domingo, 6 de janeiro de 2013

Livro mostra como cientistas dos Estados Unidos foram pioneiros nas práticas de "limpeza racial"

Livros
O lado escuro da América
 



Livro mostra como cientistas dos
Estados Unidos foram pioneiros
nas práticas de "limpeza racial"
 Jerônimo Teixeira

O biólogo Davenport: papa da eugenia americana


Carrie Buck (à esq.), com sua mãe: guerra aos "inferiores"
Trechos do livro

Em 1934, quando Hitler completava um ano no poder, um médico americano protestava em um jornal da Virgínia: "Os alemães estão nos vencendo em nosso próprio jogo". O nome do jogo era eugenia, e suas regras eram simples: "incapazes" e membros de raças "inferiores" deveriam ser impedidos de se reproduzir, em prol dos melhores espécimes humanos, previsivelmente de olhos claros e cabelos louros. O placar a favor dos alemães era mantido pelas cifras de esterilização. O obscuro médico que elogiou os nazistas estava certo sobre a vitória deles: o programa de esterilização na Alemanha vitimava em média 5.000 pessoas por mês. Mas ele também estava certo em afirmar que aquele era um jogo dos americanos. Em A Guerra contra os Fracos (tradução de Tuca Magalhães; A Girafa; 860 páginas; 68 reais), o jornalista Edwin Black demonstra que os Estados Unidos foram pioneiros no racismo científico que conduziria ao holocausto europeu. Black é conhecido por IBM e o Holocausto, no qual revelava que a IBM prestou serviços de processamento de dados fundamentais para os levantamentos raciais do nazismo. A Guerra contra os Fracos é uma empreitada histórica mais alentada. Black coordenou uma equipe de mais de cinqüenta pesquisadores, que devassaram arquivos e bibliotecas na Europa e nos Estados Unidos, reunindo mais de 50.000 documentos. O resultado final é um painel surpreendente da pseudociência racista no século XX.
A palavra "eugenia" foi cunhada pelo cientista inglês Francis Galton no fim do século XIX. Primo de Charles Darwin, Galton acreditava que o talento era hereditário. Sua utopia era a implementação de uma eugenia positiva, que encorajasse os mais talentosos a cruzar entre si. Os americanos desenvolveriam essas idéias em outro sentido. Investiram na eugenia negativa, cujo objetivo era impedir a reprodução dos supostamente inferiores. O papa da eugenia americana foi o biólogo Charles Davenport. Fruto de uma rígida educação puritana, ele traduziria seus preconceitos em linguagem científica, erguendo a raça nórdica como padrão de qualidade genética. Em 1904, Davenport montou um laboratório experimental em Cold Spring Harbor, Long Island, no qual muita pesquisa genética legítima seria realizada – o laboratório existe até hoje e já teve até James Watson, um dos descobridores da hélice dupla do DNA, entre seus diretores. Mas Cold Spring Harbor também abrigou um escritório de registro dedicado a coletar dados sobre linhagens humanas. Seus pesquisadores percorriam o país, visitando prisões e hospícios, na tentativa de descobrir padrões hereditários para o crime e até mesmo para a pobreza. Orientadas por uma paródia de método científico, essas pesquisas foram amparadas por algumas das maiores fortunas americanas – a Fundação Rockefeller estava entre os financiadores de Davenport.
A eugenia conseguiu se infiltrar na sociedade americana ao longo das primeiras décadas do século XX, exercendo influência sobre várias políticas públicas. Nos anos 20, por exemplo, a legislação do Estado da Virgínia proibiu índios, negros e mestiços de contrair matrimônio com brancos "puros". Pela mesma época, Harry Laughlin, um dos mais raivosos colaboradores de Davenport, tornou-se consultor científico do Congresso para assuntos relacionados à imigração. Em 1922, ele apresentou um relatório em que dizia: "Particularmente no campo da insanidade, as estatísticas indicam que os Estados Unidos, nos últimos anos, têm sido um despejadouro para os habitantes mentalmente instáveis de outros países. Essas degenerações e incapacidades hereditárias são inerentes ao sangue". Seu trabalho foi fundamental para dar respaldo à lei que, em 1924, impôs cotas raciais à imigração. A nova lei restringiu a entrada de italianos, judeus e eslavos, privilegiando os imigrantes de cepa nórdica.
Até Hollywood se rendeu à eugenia: o filme The Black Stork (A Cegonha Negra), de 1917, defendia a eutanásia de bebês com defeitos congênitos. O astro principal era Harry Haiselden, médico de Chicago polêmico por ter admitido publicamente que negava cuidados a recém-nascidos deficientes. O carro-chefe da campanha eugenista era a esterilização compulsória. Em 1927, a Suprema Corte, órgão máximo do Judiciário americano, ratificou a determinação de esterilizar Carrie Buck, mãe solteira de 18 anos que os médicos tacharam de "débil mental" (a classificação era muito elástica, incluindo qualquer um que não tivesse educação formal). O caso fixou a jurisprudência sobre o tema e abriu as comportas para vários programas estaduais de esterilização, alguns dos quais seguiram em atividade até os anos 70. Black calcula que cerca de 60.000 americanos foram esterilizados.
Com essas realizações, não é de surpreender que os americanos trocassem figurinhas com seus colegas alemães. Nos anos que antecederam a II Guerra, o Eugenical News, órgão oficial da eugenia americana, estampava artigos elogiando as políticas raciais do nazismo – alguns chegavam quase a lamentar a existência da democracia, incômodo obstáculo para as mais saudáveis práticas eugênicas adotadas pelo totalitarismo alemão. No pós-guerra, os campos de concentração seriam fonte de constrangimento para muitos cientistas, dos dois lados do Atlântico. Hoje, a própria palavra "eugenia" tem uma aura maldita.


"Três gerações de imbecis são suficientes"
"Em 2 de maio de 1927, no julgamento da Suprema Corte, com uma única discordância, a do juiz Pierce Butler, o juiz Holmes escreveu a sentença.
'É melhor para todos que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes.'
Ponto final. Carrie Buck foi esterilizada antes do meio-dia, em 19 de outubro de 1927. Daquele momento em diante, a esterilização eugenista tornou-se a lei da terra. As comportas ficaram completamente abertas."
Trecho de A Guerra contra os Fracos

Capa da revista.
fonte http://veja.abril.com.br/210104/p_108.html

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