fraga / Publicado em 5 de dezembro de 2013
Foto: Arquivo pessoal
José Martins Filho é médico pediatra, lecionou por 35 anos na Unicamp, onde atua como professor convidado da Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente e pesquisador do Centro de Investigação em Pediatria, do qual foi fundador e primeiro presidente. Ex-diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, foi também vice-reitor e reitor (1994-1998). Pró-reitor acadêmico da Universidade Cruzeiro do Sul por oito anos, atualmente é assessor acadêmico do reitor da Unifeo (SP). Possui vasta produção científica, sendo autor de livros sobre pediatria e educação universitária. É autor de Lidando com Crianças, conversando com os pais, obra vencedora do Prêmio Jabuti em 1996; e Filhos, amor e cuidados: reflexões de um pediatra; além de um dos primeiros livros sobre amamentação: Como e por que amamentar (1986). Possui mais de uma centena de trabalhos publicados dentro e fora do país. Lançou recentemente A criança terceirizada – os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo, já em sua 6ª edição e segunda reimpressão, um ano depois de seu lançamento. O livro integra uma série sobre o tema que inicia em Quem cuidará das crianças? e Cuidado, afeto e limites – uma combinação possível, esse último escrito em co-autoria com Ivan Capellato. Martins Filho concedeu entrevista exclusiva ao Extra Classe via e-mail, no final de novembro.
EC – Como enfrentar o fenômeno da terceirização das crianças?
José Martins Filho – É preciso ver qual é o problema, se tem solução, e ter a coragem de enfrentá-lo abertamente, sem subterfúgios. Quando faço conferências ou palestras por todo o Brasil, vejo gente que se entusiasma e aplaude e gente que tenta se defender. Dizem: “Ah, mas eu preciso ganhar dinheiro… tenho que ter celular, automóvel, bons colégios, boa comida etc. etc. E por isso não dá para fazer isso tudo que vocês falam a respeito da terceirização”. Infelizmente, sou obrigado, muitas vezes, a dizer que ter um filho é uma das decisões mais sérias que se pode e se deve tomar, e que é melhor não ter um filho do que, tendo-o, não poder acompanhá-lo, acariciá-lo, amamentá-lo, enfim, cuidar dele, principalmente nos primeiros anos de vida. Isso é fundamental para a saúde dessa criança na infância e na vida adulta. E o pior é que não cuidar bem de um filho, não educá-lo (e isso dá trabalho), não participar da vida dele, é também não se preocupar com a vida futura. Com a humanidade, e com a família, que é, sem dúvida, a célula fundamental dessa nossa sociedade que vive uma crise muito grave.
EC – Como o senhor sintetizaria a terceirização crescente das crianças pelas famílias?
Martins Filho – Acontece por vários motivos: por uma família que está sendo desconstruída, como atestam vários pensadores e escritores, pelo consumismo exagerado do mundo de hoje, por uma visão muito pessoal e eu diria até um pouco egoísta dos adultos que, como sempre na história da humanidade, valorizam mais seu momento de vida, sua necessidade de obter prazer e satisfação imediata, do que a atenção com o ser que colocaram no mundo. Um mercado de trabalho terrível, que não valoriza a maternidade, pelo contrário, não permite que a mulher possa exercer plenamente a maternidade, amamentando exclusivamente até seis meses e ficando perto de seu filho, pelo menos nos primeiros dois anos de vida, como outras sociedades permitem e dão até dois anos ou às vezes mais de licença-maternidade. Acho que quem não quer se submeter ao cuidado das crianças nesse período, que acha isso chato, ruim, desagradável, penoso, deveria pensar muito antes de ter um filho.
EC – Em que classes sociais é mais comum e quais as razões?
Martins Filho − Infelizmente, a terceirização existe em todas as classes sociais. O problema não é de riqueza. É de princípio. De valorização da maternidade, da paternidade e do compromisso com o outro. Crianças são terceirizadas nas favelas, onde são entregues a vizinhos, parentes, ou nas mansões mais ricas, onde quem as cuida são as babás. Claro que, dependendo da classe, variam os motivos. Às vezes por questão de sobrevivência, de desemprego, de falta de licença-maternidade, outras vezes por compromissos sociais e até por futilidades. Mães que realmente não queriam ter esse compromisso e delegam os cuidados. Não amamentam etc.
EC – Como alertar para o problema sem jogar a “culpa” sobre mães, pais e familiares, se é que é possível?
Martins Filho − Essa questão da culpa permeia sempre todas as dezenas de entrevistas que já dei para jornais, tevês, revistas. O que eu penso é que a sociedade humana, ao se defrontar com problemas críticos existenciais, sempre tenta ver se pode se eximir de culpabilidade ou de possíveis responsabilidades pessoais pelo que está acontecendo. Entretanto, o que sinto também, como professor universitário há quase 50 anos, é que tentamos não sentir culpa por eleger tanta gente incompetente e corrupta para nos governar ou decidir sobre nossas leis, tentamos não sentir culpa quando vemos pessoas embriagadas dirigindo e matando inocentes ou quando percebemos claramente a degradação do meio ambiente. Não sentimos culpa por fumar, o que traz sérias consequências para a saúde. É uma questão de consciência do que é prioritário e do que queríamos quando decidimos ter um filho. Nas vezes em que a gravidez foi inesperada, claro que é mais difícil ainda de resolver o problema. É preciso lutar pelo direito da mulher poder ficar com seu filho. Licença-maternidade igual a países que já o fizeram. Creches nos locais de trabalho para as mães (a CLT estabelece que isso é preciso, mas os próprios sindicatos e as mães aceitam uma pequena e irrisória quantia em dinheiro em substituição à necessidade de ter creches próximas a elas…). Quando isso é cumprido, as mães faltam menos ao trabalho, as crianças crescem mais felizes, e têm menos doenças.
EC – Que reflexos essa terceirização, a ausência dos pais no dia a dia, provocam na criança e no futuro jovem-adulto?
Martins Filho − Existem centenas de trabalhos, em todo o mundo, que analisam esses aspectos. Como sempre, em medicina e em biologia, as variáveis são inúmeras e não se pode dizer que uma criança que sofreu abandono vai ser mais sofrida que outra que sofreu menos ou mais. Isso depende de cada criança. Do resto da família, dos pais priorizarem as atividades infantis, das crianças se sentirem amadas. Porque eu sempre digo: não basta amar uma criança. Ela precisa saber que é amada. No meu livro você encontra um capítulo chamado A Gênese da violência na primeira infância. Crianças rejeitadas, não amadas, sem carinho, têm tendência a desenvolver claramente muito mais comportamentos antissociais e agressividade no futuro. Os ingleses mostram em trabalhos de seguimento de décadas mais dificuldades escolares, mais problemas profissionais, mais desemprego, e mesmo mais problemas conjugais. Na verdade, quem não sente que é amado tem dificuldade de amar. Há coisas interessantes. Crianças colocadas em creches durante todo o dia, segundo alguns trabalhos, podem até ter dificuldades de crescer adequadamente. Afeto nutre.
EC – Como desatar esse nó para conciliar a vida profissional e familiar diante do crescente consumo do tempo pelo trabalho, principalmente com as novas tecnologias, que levam os profissionais para muito além das suas jornadas?
Martins Filho − O primeiro passo é saber que o problema é sério e existe. As crianças precisam brincar, ter tempo para ficar com seus pais, que precisam saber priorizar essa atitude de apoiar e ficar com seus filhos sempre que podem. Muitas pessoas enchem as crianças de brinquedos, mas não brincam com as crianças. Há, hoje, um movimento, nascido na Inglaterra, que está chegando ao Brasil do “Slow Parents”, ou seja, dos pais pararem de ser apressados, de brincarem com as crianças. De brincar de coisas antigas, jogos, futebol, pular corda, mas não entregar os eletrônicos para os filhos para que eles se divirtam sozinhos. Mas isso é uma questão de conscientização. As pessoas querem ficar ricas para dar presentes para os filhos ou querem acompanhá-los em seu crescimento e desenvolvimento?
EC – Na vida real é possível equacionar o tempo nos aspectos quantitativos e qualitativos no que se refere à atenção aos filhos? De que forma?
Martins Filho − É uma questão de tomada de consciência da importância da infância e do que queremos para nossos filhos, nossa família e nossa sociedade. Eu acho e digo isso, apesar de ser criticado, que um dos maiores problemas da violência urbana, ao lado das injustiças sociais, é o desamor e a falta total de ”””conhecimento sobre a importância do vínculo e do afeto. Se você ficar atento aos crimes violentos, matança de crianças, latrocínios etc., vai perceber que os autores sempre foram provavelmente seres desamados e abandonados desde a mais tenra infância. Em um levantamento que fiz com alguns criminosos violentos, muitos deles nunca chamaram ninguém de mãe, nunca foram amamentados ou acariciados, não foram amados. A solução é desenvolvimento emocional e educacional. As pessoas têm que ser preparadas para serem pais ou mães. Muito do que acontece hoje se deve ao abandono, essa falta de cuidado e presença familiar de pai e mãe, que começou há algumas décadas. Muitos dos pais de hoje que terceirizam foram crianças sem vínculo, sem afeto e sem presença de pai e mãe, infelizmente. Formam um ciclo vicioso. Se não interrompermos isso agora, tudo tende a piorar. Não lhe parece que a violência está crescendo sem controle? Pois é, a terceirização também.
EC – Como o senhor classifica as diferenças entre o papel do pai e da mãe?
Martins Filho − É para ser politicamente correto ou responder como pediatra estudioso do desenvolvimento infantil? O politicamente correto é dizer que ambos são iguais e que pai e mãe, desde o nascimento, têm que se revezar no cuidado com o filho. Como estudioso do desenvolvimento infantil, digo que mãe é fundamental, principalmente nos primeiros dois anos de vida e fundamentalmente nos primeiros seis meses, quando a amamentação exclusiva é fundamental para o desenvolvimento biopsicossocial da criança. O pai não pode amamentar. A criança intraútero ouviu os sons do corpo da mãe, da voz, ela quer continuar nesse colo enquanto puder. Claro que o pai pode ajudar a mãe a cuidar. Mas a substituição da mãe é muito difícil, embora em alguns casos raros, por morte e por falta de uma avó, o pai substitui. Claro que à medida que o bebê se transforma em pré-escolar e escolar o pai vai assumindo as funções. A sociedade atual parece estar desconstruindo a família, o pai perdeu a autoridade, e a mãe tem muita dificuldade de dar carinho, amamentar. Até porque é explorada e não tem o direito de poder ficar com o seu filho. É realmente complexo. Quando você vê um casal que está feliz com a chegada de um bebê, percebe que não se discute quem é quem. Ambos cumprem o papel que o filho deseja. Proteção, atenção, carinho e amamentação. Pai e mãe são importantes e isso deve continuar para o resto da vida. Hoje, entretanto, o que se vê são quase 50% dos casamentos desfeitos às vezes antes dos cinco anos. Há uma preocupação dos adultos: “eu mereço ser feliz e quero ser independente; quero meu quinhão de alegria e prazer imediato, agora”! E isso, infelizmente, com um filho para criar, nem sempre é possível. E por aí vamos.
EC – E a escola no meio disso tudo, de certa forma, fica sobrecarregada com funções que estão além da sua alçada? Quais seriam?
Martins Filho − Escola ensina. A família educa. É incrível como algumas pessoas pensam que os filhos em tempo integral numa creche a partir dos três ou quatro meses vão ser felizes. Esse período é o pior período para uma criança sair do colo da mãe e ser desmamado, pois é uma fase em que as defesas imunológicas ainda não estão se desenvolvendo e tudo depende do colo, da proteção e do leite da mãe. As pessoas não querem ouvir isso. Quando falo para algumas plateias, as pessoas se olham e se perguntam. “Ah, vá, você acha que eu nasci para ser babá, para ser vaca de leite e ficar com um bebê pendurado no seio”? É algo complexo. Certa vez, numa escola em que eu dava uma conferência fui interrompido por uma mulher que me disse: “mas veja só, essa escola é péssima. Meu filho tem três anos e eles ainda não ensinaram a usar os talheres para comer”. Veja, ela queria que a escola fizesse o que ela deveria estar fazendo. Limites, paciência, controle, alegria, respeito pelo outro têm que ser ensinados pela família.
EC – Qual o papel da escola e dos professores nesse contexto?
Martins Filho − Professores e escola têm que ensinar a ler, escrever, fazer esportes, exercícios, socializar com outras crianças, respeitar o coleguinha etc… É um absurdo culpar um professor ou uma escola pela violência estudantil ou por comportamentos antissociais. Isso vem de casa. As famílias não podem e não devem delegar para as escolas o preparo e o desenvolvimento psicossocial e familiar das crianças. Isso é papel de pai e mãe. Às vezes, as coisas são muito mais graves, quando as famílias estão totalmente rotas e a alienação parental aparece.
EC – Existe uma crise da família moderna? Que consequências culturais esse modelo gera?
Martins Filho − Sim, há uma crise evidente na família moderna. Isso está sendo avaliado, estudado e discutido em milhares de trabalhos científicos. Há um desconhecimento total da responsabilidade das pessoas em relação aos seus rebentos. Não sou moralista, mas sou obrigado a dizer para muitas pessoas que me procuram que as coisas têm que ser melhor discutidas. Hoje, se casa sem pensar, às vezes, quase sem se conhecer o outro e também já se faz isso porque as pessoas já vão pensando que casamento é algo passageiro e fácil de romper. Tudo bem se não há filhos por perto. Quando há, existe sempre um sofrimento. Dificilmente você conversa com uma criança cujos pais estão separados, principalmente se há litígio grave como muitos que eu vejo todos os dias, em que ela não mostre sua tristeza e sinta certa culpa. Ela sempre imagina que tem a ver com a separação dos pais. Ter filho é uma responsabilidade muito grande. É preciso pensar, muito, antes de se colocar alguém neste mundo.
entrevista
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José Martins Filho é médico pediatra, lecionou por 35 anos na Unicamp, onde atua como professor convidado da Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente e pesquisador do Centro de Investigação em Pediatria, do qual foi fundador e primeiro presidente. Ex-diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, foi também vice-reitor e reitor (1994-1998). Pró-reitor acadêmico da Universidade Cruzeiro do Sul por oito anos, atualmente é assessor acadêmico do reitor da Unifeo (SP). Possui vasta produção científica, sendo autor de livros sobre pediatria e educação universitária. É autor de Lidando com Crianças, conversando com os pais, obra vencedora do Prêmio Jabuti em 1996; e Filhos, amor e cuidados: reflexões de um pediatra; além de um dos primeiros livros sobre amamentação: Como e por que amamentar (1986). Possui mais de uma centena de trabalhos publicados dentro e fora do país. Lançou recentemente A criança terceirizada – os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo, já em sua 6ª edição e segunda reimpressão, um ano depois de seu lançamento. O livro integra uma série sobre o tema que inicia em Quem cuidará das crianças? e Cuidado, afeto e limites – uma combinação possível, esse último escrito em co-autoria com Ivan Capellato. Martins Filho concedeu entrevista exclusiva ao Extra Classe via e-mail, no final de novembro.
EC – Como enfrentar o fenômeno da terceirização das crianças?
José Martins Filho – É preciso ver qual é o problema, se tem solução, e ter a coragem de enfrentá-lo abertamente, sem subterfúgios. Quando faço conferências ou palestras por todo o Brasil, vejo gente que se entusiasma e aplaude e gente que tenta se defender. Dizem: “Ah, mas eu preciso ganhar dinheiro… tenho que ter celular, automóvel, bons colégios, boa comida etc. etc. E por isso não dá para fazer isso tudo que vocês falam a respeito da terceirização”. Infelizmente, sou obrigado, muitas vezes, a dizer que ter um filho é uma das decisões mais sérias que se pode e se deve tomar, e que é melhor não ter um filho do que, tendo-o, não poder acompanhá-lo, acariciá-lo, amamentá-lo, enfim, cuidar dele, principalmente nos primeiros anos de vida. Isso é fundamental para a saúde dessa criança na infância e na vida adulta. E o pior é que não cuidar bem de um filho, não educá-lo (e isso dá trabalho), não participar da vida dele, é também não se preocupar com a vida futura. Com a humanidade, e com a família, que é, sem dúvida, a célula fundamental dessa nossa sociedade que vive uma crise muito grave.
EC – Como o senhor sintetizaria a terceirização crescente das crianças pelas famílias?
Martins Filho – Acontece por vários motivos: por uma família que está sendo desconstruída, como atestam vários pensadores e escritores, pelo consumismo exagerado do mundo de hoje, por uma visão muito pessoal e eu diria até um pouco egoísta dos adultos que, como sempre na história da humanidade, valorizam mais seu momento de vida, sua necessidade de obter prazer e satisfação imediata, do que a atenção com o ser que colocaram no mundo. Um mercado de trabalho terrível, que não valoriza a maternidade, pelo contrário, não permite que a mulher possa exercer plenamente a maternidade, amamentando exclusivamente até seis meses e ficando perto de seu filho, pelo menos nos primeiros dois anos de vida, como outras sociedades permitem e dão até dois anos ou às vezes mais de licença-maternidade. Acho que quem não quer se submeter ao cuidado das crianças nesse período, que acha isso chato, ruim, desagradável, penoso, deveria pensar muito antes de ter um filho.
EC – Em que classes sociais é mais comum e quais as razões?
Martins Filho − Infelizmente, a terceirização existe em todas as classes sociais. O problema não é de riqueza. É de princípio. De valorização da maternidade, da paternidade e do compromisso com o outro. Crianças são terceirizadas nas favelas, onde são entregues a vizinhos, parentes, ou nas mansões mais ricas, onde quem as cuida são as babás. Claro que, dependendo da classe, variam os motivos. Às vezes por questão de sobrevivência, de desemprego, de falta de licença-maternidade, outras vezes por compromissos sociais e até por futilidades. Mães que realmente não queriam ter esse compromisso e delegam os cuidados. Não amamentam etc.
EC – Como alertar para o problema sem jogar a “culpa” sobre mães, pais e familiares, se é que é possível?
Martins Filho − Essa questão da culpa permeia sempre todas as dezenas de entrevistas que já dei para jornais, tevês, revistas. O que eu penso é que a sociedade humana, ao se defrontar com problemas críticos existenciais, sempre tenta ver se pode se eximir de culpabilidade ou de possíveis responsabilidades pessoais pelo que está acontecendo. Entretanto, o que sinto também, como professor universitário há quase 50 anos, é que tentamos não sentir culpa por eleger tanta gente incompetente e corrupta para nos governar ou decidir sobre nossas leis, tentamos não sentir culpa quando vemos pessoas embriagadas dirigindo e matando inocentes ou quando percebemos claramente a degradação do meio ambiente. Não sentimos culpa por fumar, o que traz sérias consequências para a saúde. É uma questão de consciência do que é prioritário e do que queríamos quando decidimos ter um filho. Nas vezes em que a gravidez foi inesperada, claro que é mais difícil ainda de resolver o problema. É preciso lutar pelo direito da mulher poder ficar com seu filho. Licença-maternidade igual a países que já o fizeram. Creches nos locais de trabalho para as mães (a CLT estabelece que isso é preciso, mas os próprios sindicatos e as mães aceitam uma pequena e irrisória quantia em dinheiro em substituição à necessidade de ter creches próximas a elas…). Quando isso é cumprido, as mães faltam menos ao trabalho, as crianças crescem mais felizes, e têm menos doenças.
EC – Que reflexos essa terceirização, a ausência dos pais no dia a dia, provocam na criança e no futuro jovem-adulto?
Martins Filho − Existem centenas de trabalhos, em todo o mundo, que analisam esses aspectos. Como sempre, em medicina e em biologia, as variáveis são inúmeras e não se pode dizer que uma criança que sofreu abandono vai ser mais sofrida que outra que sofreu menos ou mais. Isso depende de cada criança. Do resto da família, dos pais priorizarem as atividades infantis, das crianças se sentirem amadas. Porque eu sempre digo: não basta amar uma criança. Ela precisa saber que é amada. No meu livro você encontra um capítulo chamado A Gênese da violência na primeira infância. Crianças rejeitadas, não amadas, sem carinho, têm tendência a desenvolver claramente muito mais comportamentos antissociais e agressividade no futuro. Os ingleses mostram em trabalhos de seguimento de décadas mais dificuldades escolares, mais problemas profissionais, mais desemprego, e mesmo mais problemas conjugais. Na verdade, quem não sente que é amado tem dificuldade de amar. Há coisas interessantes. Crianças colocadas em creches durante todo o dia, segundo alguns trabalhos, podem até ter dificuldades de crescer adequadamente. Afeto nutre.
EC – Como desatar esse nó para conciliar a vida profissional e familiar diante do crescente consumo do tempo pelo trabalho, principalmente com as novas tecnologias, que levam os profissionais para muito além das suas jornadas?
Martins Filho − O primeiro passo é saber que o problema é sério e existe. As crianças precisam brincar, ter tempo para ficar com seus pais, que precisam saber priorizar essa atitude de apoiar e ficar com seus filhos sempre que podem. Muitas pessoas enchem as crianças de brinquedos, mas não brincam com as crianças. Há, hoje, um movimento, nascido na Inglaterra, que está chegando ao Brasil do “Slow Parents”, ou seja, dos pais pararem de ser apressados, de brincarem com as crianças. De brincar de coisas antigas, jogos, futebol, pular corda, mas não entregar os eletrônicos para os filhos para que eles se divirtam sozinhos. Mas isso é uma questão de conscientização. As pessoas querem ficar ricas para dar presentes para os filhos ou querem acompanhá-los em seu crescimento e desenvolvimento?
EC – Na vida real é possível equacionar o tempo nos aspectos quantitativos e qualitativos no que se refere à atenção aos filhos? De que forma?
Martins Filho − É uma questão de tomada de consciência da importância da infância e do que queremos para nossos filhos, nossa família e nossa sociedade. Eu acho e digo isso, apesar de ser criticado, que um dos maiores problemas da violência urbana, ao lado das injustiças sociais, é o desamor e a falta total de ”””conhecimento sobre a importância do vínculo e do afeto. Se você ficar atento aos crimes violentos, matança de crianças, latrocínios etc., vai perceber que os autores sempre foram provavelmente seres desamados e abandonados desde a mais tenra infância. Em um levantamento que fiz com alguns criminosos violentos, muitos deles nunca chamaram ninguém de mãe, nunca foram amamentados ou acariciados, não foram amados. A solução é desenvolvimento emocional e educacional. As pessoas têm que ser preparadas para serem pais ou mães. Muito do que acontece hoje se deve ao abandono, essa falta de cuidado e presença familiar de pai e mãe, que começou há algumas décadas. Muitos dos pais de hoje que terceirizam foram crianças sem vínculo, sem afeto e sem presença de pai e mãe, infelizmente. Formam um ciclo vicioso. Se não interrompermos isso agora, tudo tende a piorar. Não lhe parece que a violência está crescendo sem controle? Pois é, a terceirização também.
EC – Como o senhor classifica as diferenças entre o papel do pai e da mãe?
Martins Filho − É para ser politicamente correto ou responder como pediatra estudioso do desenvolvimento infantil? O politicamente correto é dizer que ambos são iguais e que pai e mãe, desde o nascimento, têm que se revezar no cuidado com o filho. Como estudioso do desenvolvimento infantil, digo que mãe é fundamental, principalmente nos primeiros dois anos de vida e fundamentalmente nos primeiros seis meses, quando a amamentação exclusiva é fundamental para o desenvolvimento biopsicossocial da criança. O pai não pode amamentar. A criança intraútero ouviu os sons do corpo da mãe, da voz, ela quer continuar nesse colo enquanto puder. Claro que o pai pode ajudar a mãe a cuidar. Mas a substituição da mãe é muito difícil, embora em alguns casos raros, por morte e por falta de uma avó, o pai substitui. Claro que à medida que o bebê se transforma em pré-escolar e escolar o pai vai assumindo as funções. A sociedade atual parece estar desconstruindo a família, o pai perdeu a autoridade, e a mãe tem muita dificuldade de dar carinho, amamentar. Até porque é explorada e não tem o direito de poder ficar com o seu filho. É realmente complexo. Quando você vê um casal que está feliz com a chegada de um bebê, percebe que não se discute quem é quem. Ambos cumprem o papel que o filho deseja. Proteção, atenção, carinho e amamentação. Pai e mãe são importantes e isso deve continuar para o resto da vida. Hoje, entretanto, o que se vê são quase 50% dos casamentos desfeitos às vezes antes dos cinco anos. Há uma preocupação dos adultos: “eu mereço ser feliz e quero ser independente; quero meu quinhão de alegria e prazer imediato, agora”! E isso, infelizmente, com um filho para criar, nem sempre é possível. E por aí vamos.
EC – E a escola no meio disso tudo, de certa forma, fica sobrecarregada com funções que estão além da sua alçada? Quais seriam?
Martins Filho − Escola ensina. A família educa. É incrível como algumas pessoas pensam que os filhos em tempo integral numa creche a partir dos três ou quatro meses vão ser felizes. Esse período é o pior período para uma criança sair do colo da mãe e ser desmamado, pois é uma fase em que as defesas imunológicas ainda não estão se desenvolvendo e tudo depende do colo, da proteção e do leite da mãe. As pessoas não querem ouvir isso. Quando falo para algumas plateias, as pessoas se olham e se perguntam. “Ah, vá, você acha que eu nasci para ser babá, para ser vaca de leite e ficar com um bebê pendurado no seio”? É algo complexo. Certa vez, numa escola em que eu dava uma conferência fui interrompido por uma mulher que me disse: “mas veja só, essa escola é péssima. Meu filho tem três anos e eles ainda não ensinaram a usar os talheres para comer”. Veja, ela queria que a escola fizesse o que ela deveria estar fazendo. Limites, paciência, controle, alegria, respeito pelo outro têm que ser ensinados pela família.
EC – Qual o papel da escola e dos professores nesse contexto?
Martins Filho − Professores e escola têm que ensinar a ler, escrever, fazer esportes, exercícios, socializar com outras crianças, respeitar o coleguinha etc… É um absurdo culpar um professor ou uma escola pela violência estudantil ou por comportamentos antissociais. Isso vem de casa. As famílias não podem e não devem delegar para as escolas o preparo e o desenvolvimento psicossocial e familiar das crianças. Isso é papel de pai e mãe. Às vezes, as coisas são muito mais graves, quando as famílias estão totalmente rotas e a alienação parental aparece.
EC – Existe uma crise da família moderna? Que consequências culturais esse modelo gera?
Martins Filho − Sim, há uma crise evidente na família moderna. Isso está sendo avaliado, estudado e discutido em milhares de trabalhos científicos. Há um desconhecimento total da responsabilidade das pessoas em relação aos seus rebentos. Não sou moralista, mas sou obrigado a dizer para muitas pessoas que me procuram que as coisas têm que ser melhor discutidas. Hoje, se casa sem pensar, às vezes, quase sem se conhecer o outro e também já se faz isso porque as pessoas já vão pensando que casamento é algo passageiro e fácil de romper. Tudo bem se não há filhos por perto. Quando há, existe sempre um sofrimento. Dificilmente você conversa com uma criança cujos pais estão separados, principalmente se há litígio grave como muitos que eu vejo todos os dias, em que ela não mostre sua tristeza e sinta certa culpa. Ela sempre imagina que tem a ver com a separação dos pais. Ter filho é uma responsabilidade muito grande. É preciso pensar, muito, antes de se colocar alguém neste mundo.
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