segunda-feira, 11 de agosto de 2008

ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DO SUJEITO E SUAS RELAÇÕES COM O LETRAMENTO




AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DO SUJEITO E SUAS RELAÇÕES COM O LETRAMENTO

Edna Samáira Andrade Freitas

RESUMO: O projeto “Alfabetização de Ribeirinhos da Amazônia” e o sub-projeto “Letramento: Pluralidade Cultural e Subjetividade Discursiva” nasceram da necessidade de explicitar a realidade ribeirinha, da vontade em estabelecer um diálogo com os professores, de discutir com eles suas práticas e de instaurar o letramento em favor dos alunos e da expressão da sua subjetividade discursiva. Visamos diminuir o receio que o aluno tem de expor suas idéias ao escrever, por acreditarmos que o trabalho com a escrita faz com que o sujeito passe a refletir sobre a linguagem, conscientizando-se de que sua reflexão crítica é importante para o exercício das suas práticas sociais. Para isso trabalhou-se na escola rural Domingos Sávio localizada na comunidade São Sebastião, situada à margem esquerda do rio Madeira, com os alunos da terceira e quarta séries do Ensino Fundamental, perfazendo um total de quinze alunos. Os alunos residem na própria comunidade e sobrevivem da pesca e da agricultura ou da venda de produtos como a farinha de mandioca e colorau que são vendidos em feiras livres na cidade de Porto Velho-RO, pois poucos são os pais que possuem trabalho fixo na cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento – Subjetividade – Estratégias Discursivas

1. INTRODUÇÃO

Observamos que a aplicação de atividades de leitura e interpretação de textos, onde cada texto lido é discutido em sala pelo professor para que os alunos respondam a questionários aplicados ao fim de cada leitura, a criação de texto a partir de um texto visual (livro ou cartaz apenas com figuras) e a leitura coletiva, são realizadas regularmente. Constatamos que os alunos demonstravam grande interesse em ler e ouvir histórias, porém, quando solicitados a produzirem textos, havia grande resistência. Percebemos que a maioria dos alunos transcrevia as histórias que contávamos, ao invés de produzirem um texto próprio. O oposto acontecia quando substituíamos a produção escrita pela oral, pois, nesta, os alunos demonstravam mais segurança, entusiasmo e naturalidade.

A resistência à produção de textos escritos se dá pela dificuldade que os alunos têm em organizá-los; a falta de familiaridade com a escrita dificulta a identificação do aluno com texto, logo, a percebem como uma atividade artificial, sem sentido e, portanto, desinteressante. Como o nosso projeto busca o exercício das práticas sociais da leitura/escrita através do respeito e da valorização da pluralidade cultural, usamos como subsídio para nossas atividades a leitura de contos folclóricos, parlendas e jogos lingüísticos que tivessem proximidade com o contexto sócio-cultural desses alunos, a fim de despertá-los para sua capacidade de diálogo e contribuir para sua constituição enquanto sujeito social.

2. MATERIAL E MÉTODOS

O que todo professor deve ter em mente é que seus alunos refletem variações lingüísticas que representam sua origem regional, de gênero (variações segundo o sexo), etária (varia de acordo com a idade) e sócio-econômica. Essa proposta, que surgiu da Lingüística, traz um respeito maior à diversidade social e regional dos estudantes, tentando, assim, encontrar um caminho para democratizar o ensino. Buscando contribuir para que a sala de aula seja um local de diálogo entre sujeitos portadores de diferentes saberes, onde o aluno possa ser estimulado a refletir criticamente sobre os conhecimentos que adquire, recriando-os e não os reproduzindo, precisou-se intervir no processo. Para isso, recorremos ao método de análise de caso, baseada na teoria da Análise do Discurso de linha francesa, e à pesquisa-ação dividida em três momentos: observação, intervenção e contribuição; procurando sempre não alterar o contexto histórico-social da comunidade.

Com o propósito de evidenciar as hipóteses que o sujeito continuamente elabora, na tentativa de compreender o funcionamento da escrita, adotamos os pressupostos teóricos de De Certeau (1994), que questionava a suposta passividade das pessoas ordinárias onde, através da sua participação, interlocução, o sujeito é capaz de emergir das resistências. Portanto, mesmo exposto a atividades que não contribuam para a função social que a escrita torna possível, o sujeito usa estratégias para expressar sua subjetividade no discurso.

A importância do desenvolvimento de competências dos atos de ler/escrever para que o sujeito se aproprie das práticas sociais de leitura e escrita se faz presente através do conceito de Letramento de Marcuschi (2002) e Soares (2003) que é reforçado por Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (2002) que afirmam ser a escrita um espaço muito importante para a manifestação da singularidade dos sujeitos.

A fim de observarmos como o aluno lida com o processo de Letramento em sua produção textual e como isso é mostrado através de suas marcas de subjetividade, escolheu-se para análise um texto descritivo escrito por um aluno da quarta série, a pedido de seu professor. Após mostrar aos alunos um cartaz que ilustrava quatro diferentes situações de comércio, o professor solicitou que eles escrevessem uma “historinha” sobre a figura. A maioria dos alunos produziu textos contendo dez linhas, o que nos leva a pensar que essa foi uma orientação dada pelo professor, quando indagado a respeito do número de linhas a ser utilizadas.


A figura apresentada pelo professor foi a seguinte:



É possível perceber, se nos colocarmos como verdadeiros leitores dos textos dos alunos, algumas marcas que demonstram sua subjetividade:

Texto 01:

AGALINHA E O LEITEIRO

ERA UMA VES UM VELHO QUE TINHA UM BA GANHVA BEM POUCO MAS COMO ERA SO ELE ERA BOM. CICOENTA REAIS DA PARA ELE COME BEM EMPAS CARNE, ARROZ, MACARRA, FEIJAO, SO QUE A COM PRADORA FOI AO CHPE COM PRA ROUPA CAUSA COMPRIDA E SAIA DINS BOMITA E GRANDE. COMPRA QUEIJO DU BOM MANTEGA, LEITE OVO GOIABADA SABÃO EM PÓ CAME ZE TA TINHA CARRO TABACO PRATO TEM GALINHA BONITA TEM OLHO.

(Everton - 4ª série)

Vejamos como é possível perceber que o sujeito é capaz de emergir:

a) pela análise da letra: A “letra palito” , como é conhecida, é utilizada na escola durante o processo de aquisição da língua escrita, ou seja, quando estão sendo alfabetizados. Não compreendemos o motivo de tal postura metodológica, mas sabemos que ela reflete negativamente na vida do aluno. O caso analisado é apenas um exemplo entre tantos outros. Já na 4ª série, o aluno ainda continua escrevendo com letra de “forma”, pois não consegue escrever em letra cursiva. O Letramento almejado por este projeto defende as práticas sociais de leitura e escrita, pois na sociedade não existe uma única forma de grafar. Pelo contrário, a variedade gráfica é cada vez maior.

b) pela análise do Título (Fábula): “A galinha e o leiteiro”. Como já foi dito anteriormente, essa atividade foi proposta a partir de uma figura. A figura é composta por personagens humanas e alguns animais em situação que lembra sítio ou fazenda. A escolha do título pode parecer aleatória, porém não podemos ignorar sua semelhança com a estrutura das fábulas: um personagem humano (representando uma profissão, classe, sexo) e um animal que contracenará, dando à fábula o aspecto moral que ela requer. Geralmente, os personagens que aparecem no título são os protagonistas da história ou, no mínimo, importantes para o desenrolar do enredo. Esse texto foge à regra, uma vez que, nem o leiteiro, nem a galinha têm participação efetiva na história. A estratégia utilizada pelo aluno foi garantir a “redação” no título (trabalho feito para o professor) e fluir a subjetividade na “produção de texto” (texto escrito para ser lido – resgate da função social).

c) na escolha do marcador discursivo que inicia o texto: (Contos de fadas): O uso do típico ‘ERA UMA VEZ’ além de nos mostrar que tipologia textual faz parte do universo do aluno, revela, mais uma vez, sua intenção de demonstrar que conhece o jogo da escola, mas que ao mesmo tempo não gosta muito dele e, por isso, foge.

d) na análise do Enredo (Fuga): A história que se desenrola no texto do aluno fala de um homem velho que tem um bar. Esses elementos não estão na figura que serviu de pretexto para a escrita. Logo, só nos resta acreditar que, na fuga, o ‘sujeito’ preferiu contar sua história, ou a história da comunidade. Situações mais próximas, com maior valor significativo para ele. E por que terá preferido ele a palavra “bar”, se podia usar outras palavras como: taberna, loja, venda, botequim? Possivelmente, porque é essa a palavra usada na comunidade em que reside (São Sebastião), uma vez que lá existe um bar. Mesmo sabendo que o seu texto, ou melhor, o texto proposto pela escola não deveria ser um texto que retratasse a sua realidade, portanto, sem função social, mesmo sabendo que ele possivelmente não será lido por outras pessoas, o aluno-sujeito consegue subverter a lógica esperada e parte para a demonstração que aponta uma marca de autoria.

e) pela crítica social presente no texto: O velho do bar, que deve ser alguém bem próximo à realidade do aluno, “ganhava bem pouco, mas como era só ele, era bom – cinqüenta reais dá para ele comer bem: carne, arroz, macarrão, feijão (e viver) em paz”. Há aqui uma clara divisão de classes, aliada a uma ideologia conformista: os que vivem na comunidade, ganham pouco, sobrevivem com o básico, mas vivem em paz. “Só que a compradora foi ao shopping comprar roupa: calça comprida e saia: jeans, bonita e grande”. O conformismo com uma situação, muitas vezes imposta pelos “aparelhos ideológicos”, é quebrado com o surgimento de uma “compradora” consumista que também compra: queijo do bom, manteiga, leite, ovos, goiabada, sabão em pó, camiseta.

f) pelo Jogo de imagens ideológicas: O restante do texto revela uma atitude estrategista. Conhecendo as intenções do seu interlocutor o aluno passa, desse momento em diante, a cumprir apenas “a tarefa” exigida pelo professor: escrever no mínimo dez linhas. É por isso que as idéias começam a ficar confusas e o texto passa a ser desconexo. “Tinha carro, tabaco, prato. Tem galinha bonita. Tem olho”. Nesse momento, o aluno percebe que não escreveu nada sobre a galinha (personagem principal, faz parte do título, aparece na figura). Então, ela (a galinha) surge, exatamente, na décima linha e, para compensar, vem acompanhada de um adjetivo: bonita. É como se o aluno dissesse: Bom, está justificado o papel de destaque dado à galinha no título e, como já escrevi dez linhas, posso entregar meu texto ao professor. Revelado o “jogo de imagens” (A escola (A) dá seu recado: o que eu quero que o aluno faça? O aluno (B) responde: preciso apenas demonstrar para o professor que “aprendi” o que foi ensinado), ao aluno só resta interromper a escrita espontânea que vinha fazendo e encerrar seu texto no limite já assinalado por ele. Conforme pode ser visto no texto original, existe uma marcação, feita pelo próprio aluno à margem esquerda, justamente na décima linha. Pronto. Agora é só inserir a segunda personagem (galinha) na última linha do texto.

Tais procedimentos só ocorrem porque, na maioria dos casos, o professor não saber se colocar como leitor do texto do aluno. Acostumado às velhas práticas pedagógicas, só vai ao texto com a intenção de encontrar defeitos, “erros”. Sabedores dessa atitude, por que iriam os alunos “perder tempo” escrevendo, se eles sabem que o professor vai devolver (?) seus textos apenas “corrigidos”? Não estou afirmando ser este o caso típico, até porque entendemos que os professores, especialmente os da zona rural, esforçam-se para também marcar sua subjetividade no ensino. É que essa proposta de exercício, totalmente desvinculada da função social da escrita, revela uma “valorização” excessiva da escrita enquanto recurso para aferição de nota e correção dos erros gramaticais. Mesmo que ela (a escrita) venha desprovida de sentidos e desfavorecida pelas condições de produção do discurso, não há uma clara intenção em estabelecer diálogo com aluno através do texto. Esse diálogo poderia acontecer de diferentes formas: discutindo os textos em sala, fazendo a reescrita coletivamente, observando aspectos gramaticais, textuais e estilísticos e, finalmente, socializando a produção feita pelos alunos. Sendo assim, esperamos ter conseguido mostrar como o sujeito articula sua subjetividade através de estratégias que revelam um sujeito ativo, capaz de atuar no contexto sócio-cultural em que vive se estimulado a usar os recursos lingüísticos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A percepção do contexto em que se dão o ensino e a aprendizagem nas escolas ribeirinhas demonstrou que é possível modificar a realidade educacional e, por que não, a social, através da conscientização de que todo sujeito tem algo a dizer, é portador de significados e sentidos. Logo, é um agente contribuinte para a substituição das velhas práticas pedagógicas por atividades voltadas para o letramento, que contribuam de fato, para a inserção do sujeito na sociedade. A partir da consideração e respeito à pluralidade cultural e aos traços fonológicos e morfossintáticos característicos de variedades lingüísticas populares, podemos traçar o projeto pedagógico que oportunizará às crianças o acesso à língua padrão.

Esperamos que o discurso bonito de inclusão social e respeito às diferenças não fique só no papel, mas reflita uma vontade de mudança que inclui desde a valorização do profissional, passando pela política educacional de adoção de materiais alternativos para as camadas populares, diferenciando quando for o caso, mas oportunizando o acesso ao letramento, a fim de que todos possam sentir-se bem culturalmente e ter acesso à linguagem padrão com respeito às diferenças regionais, sociais, políticas, econômicas, etárias, analisados em suas peculiaridades, por meio de métodos adequados. Entender o meu aluno como um ser alienado, desprovido de qualquer conhecimento, é privá-lo de conhecer o mundo, de quebrar barreiras. È negar a minha essência enquanto ser social e a minha própria capacidade de criação e transformação. De que serve a racionalidade se não podemos transcendê-la...?

4. REFERÊNCIAS

ABAURRE, Maria B. Marques, FIAD, Raquel Salek e MAYRINK-SABINSON, Maria Laura T. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. São Paulo: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1997.

AMARAL, Nair F. Gurgel do. Letramento e Subjetividade. In: Práxis V: Linguagem e Educação. Cacoal/RO: D’press Editora e Gráfica, 2004.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: as artes do fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1996.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

RICARDO, Stela Maris B.de Figueredo. Diversidade Lingüística: Uma Nova Abordagem Do Processo Educacional. Revista Brasileira de Tecnologia, Brasília, 12(4), out./dez. 1981.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte, Autêntico: 2002. (coleção Linguagem e educação)

Pesquisadora bolsista do PIBIC/CNPq. 5° período de Letras/Português-UNIR. samaira@unir.br. Orientadora: Drª Nair Ferreira Gurgel do Amaral.

Fonte:http://www.unir.br/html/pesquisa/Pibic_XIV/pibic2006/arquivos/Areas/Humanas%20e%20Sociais/HTML/Edna%20S%20Andrade%20de%20Freitas.htm

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2 comentários:

Anônimo disse...

João,

Obrigado por sua visita e palavras.

Tenho certeza que somente a Educação levada a sério fará deste país um lugar bem melhor.

Abraço

Anônimo disse...

Olá, joão.
Aqui é a edna samáira, autora desse artigo.
Parabéns pelo blog. Gostei.
Só tomei um susto e fiquei confusa de ver meu artigo por aqui...
Mas, a palavra é assim mesmo: saiu da boca, tem de criar asas e ser compartilhada, multiplicada.
Abraço.

p.s.: Gostaria de saber como vc o encontrou??
Por favor, mate essa curiosidade!rs
ednasamaira@gmail.com

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