Significando o brincar: contribuições para uma
reflexão junto aos portadores de necessidades
especiais
Priscila Augusta Lima
Faculdade de Educação - UFMG,
Doutoranda em Psicologia da Educação - USP
1 Introdução
Este trabalho é resultado de reflexões e práticas desenvolvidas junto à disciplina
"Desenvolvimento e deficiências: as patologias e os processos de intervenção",
cursada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, no
primeiro semestre de 1998.
O seu objetivo é refletir sobre as possibilidades teórico-práticas de trabalho
com a pessoa portadora de deficiência relacionadas ao brincar. A atualidade do
tema ficou demonstrada pela crescente demanda por informações e qualificação
no campo da educação especial esboçada por profissionais de diferentes áreas
que desconhecem pontos básicos da vida da pessoa portadora de deficiência.
Por outro lado, manifesta-se a necessidade de uma reflexão aberta sobre os
referenciais teóricos que confluem na investigação desse campo. Autores como
Winnicott (1975) e Vygotsky (1991), que teorizam sobre o brincar, têm alguns
de seus conceitos destacados, uma vez que contribuíram inequivocamente para
a fundamentação desta investigação.
A abordagem psicanalítica de Freud é explorada por Winnicott. Seus trabalhos
incluem, além do brinquedo e do brincar, temas considerados complexos
para muitos pesquisadores, como a questão da variável cultural e seu peso nos
processos internos dos indivíduos.
Focaliza-se aqui esse aspecto, uma vez que está vinculado ao referencial
teórico proposto em pesquisa de doutorado da autora em andamento na USP.
A pesquisa trata da construção do mundo simbólico do deficiente visual e de
estratégias utilizadas por esses sujeitos nessa construção. O referencial teórico
vygotiskiano é tomado inicialmente como baliza para a compreensão da inserção
e do desenvolvimento da pessoa portadora de deficiência na sociedade humana.
Considerando os estudos realizados e a pesquisa em andamento, busca-se, neste
trabalho, a construção de "pontes"e possíveis aproximações entre as teorias
acima, aproximações essas que tentaremos apontar através de fragmentos de
casos da literatura ou de entrevistas realizadas pela autora.
Seria interessante ainda olhar criticamente para a atuação da família e da
escola em relação à pessoa com deficiência. Não para culpabilizá-las. Amiralian
(1997) mostra co-mo formas de violência intersubjetiva surgem quando essas
instituições, por desconhecimento, centram-se no déficit do indivíduo. A escolarização
cada vez mais precoce e as formas de terapia através do brinquedo
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podem ser enriquecidas pela compreensão de conceitos desse campo e da sua
importância na constituição da subjetividade dos portadores de necessidades
especiais.
2 Significados do brincar
Consultando o Novo dicionário da língua portuguesa (Ferreira, 1986, p. 286),
encontramos diversos significados para o brincar:
1. Divertir-se infantilmente, entreter-se em jogos de crianças.
2. Divertir-se, recrear-se, entreter-se, distrair-se, folgar; "Em qualquer circunstância
está sempre bem humorado, brincando".
3. Agitar-se alegremente, foliar, saltar, pular, dançar.
4. Dizer ou fazer algo por brincadeira, zombar, gracejar.
5. Divertir-se.
6. Tremer, oscilar, agitar-se.
7. Gracejar, zombar, mexer.
8. Entreter-se, distrair-se, ocupar-se.
9. Tomar parte em folguedos carnavalescos.
Os termos "divertir-se", "bem-humorado", "zombar", "gracejar", "mexer"e
especialmente "ocupar-se"interessam-nos particularmente. Por isso, retornaremos
a eles no decorrer desta apresentação. As definições não são essencialmente
positivas ou negativas, mas incluem esses dois aspectos.
Diversos outros dicionários de Psicologia e Psicanálise consultados não
tratam desse vocábulo. Temos então um sentido amplo associado ao senso
comum e dois sentidos específicos produzidos por dois outros autores, dos quais
trataremos a seguir.
3 Um olhar winnicottiano sobre o brincar
Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista britânico (1896-1971), trabalhou
durante 40 anos como pediatra, tornando-se em 1935 membro da Sociedade
Britânica de Psicanálise, a qual presidiu. Em seus trabalhos, preocupase
com o lactente e com o cuidado materno. Teoriza sobre o brincar. Para ele,
a origem do simbolismo pode estar no caminho que passa do subjetivo para o
objetivo, traduzido pelo objeto transicional, o primeiro brinquedo.
Winnicott (1975, p. 61) concede ao ato de brincar uma vastíssima dimensão
no domínio humano. Essa ampliação fica explicitada quando diz:
O que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos
adultos; apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente
aparece principalmente em termos de comunicação verbal. Sugiro que devemos
encontrar o brincar tão em evidência nas análises de adultos quanto o é no caso
2
de nossos trabalhos com crianças. Manifesta-se, por exemplo, na escolha das
palavras, nas inflexões de voz e, na verdade, no senso de humor.
Relacionando a saúde mental, a Psicanálise e a brincadeira, o autor diz:
O natural é o brincar, e o fenômeno altamente aperfeiçoado do século XX
é a Psicanálise. Para o analista, não deixa de ser valioso que se lhe recorde
constantemente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas também o que
devemos à coisa natural e universal que se chama brincar. (p. 63)
Para Winnicott, a utilização do objeto transicional é ao mesmo tempo a
utilização do primeiro símbolo e da primeira brincadeira. O brincar é, além de
uma busca de prazer, uma forma de lidar com a angústia. É uma necessidade
para o desenvolvimento de uma personalidade sadia.
Uma discussão posta pelo autor, no capítulo VII, intitulado "A localização
da experiência cultural", bem como a ênfase dada em seus textos sobre a
experiência sociocultural dos indivíduos, conduz a reflexões sobre a sua proximidade
teórica com Vygots-ky (1984 e 1991). Em sua citação frente à Sociedade
Britânica de Psicanálise em outubro de 1966, Winnicott (1975, p. 133) disse:
Freud, em sua topografia da mente, não encontrou lugar para a experiência
das coisas culturais, deu um novo valor à realidade psíquica interna e disso
proveio um novo valor para as coisas que são reais e verdadeiramente externas.
Freud utilizou a palavra sublimação para apontar o caminho a um lugar em que
a experiência cultural é significativa, mas talvez não tenha chegado ao ponto de
nos dizer em que lugar na mente se acha a experiência cultural.
Ainda sobre o emprego do termo "experiência cultural", observa Winnicott
(1975, p. 137) tê-lo considerado como uma ampliação da idéia de fenômenos
transicionais e da brincadeira:
(...) sem estar certo de poder definir a palavra cultura. A ênfase,
na verdade, recai na experiência. Utilizando a palavra "cultura",
estou pensando na tradição herdada. Estou pensando em algo que
pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos
e grupos podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se
tivermos um lugar para guardar o que encontramos.
Essa consideração a respeito da transmissão cultural irá encontrar ressonância
na abordagem de Vygotsky sobre o significado do brinquedo.
33. A ênfase dada à experiência cultural na construção do mundo simbólico e
da subjetividade humana apresenta-nos a possibilidade de ruptura com algumas
dicotomias, incluindo a da existência de sistemas independentes como o psíquico
e o social, o objetivo e o subjetivo.
4 Uma abordagem vygotskiana do brincar
Levy Seminovich Vygotsky (1896-1934), psicólogo soviético, apresentava interesses
em diversos campos do conhecimento. Foi advogado, psicólogo, semiólogo.
Desenvolveu interessantes estudos sobre o papel da cultura na constituição
do sujeito humano.
Na sua concepção, a relação entre o biológico e o cultural constitui-se como
uma interação permanente em que os aspectos que chamaríamos psíquicos ou
subjetivos exercem influência sobre o ambiente, recebendo deste seus elementos
constitutivos.
3
Vygotsky (1991) considera restrita uma definição de brinquedo como algo
que somente dá prazer à criança. O brinquedo preenche necessidades da criança,
necessidades entendidas como aquilo que é motivo para a ação. A criança
satisfaz certas necessidades através do brinquedo e essas necessidades passam
por um processo de maturação. Vygotsky exemplifica essa situação com o início
da fase pré-escolar.
No início da idade pré-escolar, a criança, tendo desejos que não podem ser
imediatamente satisfeitos, permanece, entretanto, com a característica do estágio
precedente, isto é, uma tendência para a satisfação imediata dos desejos.
Para resolver essa tensão, a criança de quatro a seis anos envolve-se num mundo
ilusório e imaginário, em que os desejos não realizáveis podem ser realizados e
esse mundo é o que Vygotsky chama de brinquedo.
Como todas as funções da consciência, a imaginação surge da ação. A imaginação
é o brinquedo em ação. Enfatizar o brinquedo apenas como uma atividade
simbólica e/ou cognitiva é arriscar-se a negligenciar a motivação e as circunstâncias
da atividade da criança. O brinquedo que envolve uma situação imaginária
é um brinquedo com regras. A criança imagina-se como mãe e imagina a boneca
como criança, mostra regras do comportamento materno e do comportamento
de criança. É no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva,
ao invés de numa esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências
internas e não dos incentivos fornecidos pelos objetos externos. No brinquedo,
os objetos perdem a sua força determinadora. A criança vê um objeto, mas age
de maneira diferente em relação àquilo que ela vê.
A ação numa situação imaginária ensina a criança a dirigir seu comportamento
não só pela percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta
de imediato, mas também pelo significado dessa situação. Segundo Vygotsky,
observações do dia-a-dia mostraram que é impossível para uma criança muito
pequena separar o campo do significado do campo da percepção visual, uma
vez que há uma fusão muito íntima entre o significado e o que é visto. Quando
se pede a uma criança de dois anos que repita a sentença "Tânia está de pé",
quando Tânia está sentada à sua frente, ela mudará a frase para "Tânia está
sentada". Essa mesma situação é encontrada em algumas doenças (Vygotsky,
1991, p. 111). Quando se diz a uma criança: relógio, ela passa a olhar para
algum local específico. A palavra tem originalmente o significado de uma localização
espacial particular. Na idade pré-escolar, ocorre pela primeira vez uma
divergência entre os campos do significado e da visão.
A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do
significado e o campo da percepção visual, ou seja, entre situações no pensamento
e situações parado dos objetos e as ações surgem das idéias e não das
coisas. Um pedaço de madeira torna-se uma boneca. Dois lápis tornam-se dois
colegas que dialogam. A ação regida por regras passa a ser determinada pelas
idéias e não pelos objetos. Um cabo de vassoura é um cavalinho e passa-se a
agir com ele conforme as regras sociais foram mostrando ao sujeito.
Nesse sentido, as interações do sujeito com a cultura e o fornecimento de pistas
de seus pares (através da escolarização? da psicoterapia?) são fundamentais
para a construção dessa forma de ação.
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5 A deficiência visual e o brincar: o caso de um
humorista
Dentre os portadores de deficiência visual participantes de atividades na universidade,
observa-se freqüentemente a manifestação de brincadeiras, verbalizações
humorísticas e irônicas, especialmente se baseadas na relação vidente/cego.
Essas atitudes são consideradas por alguns como formas de defesa do sujeito em
relação à sua deficiência.
Uma dessas pessoas tornou-se humorista com presença constante, desde
1997, em programas de televisão. Seu repertório consiste basicamente de piadas
sobre as relações estabelecidas entre os cegos e os videntes. Eis uma síntese de
algumas delas:
As pessoas videntes precisam aprender a lidar com o cego. Muitos pensam
que ele é também surdo e começam a gritar com ele. O grito entra por uma
orelha e sai pela outra até soltando fogo. Ouuuu!!!
Quando vêem um cego falando, dizem: "Olha ele fala! Ele é até bonitinho!"
Pensam que devia ser o "kit desgraça completo": ser cego, feio, pobre, ter
o pé grande e morar longe...
O cego tem verdadeira atração por buracos.
Entrei no ônibus, o primeiro lugar que eu não vi eu sentei. Um sujeito me
pediu para sair. Disse que tinha chegado primeiro. Ele disse: - Se você não
sair, o ônibus não sai. Perguntei: - Você é o dono da empresa? Ele respondeu:
- Não, sou o motorista e você assentou no meu lugar!
O exemplo acima mostra um brincar com a realidade e a imaginação de
cegos e videntes. A superação das dificuldades está associada à construção de
uma identidade profissional de humorista, de uma forma de interação e inserção
social e também de realização pessoal e de prazer. O brincar tem o significado
comum de distrair-se, ocupar-se, zombar, mexer, conforme a definição anterior.
Brincar com situações adversas vai se constituindo num campo complexo, que
não pode ser caracterizado apenas como "humor negro"ou defesa.
A ironia e o humorismo podem também ser uma forma de lidar com a angústia,
conforme Winnicott. Podem, além disso, propiciar aos sujeitos os efeitos
da sua interação com os outros e a internalização dos resultados positivos dessa
interação.
Por outro lado, se considerarmos o referencial de Vygotsky, seria uma forma
de "faz de conta"em que o indivíduo lida com sua deficiência e constrói significados.
Estes, por sua vez, são elementos dinâmicos, abertos a interações e
modificações.
As dificuldades relacionadas às deficiências são tema de vários trabalhos. De
fato, as pessoas deficientes estão enfrentando dificuldades. Porém, haver dificuldades
não quer dizer haver só dificuldades; lidar com dificuldades não quer
dizer algo essencialmente negativo. As formas de interação com a problemática
podem resultar, como no exemplo acima, em uma profissionalização, em uma
inclusão num campo de trabalho de grande visibilidade social, advindo daí inúmeras
possibilidades.
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6 Conclusão
Refletir sobre as questões acima sugere um aprofundamento teórico. O significado
da experiência cultural é apontado por Winnicott e enfatizado por Vygotsky.
Quando Winnicott trabalha o pensar e a formação de símbolos, muitas
outras "pontes"poderiam ser avaliadas, especialmente em relação à abordagem
vygotiskiana.
Do ponto de vista do trabalho com pessoas deficientes, podemos pensar em
incluir alternativas lúdicas, não necessariamente ligadas a brinquedos concretos,
mas a situações de "faz de conta "em que o lado do humor pudesse ser
considerado, além do lado da angústia, sempre presente.
Sacks (1995), através de histórias paradoxais, mostra-nos como o humor
aparece mesclado a experiências trágicas do sujeito. Ao relatar diversas deficiências
decorrentes de problemas neurológicos, que incluem também a cegueira,
há em seus textos um tom de espanto, incredulidade e comicidade muitas vezes
traduzido pela própria situação e pelo próprio sujeito. Um relato que torna
bastante explícito esse aspecto aparece no livro O homem que confundiu sua
mulher com um chapéu, cujo título refere-se ao caso verídico de um de seus
pacientes com agnosia visual. (Sacks, 1997)
A existência de certa angústia não quer dizer angústia permanente, em tempo
integral ou só angústia. Uma angústia permanente pode constituir-se numa
forma de relação invasiva1 com o sujeito ou em "fossilização"ou enrijecimento
da realidade. Como diria Vygotsky, fixação de um significado da deficiência que
poderia estar seguindo o seu curso dinâmico.
A natureza múltipla e diversa do brincar, a integração e a desintegração
de elementos diferentes e contraditórios aproxima-se do "Paradigma da Complexidade",
do qual Vygostsky teria uma representação (Gonzalez Rey, 1997) e
Winnicott parece aproximar-se em alguns pontos.
7 Nota
A relação invasiva ou intrusiva é uma das múltiplas falhas descritas
por Winnicott e abrangidas pelo termo "deficiências ambientais".
É considerada por ele como uma falha na função materna,
manifestando-se pela imposição do gesto da mãe ao bebê, do seu
estado caótico ao filho. Não há um reconhecimento das autênticas
necessidades do outro, mas uma imposição das suas necessidades a
ele. (Amiralian, 1997, p. 42)
8 Referências bibliográficas
AMIRALIAN, M. L. T. O Psicólogo e a pessoa com deficiência. In:
BECKER, E. et al. Deficiência: alternativas de Intervenção. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 1997.
FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986. 1.838p.
GONZALEZ REY. F. Epistemología cualitativa e subjetividad. Habana:
Editorial Pueblo y Educacíon, 1997. 290p.
6
SACKS, O. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995. 331p.
SACKS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo:
Cia. das Letras, 1997. 264p.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1991. 180p
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
1991. 168p.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
208p.
WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
270p.
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