- A Sociologia Questionada
Os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Nenhuma dessas formações pode ser entendida como produto da constituição biológica do homem, a qual, conforme indicamos, fornece somente os limites externos da atividade produtiva humana. Assim como é impossível que o homem se desenvolva como homem no isolamento, igualmente é impossível que o homem isolado produza um ambiente humano. O ser humano solitário é um ser no nível animal (que, está claro, o homem partilha com outros animais). Logo que observamos fenômenos especificamente humanos entramos no reino do social. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida, “homo socius”.
Peter L. Berger & Thomas Luckmann – A Construção Social da Realidade p.73
Filosofia e Sociologia possuem histórias que se entrecruzam de várias formas, havendo aqueles que crêem, com certa razão, que a segunda é filha pródiga da primeira. Nestes termos, há duas vias costumazes pelas quais o estudioso da musa grega trava contato com a francesa. A primeira, típica do estudante de ensino médio, é aquela que suas aulas de filosofia ocorrem como pastiche de temas sociológico, causando confusão e, não raro, desinteresse; a segunda, tão distante quanto precisa, é aquela em que a pessoa nota que o pai da sociologia, pretendendo-se filósofo, foi ideólogo. Neste sentido, a sociologia não compartilha o berço de ouro da filosofia ou da história; o objetivo de seu criador fora torná-la rainha das ciências. Malogradas as intenções, o cadáver doutrinal de seu pai vaga pelos cantos, assombrando salas de aula (no caso brasileiro, até a bandeira nacional); mas a sociologia sobreviveu e, abandonando a pretensão de paródia da física, tornou-se disciplina humana.
Todavia, nos compete reter que o nome sociologia despertou, desde cedo, reações extremas: há os que lhe impugnam a alcunha de ciência, mesmo humana,[1] e os que a enxergam como um imbróglio utilizado por ideólogos[2] ávidos em impor suas agendas; ademais, há os que a preterem como bastarda da filosofia política e, por fim, os que procuram transfigurá-la em algo diverso de sua origem ingrata – todas estas opiniões possuem ao menos uma ponta de verdade. Problema posto, esboçaremos uma definição de sociologia a fim de justificar um guia voltado para o estudante de filosofia; nisto, a pergunta radical é bífida: o que é sociologia e qual sua utilidade?
Semelhante à filosofia, a sociologia sofre de crises de identidade, mas, enquanto a primeira reteve, ao longo do tempo, um mesmo cerne, digo, a concepção de busca por uma verdade alcançada, mas jamais possuída, a segunda transfigurou-se de pretensa ciência exata, física social, para disciplina humana intimamente dependente do contributo de seus pares. Entretanto, isto não é demérito; da mesma forma que o conhecimento humano não se reduz a algum de seus graus, nem toda “ciência” é “exata” e nem precisa ser. Neste sentido, é mais correto dizer que a sociologia, liberta do positivismo e livre para precisar seu objeto e metodologia, passou por uma espécie de transfiguração.
Para esboçar uma definição de sociologia, utilizaremos o instrumental clássico e a circunscreveremos sob as categorias de objeto material, formal terminativo e formal motivo. [3] A primeira refere-se, lato sensu, ao aspecto do real que determinará o conteúdo concreto da disciplina; no entanto, devido à sua amplitude, tal escopo pode ser estudado por uma multiplicidade de disciplinas. Assim, caso tenhamos o homem como objeto material, ele será compartilhado com a biologia, a antropologia, etc., com cada uma destacando a parte que lhe cabe. A segunda se refere à forma, sub ratio finis, que determina os princípios da disciplina; aqui ocorre a diferenciação entre as várias maneiras de tratar um objeto material, com, por exemplo, a psicologia focando em seu aspecto psíquico, a biologia pela natureza do organismo vivo, etc. Mas o objeto formal terminativo ainda pode ser compartilhado com outras disciplinas, como costuma ocorrer com o estudo das propriedades físico-químicas dos metais. A terceira categoria é a razão de ser da disciplina enquanto necessária à compreensão do objeto destacado e precisado; aqui ele não pode mais ser compartilhado, uma vez que exige, para seu estudo correto, princípios e métodos específicos. Temos, portanto, uma estrutura remetente às causas material, formal e final: a primeira nos dá a matéria do estudo, a segunda sua estrutura e a terceira seu motivo; com isto em mãos, esbocemos um quadro da sociologia inspirado nos ditames de Gilberto Freyre.
O primeiro objeto de interesse descrito por Freyre, é o social; trata-se daquele “mundo de problemas de relações, atividades e produtos sociais” de que se ocupam as ciências sociais em geral[4], como, conforme o autor, a Psicologia; eis, portanto, uma trama de relações humanas. Gilberto cita a definição de E.T. Hiller: social é “tudo o que é afetado pela associação entre seres humanos, ou por seu comportamento, seu trabalho, suas maneiras de pensar, sua presença”.[5] Eis o que podemos chamar de objeto material da sociologia: o social enquanto mundo vivo criado pelo complexo de relações humanas; este aspecto será de importância capital para a concepção de Lebenswelt na sociologia de teor fenomenológico.
Logo em seguida, Freyre comenta que deste escopo a sociologia retira a) os fatos dinamizados enquanto socialidade, aqueles dependentes, enquanto relações, das pessoas, da organização e da cultura a que pertencem; estamos próximos, nos termos de Berger e Luckmann, da idéia de construção social da realidade e b) a forma de interação na qual a pessoa passa de indivíduo para homem social.[6] Depuremos estes aspectos: o primeiro, o de socialidade, refere-se à condição do homem socializado, o socius, [7] integrado em sua cultura na medida em que entende seus signos e, através deles, interage com outras pessoas; o segundo refere-se a uma curiosidade da sociologia, a saber, a de não estudar um indivíduo puro[8] (certa abstração de teor ideológico), destituído de concretude: há apenas a pessoa integrada num contexto e, neste sentido, percebemos que se compartilha com a história a característica contextualizante; aquilo que existe o faz, sempre, em situações concretas. A socialidade concreta no socius é o objeto formal motivo da sociologia.
Por fim, o objeto da sociologia é tido como a organização social vista através de seus processos, interações e “sínteses: as personalidades que se caracterizam por predominâncias socioculturais de que são veículos, portadores, pontos de encontros, modificadores, agentes, os grupos e as instituições da mesma organização.”[9] Aqui temos uma série de elementos que nos interessam: a) uma forma de organização social, b) seu processo de funcionamento, c) interação com outras formas d) e as pessoas que a integram e) enquanto representantes d´uma cultura. Isto afunila a especificidade da disciplina no estudo do aspecto social-dinâmico,[10] tornando a sociologia aquela que se refere aos processos, formas, sínteses e interações socioculturais; seu objeto formal motivo são estruturas sociais processuais, aspecto da realidade que pode ser resumido no fato empírico de que os homens interagem e suas relações erigem estruturas de significado imponente – escopo que, uma vez estudado, será útil a outras disciplinas. [11]
Agora que sabemos mais ou menos o que a sociologia é, precisamos examinar como ela importa para o estudante de filosofia.
- A Sociologia Acolhida
O mundo da vida cotidiana é a cena e também o objeto de nossas ações e interações. Temos de dominá-lo e modificá-lo de forma a realizar os propósitos que buscamos dentro dele, entre nossos semelhantes. Assim, trabalhamos e operamos não só dentro do, mas também sobre o, mundo.
A resposta da questão da utilidade surge, de maneira mais intuitiva, quando tratamos da história, e isto por conta do percurso dos estudos filosóficos forçarem o estudante a estudar ao menos história da filosofia a fim de construir uma cultura filosófica; a partir daí, há apenas um pequeno salto para a história strictu sensu. No entanto, o nexo disciplinar entre filosofia e sociologia é algo nublado por seus temas surgirem, sobretudo, intricados na filosofia política e na ética por tratarem tratam de temas referentes ao social – preterindo a exigência explícita d´um aspecto sociológico. Resta explicitarmos de que forma a sociologia contribui para o estudo da filosofia mediante o fornecimento de dados críticos para tais disciplinas.
Tanto a filosofia política quanto a ética tratam de relações humanas ocorridas no âmbito da cultura; neste sentido, examinam dados passíveis de exame sociológico. Todas as disciplinas filosóficas que, conforme o jargão aristotélico, estudarem as coisas humanas, relações intersubjetivas postas no mundo da vida, poderão colher dados fornecidos pelo estudo sociológico na proporção em que este, análogo aos estudos históricos, contextualiza situações. Filósofos, enquanto pessoas, vivem imbuídos numa cultura; a história pode nos descrever o registro do ocorrido num período, mas precisamos da sociologia para nos explicar suas relações humanas reais e, neste sentido, nos ajuda a compreender a forma mentis de um povo, algo próximo do que Voegelin chamou de símbolos auto-interpretativos.[12] Exemplifiquemos o dito através de um vislumbre da sociologia fenomenológica de Alfred Schütz.
As interações socioculturais ocorrem no escopo do Mundo da Vida [Lebenswelt], i.e., mundo intersubjetivo, compartilhado por várias subjetividades, que engloba não apenas os viventes num determinado período mas também seus predecessores que viveram num mundo organizado[13] ou cosmion.[14]O mundo social presente para nós é, sempre, submisso à interpretação daqueles que vivem em seu escopo, a sociedade; neste sentido, o homem posto no mundo (enquanto parte dele) o analisa d´uma perspectiva interna, i.e., a parte que analisa todo e, assim, aquele influenciado pelo entorno o influencia de volta na medida em que conceitua o que é o mundo.[15] Este mesmo mundo contém, em seu escopo, o registro das experiências das pessoas que nele viveram e, por isto, é passível de decifre e análise por todo aquele que compreenda seus signos; assim, o Lebenswelt é uma amálgama das experiências, unidade potencial de infinitas latências[16] codificadas numa série de formas cuja mais imediata é o idioma aprendido de nossos pais.[17]
Neste contexto, nossa atitude natural perante o mundo nunca é privada, digo, o solipsismo é impossível na medida que as estruturas sociais não são oníricas;[18] são comuns, pertencentes a um cosmo povoado[19] e formadas por vivências significadas e compartilhadas por muitos. Assim, qualquer ação dentro d´uma sociedade requer a compreensão implícita de seus signos.[20] Comprar um pão, por exemplo, requer o exercício dos papéis sociais do comprador e do vendedor, a aceitação de uma unidade monetária,[21] o contrato implícito manifesto na troca da mercadoria e, claro, que todos se entendam, algo possibilitado pela linguagem:
“[…] o mundo da vida cotidiana é a cena e também o objeto de nossas ações e intenções. Temos de dominá-lo e modificá-lo de forma a realizar os propósitos que buscamos dentro dele, entre nossos semelhantes. Assim, trabalhamos e operamos não só dentro do, mas também sobre o mundo”.[22]
Nossas ações ocorrem e alteram um estado de coisas que, por sua vez, influencia nosso comportamento, com todas as nossas interconexões sendo objetivas de acordo com limites socialmente impostos; eis a estrutura que gera um dos aspectos do problema filosófico da liberdade.[23] Outro aspecto é que a estrutura objetiva das relações sociais tende a ser vista, devido à sua dependência das pessoas – e, por isso, tais alicerces não são como as leis físicas[24] – como meramente subjetiva; no entanto, tal simplismo é facilmente eliminado quando compreendemos o caráter intersubjetivo e a origem “natural”, decorrente do convívio social, de tais relações. Estamos, aqui, diante de um dos sentidos implícitos nas teses aristotélicas do zoon politikon e da naturalidade da pólis. [25] Por outro lado, as estruturas sociais enquanto realidade cósmica exercem certa pressão, sobre as pessoas, análoga àquela das leis pertencentes ao mundo “natural”; eis o sentido da objetividade do mundo social, conforme explicado por Berger & Luckmann:
Só nesse ponto é possível falar realmente de um mundo social, no sentido de uma realidade ampla e dada, com a qual o indivíduo se defronta de maneira análoga à realidade do mundo natural. Só desta maneira, como mundo objetivo, as formações sociais podem ser transmitidas a uma nova geração. Nas fases iniciais da socialização a criança é completamente incapaz de distinguir entre a objetividade dos fenômenos naturais e a objetividade das formações sociais. Tomando o aspecto mais importante da socialização, a linguagem aparece à criança como inerente à natureza das coisas, não podendo perceber a noção do caráter convencional dela. Uma coisa é aquilo que é chamada, e não poderia ser chamada por um nome diferente. Todas as instituições aparecem da mesma maneira como dadas, inalteráveis e evidentes. Mesmo em nosso exemplo, empiricamente improvável, dos pais terem construído um mundo institucional de novo, a objetividade desse mundo aumentaria para eles pela socialização de seus filhos, porque a objetivação experimentada pelos filhos se refletiria de volta sobre sua própria experiência desse mundo. Empiricamente, está claro, o mundo institucional transmitido pela maioria dos pais já tem o caráter de realidade histórica e objetiva. O processo de transmissão simplesmente reforça o sentido que os pais têm da realidade, quanto mais não seja porque, falando cruamente, ao dizer “É assim que estas coisas são feitas”, frequentemente o próprio indivíduo acredita que é isso mesmo.[26]
É neste mundo objetivo para nós que desenvolvemos nossa biografia: todos os momentos de nossa vida contém, em si, elementos do cosmion em que vivemos e, com ele, toda uma unidade sociocultural que podemos, quiçá, renegar, mas nunca ignorar.[27] Tais componentes constroem nossa situação biográfica que, por sua vez, retira seu significado do meio ao qual reagimos adquirindo papéis sociais, ideários, ideologias,[28] idiomas e, nisto, compomos a síntese que será estudada pela antropologia filosófica e pela ética sob o nome de dimensão histórico-biográfica: ela é, de acordo com Schütz, “a sedimentação de todas as experiências […] organizadas de acordo com as posses “habituais” de seu estoque de conhecimento à mão, que como tais são posses unicamente dele, dadas a ele e a ele somente.”[29]
Neste pequeno esboço, a sociologia se revela como um poderoso instrumento de análise para aprofundarmos nosso conhecimento acerca do mundo vivo que abriga os filósofos e também a nós mesmos. Ela vivifica aquilo que a história registra e dá o escopo de latências que utilizaremos para montar os problemas filosóficos: o problema da liberdade surge quando nos perguntamos em que medida somos livres em relação a alguma situação em que nos sentimos determinados. O problema da filosofia política existe por conta do homem viver em sociedade; Platão erigiu a República como modelo de estudo para resolver o caos da pólis. Parte da concepção de idéia platônica, de acordo com Jaeger, advém de um longo processo de precisão do conceito de idéia presente na lingua grega, algo que, por sua vez, também serve de símbolo para o viés estético do grego antigo, algo manifesto em sua arte mas principalmente em sua educação.[30] Tudo isto é compreendido mediante exame sociológico. Eis o nexo que torna a sociologia uma das melhores companheiras para a filosofia.
- A Sociologia Estudada
O sociólogo tenta ver o que existe. Poderá alimentar esperanças ou temores em relação ao que irá encontrar. Mas tentará enxergar, a despeito de suas esperanças e temores. Por conseguinte, o que a sociologia busca é um ato de percepção pura, tão pura quanto o permitem os meios humanamente limitados.
Peter L. Berger – Perspectivas Sociológicas p.13-14
Agora que sabemos o que a sociologia é e como nos ajuda a estudar filosofia, resta erigir uma seleção bibliográfica adequada. Feito ocorre com a filosofia, a sociologia exige uma cultura sociológica composta por sua história e autores clássicos enquanto fonte primária. Por outro lado, difere de sua parenta – e também da história, que exige apenas alfabetização, atenção autores de boa qualidade – devido a seu nascimento num contexto muito diferente, conturbado, e exigir, por isto, conhecimento filosófico prévio e um estudante capaz de depurar fontes – para clarificar o ponto, basta apontarmos que o termo realidade, utilizado em sentido sociológico, difere bruscamente do uso filosófico: o primeiro se refere ao contexto social, restrito à autointerpretação de uma sociedade ou de seus grupos sociais, enquanto o segundo se refere ao real em si mesmo; nisto, a sociologia pode falar de múltiplas realidades, mas a filosofia, não; a primeira pode falar d´uma construção do real, mas a segunda, não. Caso os conceitos sejam confusos e tomemos o primeiro sentido pelo segundo, resulta um solipsismo intersubjetivo onde passamos a crer que o conhecimento produzido num contexto social lhe é restrito ou difere, radicalmente, daquele erigido em outro lugar – eis, claramente, uma anfibolia entre temas epistemológicos e sociais.[31] No limite, o erro é análogo a uma regressão de consciência onde retornamos às sociedades cosmológicas, fechadas em si mesmas, cultuando deuses restritos àquele espaço.[32]
Uma vez compreendida a exigência d’uma cultura filosófica bem estabelecida para a correta intelecção dos conceitos sociológicos, podemos fornecer uma pequena bibliografia sociológica básica para estudante de filosofia. Não pretendemos, aqui, um guia exaustivo ou que abarque todos os pontos da matéria, mas apenas o suficiente para o início de seu estudo.
Tópico I: Os Clássicos
[…] possui a Sociologia duplo valor: pode acrescentar o conhecimento que tem o homem de si mesmo e da sua sociedade, e pode contribuir para solução de problemas que ele enfrenta, realizando e conservando a espécie de sociedade em que ele espera viver.
Recomendamos, em primeiro lugar, quatro manuais. O primeiro é voltado àqueles que nunca ouviram falar da matéria e precisam compreender quem foram os autores clássicos, seu contexto e doutrina; é especialmente recomendado para estudantes do ensino médio com dificuldade para compreender sociologia. O segundo consiste numa leitura mais complexa e, para o estudante de filosofia, bem mais agradável, uma vez que dialoga com temas filosóficos, respeitando os limites entre as matérias. O terceiro – recomendado na bibliografia do segundo livro – é um calhamaço voltado ao fornecimento de um panorama global e temático da sociologia e, neste sentido, opera com função análoga às histórias da filosofia. O quarto, algo mais filosófico do que os anteriores, serve-lhes de fundamento e pode, de certa forma, ser lido antes do Chinoy. Recomendamos ainda, como material extra, o robusto Teoria Sociológica Contemporânea, coletânea de artigos dotada de densa bibliografia, e o História das Idéias Sociológicas como opção para o robustecimento do quadro histórico da disciplina.
Aspectos globais postos, é preciso partir para as fontes primárias. A idéia de sociologia, concebida como física social, pode ser encontrada no Curso de Filosofia Positiva, de Auguste Comte. O estudante de filosofia notará que o autor é comumente tratado em histórias da filosofia que, por sua vez, podem servir de apoio à leitura. Recomendamos, logo em seguida, um compêndio de textos primários que contém três textos fundamentais de Max Weber, os Conceitos Sociológicos Fundamentais, Ciência como Vocação e Política como Vocação, valendo ainda pelos textos de Karl Marx, Simmel e Durkheim, embora, neste caso, recomende-se pular os textos durkheimianos e partir para um livro completo, o As Regras do Método Sociológico. Não se exige o estudo de todas as obras de Durkheim, embora sugiramos ler, ao menos, as três primeiras; recomenda-se, como apoio, o Cambridge Companion to Durkheim.
Chega a hora de “ler Marx”; embora o autor não estivesse interessado em fundar ou avançar a matéria, seus textos contêm, por conta dos temas tratados, uma “sociologia embutida”.[33] O Sociologia: Essencial contém a introdução e o prefácio do Contribuição à Crítica da Economia Política; entretanto, cremos ser mais prolífico ler o livro inteiro. Para O Capital, segundo os propósitos deste guia, bastam as Seções I e II; todavia, nada impede o leitor de estudar o livro inteiro (algo interessante para o estudante de filosofia e também para o de economia). Para uma melhor compreensão, recomenda-se o Sociologia e Filosofia Social de Karl Marx, de T. Bottomore, e Sociologia de Marx, de Henri Lefebvre.
Tópico II: Os Não-Clássicos
Finados os estudos acima, o estudante já possui uma boa cultura sociológica constituída, essencialmente, pelos fundadores da disciplina. Entretanto, é importante ter contato com sociólogos mais recentes pelo mesmo motivo que estudamos filosofia e história atuais: os temas podem permanecer, mas a abordagem muda e se atualiza. É de se esperar que, aqui, não visemos uma listagem exaustiva: da mesma forma que não é possível e nem desejável falar de todos os filósofos, a quantidade de sociólogos é legião; o interessado em mais recomendações poderá consultar a bibliografia já comentada, uma vez que boa parte dos volumes contém mais referências. Portanto, procederei expondo brevemente alguns autores e livros, ligando, sempre que possível, seus temas a outros advindos da filosofia. Não sigo ordem cronológica alguma e não espero que o leitor siga; feito ocorrido com o Leituras de História para Estudante de Filosofia, as recomendações devem ser utilizadas conforme o tema e a necessidade. Por fim, recomendarei, aqui, na medida do possível, apenas livros em português e, entre eles, apenas os que li e sei que podem ser úteis ao estudante de filosofia; portanto, caso o leitor se interesse por algum autor e queira aventurar-se em sua bibliografia estrangeira, é livre para que o faça.
- Schütz, Berger e Luckmann
Las ciencias que aspiran a interpretar y el pensamiento humanos deben comenzar con una descripción de las estructuras fundamentales de lo precientífico, la realidad que parece evidente para los hombres que permanecen en la actitud natural. Esta realidad es el mundo de la vida cotidiana.
Estes três autores, pertencentes a uma tradição de múltiplos nomes (compreensiva, hermenêutica), ainda que comumente chamada de fenomenológica, formam o corpo que origina boa parte do ensaio introdutório do presente guia. Suas análises focam, principalmente, no já mencionado mundo da vida e na construção social da realidade enquanto trama intersubjetiva de significados. É, para o estudante de filosofia, uma escola extremamente familiar; há capítulos de Schütz que parecem ser de Husserl e de Berger que parecem de Voegelin. Nisto, a passagem da filosofia de viés fenomenológico e até realista para a sociologia destes autores é suave e, n´alguns pontos, imperceptível, sendo notada, como se espera, pela mudança temática. O tema da situação biográfica é facilmente ligada com a dimensão histórico-biográfica da consciência tratada por Eric Voegelin; pode ser, na mesma clave, de grande ajuda para a compreensão da filosofia Olaviana. As análises de Berger & Luckmann são de extrema importância para o interessado em filosofia da religião por conta do estudo amplo do tema do pluralismo religioso e da teoria da secularização.
Georg Simmel é outro autor “confortável” para o estudante de filosofia por ter sido, para além de um dos pais da sociologia, também filósofo, tratando da relação entre os sexos, estética, arte, religião e cultura. O primeiro livro recomendado coleta ensaios publicados em vida e o segundo é uma seleção póstuma. Mannheim é um autor capital para a compreensão do fenômeno das ideologias e, neste sentido, crucial para o interessado em filosofia política, valendo a pena comparar seus escritos com os de Eric Voegelin, James Billington e Erik Kuehnelt-Leddihn. Aron também se debruçou sobre o tema das ideologias em seu clássico O Ópio dos Intelectuais – é interessante comparar suas concepções com as de Mannheim, de Voegelin e até as Marx. Seu As Etapas do Pensamento Sociológico serve de história crítica e apoio à leitura de outros sociólogos.
Os três autores citados são, normalmente, chamados de funcionalistas e focam, grossíssimo modo, nas funções das estruturas sociais enquanto mantenedoras d´uma sociedade coerente, forma de pensar derivada, principalmente, das doutrinas de Durkheim. O primeiro autor, Pareto, é conhecido principalmente por conta da Lei de Pareto ou princípio 80/20, regra cujo enunciado diz que 80% dos efeitos advém de 20% das causas – neste sentido, ele não é importante apenas para o estudante de filosofia e sociologia, mas também para o de economia. Entretanto, a tese que mais interessa para o estudante afeito à filosofia política é, decerto, a teoria das elites; nela, grosso modo, elites são entidades naturais em qualquer sociedade complexa e, uma vez surgidas, tomam o poder, nele sucedendo umas às outras. Em Parsons, a tese que mais interessará ao estudante de filosofia – e também ao de economia – é a da ação social enquanto comportamento humano intencional e consciente. Os volumes de seu Estrutura da Ação Social (2 volumes) também funciona como história da sociologia e apoio à leitura de Pareto e Durkheim. Merton é interessante por conta do desenvolvimento conceito de anomia, crucialmente importante para o estudante de filosofia política na medida em que descreve um desajuste entre os objetivos sociais e seus meios de alcance; nesta clave é interessante comparar a anomia de Merton com o conceito de sedição na Política (1266a37) de Aristóteles – a mesma questão importa, naturalmente, à ética.
Com interesses semelhantes aos de Merton, Becker interessou-se pela sociologia do desvio, digo, o estudo sociológico daqueles cujo comportamento difere do comumente aceito numa sociedade complexa. No entanto, o tema do desvio, enquanto leva à reflexão sobre a aceitação ou negação de normas, ao mesmo tempo em que abre a possibilidade de estabelecimento de novas regras, é de extrema importância para o estudante de ética (será que o niilista e o relativista são desviados?) e também para o de filosofia política – ele é, inclusive, tratado no Filosofia Política de Eric Weil. A atenção de Goffman ao tema das interações cotidianas o torna um “estoque” de material para o estudante de filosofia interessado em ética, em especial no referente aos papéis sociais, tema diretamente relacionado com o conceito filosófico de má-fé, que tratamos em Olavo de Carvalho e o Princípio de Autoria. Podemos encontrar um tratamento semelhante, agora conforme o estudo do desvio, em seu livro Estigma. Por fim, recomenda-se apenas um livro de Strauss, o Espelhos e Máscaras, que funciona como espécie de Crátilo Sociológico por conta de seu foco no tema dos nomes e da linguagem para a compreensão do conceito de identidade.
- Horkheimer, Adorno, Habermas
Da mesma forma como toda a vida tende hoje, cada vez mais, a ser sujeitada à racionalização e à planificação, também a vida de cada indivíduo, incluindo seus impulsos mais ocultos, que constituíam antes seu domínio privado, deve agora levar em conta as demandas da racionalização e da planificação: a autopreservação do indivíduo pressupõe seu ajustamento às exigências de preservação do sistema. Ele já não tem espaço para evadir-se do sistema. E da mesma forma como o processo de racionalização já não resulta de forças anônimas do mercado, mas é decidido na consciência de uma minoria planificadora, também a massa de sujeitos deve deliberadamente se ajustar: o sujeito deve, por assim dizer, devotar todas as suas energias para estar “no e para o movimento das coisas”, nos termos da definição pragmática.
Max Horkheimer – Eclipse da Razão p.109
Horkheimer é, com Adorno, considerado um dos pais da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica. O Dialética do Esclarecimento interessa ao estudante de filosofia política, ética e epistemologia na medida em que trata da transformação da razão em forma de controle social [instrumentalização] e como isso produz, no homem, uma espécie de alienação do mundo e de si mesmo – o tema é expandido em Crítica da Razão Instrumental e Eclipse da Razão. Destes estudos, boa parte feita em diálogo com Theodor Adorno, nasce o aparato utilizado no Indústria Cultural – interessante, naturalmente, para o afeito à filosofia da cultura e, em especial, ao tema da cultura de massa. O último frankfurtiano recomendado, para encerrar o guia com um autor atual, é Habermas, cuja opera omnia quase inteira interessa ao estudante de filosofia; entretanto, recomendarei apenas três, as que mais me foram úteis: Teoria da Ação Comunicativa, obra capital para a compreensão de temas referentes à filosofia da linguagem, ética e metaética, em especial por conta de dialogar com estudos advindos da filosofia analítica. Conhecimento e interesse, obra magna da sociologia do conhecimento, interessa para o estudante de ética e também para o de filosofia da ciência na medida em que debate os pressupostos ideológicos do conhecimento científico. Por fim, Teoria e Práxis projeta uma teoria crítica da sociedade e sua aplicabilidade prática. Caso necessário, o estudante pode adquirir um panorama destes autores no livro Teoria crítica.
Epílogo
Há muitos autores que ficaram de fora deste guia. Caso nossa pretensão fosse a de roteirizar um estudo robusto de sociologia, sua forma seria indiscutivelmente incompleta e algo tosca. Por outro lado, intentando o fornecimento de uma pequena gama de autores interessantes para o estudante de filosofia, visamos recomendar apenas um pequeno corpus, limitado a apenas vinte e poucos autores divididos em grupos dotados de apenas parte de sua bibliografia. Entretanto, caso o leitor deseje, poderá expandir infinitamente a bibliografia proposta simplesmente consultando os manuais ou pesquisando o resto dos livros dos autores recomendados – mesmo sob pena de lotar a estante. A concisão do guia cortou muitos autores que, inseridos em meu escopo há muito pouco tempo, não tiveram seu pensamento devidamente digerido, feito Margareth Archer e Anthony Giddens, e também outros que foram preteridos em razão dos já postos, como Lukács e Marcuse. De qualquer forma, creio que o propósito de fornecer um corpus básico de sociologia, acessível a qualquer um com boa vontade, foi cumprido. Encerro o guia com a recomendação de uma pequena coleção de leituras de apoio.
Coleção Sociologia: Pontos de Referência
Notas:
[1] Como comenta Schütz, em seu A Construção Significativa do Mundo Social (p.21): “Diferentemente do que ocorre em outros campos do saber, trata-se de uma disputa não apenas em torno da comprovação da eficácia de determinados métodos e teorias; antes, objeto de discussão é o próprio campo de estudo das ciências sociais e o caráter pré-dado do mesmo enquanto realidade da experiência pré-científica.”
[2] “Ideólogos de todas as colorações políticas procuraram recrutar as ciências humanas como “armas” na guerra das ideias. O falecido Dr. Goebbels deixou isso muito claro: “Verdade é aquilo que serve ao povo alemão”. Tal uso de qualquer ciência destrói seu caráter essencial como busca desinteressada da verdade. […] eu diria, o cientista social moderno está numa grande tradição filosófica que os gregos chamavam de “vida teorética” (bios theoretikos). Eu sempre estranho que existam pessoas que acham maior atrativo moral no papel do propagandista.” Peter L. Berger — Rumor de Anjos p.185-186
[3] Tratado de Simbólica p.11; Cosmogonia da Desordem p.268-269.
[4] Segundo Freyre: Psicologia, Filosofia Social, Literatura, Política, Psiquiatria, Pedagogia, Urbanismo e Legislação de Trabalho (direito).
[5] Gilberto Freyre – Sociologia p.115
[6] Gilberto Freyre – Sociologia p.115-16
[7] “Por socialidade […] deve entender-se a condição do indivíduo (biológico) desenvolvido, dentro da organização social e da cultura, em pessoa ou homem social, socius ou animal, se não social, socializado, pela aquisição de status ou situação; desenvolvido em membro de um grupo ou, ao mesmo tempo, de vários grupos”. Sociologia p.116
[8] “Biologicamente, pode-se estudar o indivíduo sem status e, por conseguinte, puro: o biomo. Sociologicamente, não […] o ponto de vista sociológico é principalmente o cultural, embora não lhe possa de modo nenhum ser estranho o critério do naturalista e da história natural do homem social.” Freyre p.117
[9] Gilberto Freyre – Sociologia p.116
[10] Gilberto Freyre – Sociologia p.116
[11] “[…] todo estudo científico de processo, de forma — ou de forma-conteúdo — de função, ou de síntese de interação sociocultural e que deixa de ser exclusivamente Sociologia para tomar-se também outra ciência social ou Filosofia, Psicologia, Biologia, Ética, todo estudo que se ocupe exclusiva ou principalmente de produtos sociais ou de substâncias ou conteúdos culturais. O que não significa que para o estudo sociológico de certas regiões, épocas, comunidades, problemas, não se possam juntar os dois critérios fazendo-se obra conjunta de Sociologia e Etnologia, por exemplo. Ou de Sociologia e História. Pois é quase impossível separar de modo absoluto conteúdo, de função, forma, de processo, em trabalhos de Sociologia aplicada ou de Sociologia genética, que procure estudar o homem concreto, vivo, situado: o homem em existência.” Gilberto Freyre – Sociologia p.117
[12] Símbolos auto-interpretativos são um complexo de signos mediante o qual uma sociedade “vê” a si mesma. Voegelin explica isso no primeiro parágrafo do capítulo Representação e Existência de seu A Nova Ciência da Política.
[13] “‘O mundo da vida’ cotidiana significará o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado. Ele agora se dá à nossa experiência e interpretação. Toda interpretação desse mundo se baseia num estoque de experiências anteriores dele, as nossas próprias experiências e aquelas que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais, na forma de ‘conhecimento à mão’, funcionam como um código de referência.” Alfred Schütz – Fenomenologia e Relações Sociais p.72
[14] Podemos conferir o significado do termo cosmion na introdução geral à História das Idéias Políticas, localizado em Eric Voegelin – História das Idéias Políticas Vol.I p.47
[15] Uso “influência” e não “determinação” pois o “jogo de forças” sociológico não é determinista, como nas ciências exatas, mas dotado de graus de coerção. O termo “mundo” refere-se à interpretação da realidade social. De acordo com tal explicação, fica compreensível como somos influenciados, em nossa expectativa, pela estrutura social da cultura em que nascemos.
[16] Olavo de Carvalho
[17] “Qualquer tema significativo que abrange assim esferas da realidade pode ser definido como um símbolo, e a maneira linguística pela qual se realiza esta transcendência pode ser chamada de linguagem simbólica. Ao nível do simbolismo, por conseguinte, a significação linguística alcança o máximo desprendimento do “aqui e agora” da vida cotidiana e a linguagem eleva-se a regiões que são inacessíveis, não somente de facto, mas também a priori, à experiência cotidiana. A linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo. A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas de símbolos historicamente mais importantes deste gênero. A simples menção destes temas já representa dizer que, apesar do máximo desprendimento da experiência cotidiana que a construção desses sistemas requer, podem ter na verdade grande importância para a realidade da vida cotidiana. A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” Peter L. Berger & Thomas Luckmann – A Construção Social da Realidade p.59
[18] Aqueles que notaram que tais aspectos do mundo social impugnam o solipsismo e quaisquer outras doutrinas ou argumentos do tipo ‘cérebro na cuba’ estão plenamente corretos. Tais doutrinas são possíveis apenas mediante abstrações e eclipsamentos de aspectos do real que são precisamente aqueles que a sociologia estuda.
[19] Utilizo cosmo no sentido clássico, a saber, de universo racionalmente organizado.
[20] “Mas o que é que faz com que o entendimento mútuo seja possível? Como é possível que o ser humano realize atos significativos, com propósito, ou por hábito, que ele se oriente tendo em vista fins a alcançar, motivado por certas experiências? Os conceitos de significado, motivações, fins, atos, não se referem a um certo tipo de estrutura de consciência, a uma outra ordenação de todas as experiências num tempo interior, e alguma espécie de sedimentação? […] tais questões não podem ser respondidas pelos métodos das Ciências Sociais. Exigem análise filosófica.” Alfred Schutz – Fenomenologia e Relações Sociais p.56
[21] O tema da troca voluntária cruza história, sociologia, filosofia e economia. “[…] todas as Ciências Sociais veem a intersubjetividade do pensamento e ação como pressuposto. Que existem as pessoas, que elas agem em função umas das outras, que é possível a comunicação através de símbolos e signos, que os grupos e instituições sociais, sistemas legais, econômicos e outros são elementos integrantes de nosso mundo da vida [Lebenswelt], que esse mundo da vida tem sua própria história e relação especial com o tempo e o espaço – são todas noções direta ou indiretamente fundamentais para o trabalho de todos os cientistas sociais.” Alfred Schutz – Fenomenologia e Relações Sociais p.55
fonte: helkein.com.br/leituras-de-sociologia-para-estudantes-de-filosofia/
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