MYTHOS E LOGOS NO PENSAMENTO GREGO
Todos os povos da antiguidade – assírios, sumérios, babilônios, persas, egípcios, hindus, chineses, romanos, gregos, hebreus – tiveram seus mitos। Povos descobertos mais recentemente – Astecas, Incas, índios brasileiros – também são ricos em acervo mítico. O que deixa os estudiosos admirados é o fato da mitologia grega sobressair-se a todas as demais. A admiração é explicável em virtude de ser justamente a partir desta forma mítica de compreender a realidade da natureza que nasce o pensamento ocidental. Em face da proeminência do mythos e do logos gregos sobre as demais manifestações do pensamento humano antigo é que se propõe, neste artigo, traçar o conceito de mythos e logos e a transposição de um para o outro na explicação da realidade no pensamento grego antigo.
O termo mito procede da língua grega (mu,qoj), podendo-se conceituá-lo como narrativa que objetiva explicar a realidade existente, sua origem e causa। Sua abordagem trata das questões referentes ao mundo, aos deuses e ao próprio homem. Este tipo de narrativa foi o primeiro esforço da humanidade para situar o homem no mundo, quanto a sua existência diante de tantos questionamentos que se lhe apresentam e que precisam de resposta. A princípio, perguntas a respeito da natureza como: “por que troveja?”, “por que chove?”, “de onde vem o vento?”, “como surgiu o mundo?”, “como surgiu o homem?”, e tantas outras questões, recebiam respostas que hoje não são admitidas. Na verdade, os homens da Antiguidade contentavam-se com aquelas respostas, tidas hoje como ingênuas, e com elas se acomodavam muito bem ao seu mundo.
Marilena Chauí apresenta o mito como “narrativa mágica ou maravilhosa, que não se define apenas pelo tema ou objeto da narrativa, mas pelo modo (mágico) de narrar, isto é, por analogias, metáforas e parábolas।” (Chauí, 1994 – pág. 32). É interessante este conceito, pois que chama a atenção não somente para a narrativa em si, mas também para o modo como era apresentada. Desde que era predominante oral, a narrativa prendia os ouvintes como uma armadilha das emoções. Para Vernant, mito é uma palavra formulada, seja de uma narrativa, diálogo ou da enunciação de um projeto (Vernant, 1992 – pág. 172). Turchi, citado por Battista Mondin, conceitua mito:
Em sua acepção geral e em sua fonte psicológica, o mito é a animação dos fenômenos da natureza e da vida, animação devida a alguma forma primordial e intuitiva do conhecimento humano, em virtude da qual o homem projeta a si mesmo nas coisas, isto é, anima-se e personifica-as, dando-lhes figura e comportamentos sugeridos pela sua imaginação; o mito é, em suma, uma representação fantástica da realidade, delineada espontaneamente pelo mecanismo mental (Mondin, 1981 – pág। 9 – 10).
Chama a atenção neste conceito o aspecto da animação। Na verdade, a narrativa mítica dava vida ao que era inerte. O ouvinte se sentia totalmente envolvido no seu enredo devido ao dado existencial transmitido pelo mito. Isto tornava o homem completamente ligado às personagens e aos fenômenos narrados no mito.
Ernst Cassirer diz que a mentalidade primitiva é caracterizada pelo seu sentimento geral da vida। O homem primitivo via a natureza de modo simpático. Ou seja, sentia-se envolvido nela e por ela. A natureza não era algo para ser explorado no sentido pragmático ou técnico. Era uma realidade a ser reverenciada, respeitada (Cassirer, 1972 – págs. 134 – 136).
Aranha e Martins (1992, págs। 62 – 68) dizem que o mito “é um modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão e não-crítico de estabelecer algumas verdades...” O problema de algumas conceituações está na pressa do autor em adjetivar o seu objeto de estudo. Esquece-se de realizar apenas juízo de realidade e, firmado em um mero juízo de qualidade, afirma supostas realidades que são meros reflexos de seus condicionamentos culturais. O mito comporta várias possibilidades de interpretação. Partindo de qual ponto de vista o mito seria ingênuo? Considere-se que nos milênios futuros nossos conhecimentos terão uma consideração que provavelmente não nos agradaria conhecê-la. Medir o ontem pelo hoje é complicado, visto as circunstâncias de cada época comportarem as suas próprias justificativas. Neste aspecto, é interessante observar a valorização que muitos filósofos e estudiosos dão à elaboração mítica, considerando o mito como conservatório de uma inteligência que não teria a lógica do racional, mas que não deixaria de indicar caminhos de reflexão e que representaria uma via de compreensão da existência perfeitamente salutar. Sendo o mito “uma forma de se situar no mundo, isto é, de encontrar o seu lugar entre os demais seres da natureza”, como dizem as duas autoras, está ele em pé de igualdade com a razão, pois que esta também é uma forma encontrada pelo homem para se situar no mundo. A própria Pós-modernidade faz críticas ao império da razão, abrindo espaços para outras lógicas que comportam inclusive a realidade do Mito. Não seria mais viável dizer que cada forma de se situar no mundo possui a sua validade, desde que não leve o homem a extravagâncias comprometedoras de sua integridade?
“A verdade do mito não obedece à lógica nem da verdade empírica, nem da verdade científica। É verdade intuída, que não necessita de provas para ser aceita.” (Aranha & Martins, 1992, pág. 73). Essas duas orações oferecem base de crítica às duas autores quanto a erradicar o aspecto de ingenuidade da narrativa. Primeiro, o mito possui uma verdade; segundo, segue uma lógica, mesmo não se comprometendo com o empirismo, com o racionalismo ou com o cientificismo. Enquanto verdade intuitiva estabelece-se com plena autoridade e serve para se conhecer o ser humano do passado, como também do presente. Enfileiram-se nesta compreensão filósofos, teólogos, antropólogos e psicanalistas. A lógica dos arquétipos da humanidade expressa nos mitos é terreno amplo para se compreender o homem de todas as épocas. Seria o mito uma visão ingênua da realidade, ou será que ele precisa ser estudado levando-se em consideração, não a sua roupagem, e, sim, a sua essência?
Não se está dizendo aqui que o mito não foi usado indevidamente por muitos mentores da humanidade। Certo que sim! Mas isso não anula a validade do mito em si. A tendência de interpretar o mito como visão puramente fantasiosa da realidade talvez se deva à influência de filósofos gregos, juntamente com os Padres da Igreja e tantos outros filósofos, visto considerarem os mitos como simples fábulas। O fato é que, nos últimos tempos, além da visão de mito como visão fantasiosa da realidade, tem-se abordado o mito-verdade. Mais precisamente a partir do começo do século XX, autores como M. Eliade, Freud, Jung, Heidegger, Lévi-Strauss e Bultmann apoiaram a interpretação mito-verdade. Concordam estes estudiosos quanto ao fato de que o mito esconde, atrás de sua capa de imagens, verdades que foram apreendidas pelo homem primitivo e que o homem moderno, devido ao seu condicionamento epistemológico racionalista, não consegue divisar as mesmas verdades.
Um dos grandes ataques sofrido pelo mito foi deflagrado pelo Positivismo। Depois de toda a sua investida frustrada contra o pensamento mítico, chega-se à conclusão de que ingênuo é o próprio Positivismo, quando quis desterrar um fenômeno que faz parte da própria índole da natureza humana. Afinal, tudo o que pode, o ser humano faz para se situar significativamente no seu mundo. E se neste caso vale o mito, que o valha.
Pode-se concluir este ponto, dizendo-se que o mito é uma “primeira fala sobre o mundo” que ainda hoje permanece falando e continuará a exercer a sua influência sobre a humanidade। Pode não explicar a realidade no sentido empirista, cientificista ou racionalista, mas a explica de modo que, em sua função básica, continua acomodando o homem ao mundo. E aqui se apresenta um paradoxo: o mito de tantos ismos que acomoda o homem ao mundo, dando-lhe visões diversificadas da realidade.
O termo logos procede da língua grega (lo,goj). Dentre tantos significados, segundo Chauí,
Logos reúne numa só palavra quatro sentidos: linguagem, pensamento ou razão, norma ou regra, ser ou realidade íntima de alguma coisa। No plural, logoi, significa: os argumentos, os discursos, os pensamentos, as significações. Logia, que é usado como segundo elemento de vários compostos, indica: conhecimento de, explicação racional de, estudo de. (Chauí, 1994 – pág. 33).
Segundo Julían Marías, o logos diz o que as coisas são, e mantém estreita ralação com o ser tanto do ponto de vista da verdade como da falsidade। O homem é o animal que tem logos, sendo, portanto, o órgão da verdade (Marías, 1969). Aster apresenta-se bem convicto quanto à natureza da palavra logos. Diz este autor que se for o caso de ressaltar algum conceito e pensamento especificamente grego, só pode sê-lo o conceito de logos. Logos é a palavra prenhe de sentido, o discurso racional como fenômeno primitivo do mundo como forma fundamental do pensar e do realizar (Aster, 1945). Abbagnano trabalha o conceito de logos desde o seu uso por Heráclito. Este considerava o logos como sendo a própria lei cósmica: “Todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque esta domina tudo o que quer, e basta para tudo e prevalece a tudo” (Fr. 114, Diels). Essa forma de entender o logos parece coadunar-se bem com o pensamento estóico. Abbagnano chega a afirma que a doutrina do logos foi sempre religiosa (Abbagnano, 2000). Neste sentido também trabalha Aster sobre Heráclito, citando: “El sabio es unicamente uno. Quiérase o no, há de llamársele Zeus” (Aster, 1945). Por esta via de interpretação, vê-se claramente que logos passa pela mesma realidade que mito: Cumprem função religiosa.
Destes conceitos apresentados, o conceito de Chauí consegue, de modo sintético, com os quatro sentidos do logos: “linguagem, pensamento ou razão, norma ou regra, ser ou realidade íntima de alguma coisa”, expressar a realidade do logos não deixando brechas para maiores ou menores explanações a serem acrescentadas, considerando-se que toda a história da filosofia é por si mesma a história do logos e já lhe conceitua extensivamente।
É consenso entre os estudiosos que a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional não se deu da noite para o dia। Houve mesmo um período em que os dois tipos de abordagem coexistiram na sociedade grega, do mesmo modo que na contemporaneidade pode-se divisar estas duas realidades. Segundo Vernant, é no princípio do século VI a. C., na Mileto jônica, que se pode fixar a data e o lugar de nascimento da razão grega. Três são os responsáveis por este surgimento do pensamento racional: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Portanto, são os Pré-socráticos os responsáveis, estes citados e outros, que vão contribuir para que o logos suceda ao mito. Toda as explicações teogônica e cosmogônica são substituídas por um discurso sem a ação de potências sobrenaturais como explicação para a realidade existente (Vernant, 1994 – págs. 73 e 74).
A abordagem elaborada por Marilena Chauí é por demais interessante, pois que apresenta duas visões de interpretação do fenômeno concernente à passagem do mito para o logos. A primeira interpretação diz que não houve continuidade entre a filosofia e o mito. Segundo Chauí, Burnet apresenta duas características do mito que se contrapõem à filosofia. Primeira,
“o mito pergunta e narra sobre o que era antes que tudo existisse, enquanto o filósofo pergunta e explica como as coisas existem e são agora; segunda, o mito não se preocupa com as contradições e irracionalidades de sua narrativa; aliás, usa contradições e irracionalidades para justificar o caráter misterioso dos deuses e suas ações; a filosofia afasta os mistérios porque afirma que tudo pode ser compreendido pela razão e esta suprime e explica as contradições।” (Chauí, 1994 – pág. 28) (Grifo da autora) .
Segundo Chauí, a interpretação contraposta é apresentada por Cornford। Segundo este, a filosofia nascente não fazia experimentos com a natureza e desconhecia a idéia de verificação e de prova. Na verdade, a filosofia tomou as formulações da religião e do mito e as colocou em forma de pensamento abstrato. O que vai ficar claro para Werner Jaeger é que a história da filosofia grega é um processo de progressiva racionalização do mundo presente no mito (Chauí, 1994 – pág. 29 – 33).
Esta abordagem é curiosa, pois que nos remete aos primeiros momentos do filosofar grego, quando as explicações apresentadas chamam à mente as figuras usadas nos mitos। É o caso de Tales de Mileto quando pensa em água como o princípio originário da realidade existente. De imediato vem à mente Homero com o deus Oceano dando origem a todas as coisas. Quando se pensa sobre o transcorrer das relações afetivas entre os deuses e os humanos expressas nos mitos, pode-se pensar em Empédocles elaborando os princípios do amor e do ódio como forças naturais, agindo sobre a realidade existente. Hesíodo e seu deus Eros não estariam em Empédocles? Parece evidente a interação entre mythos e logos a princípio.
Conceba-se a interação, mas se pense também como evidente as diferenças entre mythos e logos. O mito vincula-se à tradição oral; o logos à literatura escrita. No princípio mythos não contrasta com logos. Os valores semânticos são bastante aproximados. Os mythos são também hieroi logoi, discursos sagrados. O surgimento da oposição entre mythos e logos, marcando a concepção de realidade dos gregos, acontece justamente entre os séculos VIII e IV a. C. “Um primeiro elemento a se reter nesse plano é a passagem da tradição oral a diversos tipos de literatura escrita.”, diz Vernant. Acontece que a linguagem filosófica adianta-se no uso de abstrações dos conceitos e emprega um vocabulário ontológico. Vernant diz que o logos, no período citado, instaura-se “na e pela literatura” como discurso racional e não somente como palavra. Justamente neste nível de discurso racional demonstrativo é que vai se contrapor ao mythos. Isto do ponto de vista de quem elabora o logos. Mas acontece transposição na perspectiva do receptor do logos, o público que toma conhecimento do texto. Diz Vernant que a leitura supõe uma outra atitude de espírito. Ora, se diante do mito o espectador quedava-se como que enfeitiçado, diante do logos a atitude é de frieza racional, disposição para a “argumentação contraditória” (Vernant, 1992 – pág. 175). Não se depende mais da participação emocional, como acontece com o mito. O mito é dogmático na apresentação de sua verdade. O que deixava o ouvinte em estado de obrigação à crença em sua verdade. O logos é liberal, aberto ao debate, à dialética. Vernant conclui:
... Desse ponto de vista, tudo o que dava à palavra falada seu poder de impacto, sua eficácia sobre outrem, se acha dali em diante rebaixado à classe do mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar na ordem do verdadeiro e do inteligível perdendo ao mesmo tempo na ordem do agradável, do emocionante e do dramático (Vernant, 1992 – pág. 175).
Pelo acima exposto, compreende-se que mythos e logos são realidades consideravelmente importantes para a compreensão do surgimento da filosofia grega. Não somente para esta, como também para todo o pensamento ocidental. Ainda mais quando se concebe a força destas duas formas de pensar a realidade influenciando até mesmo o homem contemporâneo, seja ele partícipe do senso comum ou mesmo alguém afeito aos temas que exploram a sua capacidade intelectual. Na verdade, mythos e logos vêm sustentar a convicção de que o ser humano busca responder aos seus questionamentos não meramente aprisionado a uma única forma de solução. Considere-se ainda que, sendo o homem quem tem sido, sua forma de elaborar estas duas realidades, mythos e logos, fá-las intercambiar-se sem se perderem em generalizações. A existencialidade humana vem-nos provar que o mythos pode estar no logos e o logos no mythos. O mythos, enquanto discurso, possui o seu logos específico. O logos, enquanto forma de acomodar o homem ao seu mundo, possui o seu dado mítico. A crença no logos como algo absoluto, radical para explicar o mundo traz em si a marca do mythos.
BIBLIOGRAFIA
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Chauí, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 390 págs.
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VERNANT, Jean-Pierre.
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