Embora o projeto de regulação das redes sociais ainda não tenha sido divulgado, é possível antecipar pelas ideias que o inspiraram
por Cristian Derosa
Em um evento recente na Fundação Getúlio Vargas (FGV), o ministro da Justiça e Segurança Publica, Flávio Dino, falou sobre o projeto e sobre alguns pilares que devem nortear a tal regulação das redes sociais. A ideia, que era uma das promessas de Lula na campanha, ganhou condições de ser implantada após os atos de 8 de janeiro.
Em seu discurso, o ministro explicou que o projeto ainda será montado e levado a Lula antes de ser enviado para ser debatido no Congresso. Dino diz garantir que não será um projeto punitivo e que a ideia não é remover conteúdos. O que parece aliviar muita gente que fala em censura, porém, não deveria ser motivo de tranquilização. Isso porque, a julgar pelas ideias que vêm sendo historicamente construídas, não será preciso remover conteúdos porque eles não estarão presentes.
É fato que o que hoje aparece na mídia com o nome de “regulação das redes sociais” é apenas um projeto, uma etapa, que dependerá do momento ou timming que o governo acredite estarmos vivendo, de um projeto bem mais amplo e que vem sendo discutido há bem mais tempo. O PT não é a direita, que inventa um projeto tirado diretamente de princípios conservadores ou democráticos sem, antes, passar por longa e tediosa discussão em ambientes que gozem de menos atenção pública, seja pela discrição das pessoas ou da própria linguagem adotada.
No dia 10 de março deste ano, última sexta-feira, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) se reuniu com um órgão aparentemente desconhecido da grande população. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Criado em 1990, o fórum congrega “mais de 500 filiadas, entre associações, sindicatos, movimentos sociais, organizações não-governamentais e coletivos que se articulam para denunciar e combater a grave concentração econômica na mídia, a ausência de pluralidade política e de diversidade social e cultural nas fontes de informação, os obstáculos à consolidação da comunicação pública e cidadã e as inúmeras violações à liberdade de expressão”.
Será então que eles foram à Secom para defender a liberdade de expressão nas redes sociais?
De acordo com informação do próprio site, “na ocasião, foi entregue um documento em defesa do fortalecimento da comunicação pública, que pede a reinstalação imediata do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), colegiado cassado em 2016”. O fórum é coordenado por Admirson Ferro Jr, ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o secretário executivo, Pedro Rafael Vilela, que é editor da EBC e do site de esquerda Brasil de Fato, ligado à revista Caros Amigos, Fórum e outros grupos de esquerda.
De acordo com o site do FNDC, a reunião com a Secom foi para falar “sobre os esforços do governo em ampliar os debates em torno da garantia de direitos digitais nas redes sociais e na internet”. Trata-se de uma reorganização do debate, depois do que seus atores consideraram “retrocessos” após o impeachment de Dilma, o chamado “golpe, o governo Temer e o de Bolsonaro.
Nos jornais, e no próprio governo, os tópicos debatidos sobre a nova proposta de regulação das redes sociais são técnicos e jurídicos, muitas vezes formais ao extremo e enfeitados por uma linguagem democrática. A base ideológica e programática, porém, mais ampla e abrangente, já foi e vem sendo discutida em outra instância, longe dos holofotes de Brasília, embora tenha os seus representantes bem posicionados em torno do poder.
Trata-se da proposta antiga e bem fundamentada da “democratização da comunicação”, base de todo intento regulatório do PT há mais de três décadas. Ela faz parte dos debates da esquerda acadêmica, de movimentos sociais, ONGs e dos famosos “coletivos” há muito tempo. O desenvolvimento de uma base comum para essa proposta tem sido impulsionado pelo dinheiro de grandes fundações filantrópicas, que custeiam o trabalho das entidades. Fazendo-se passa por “sociedade civil”, essas ONGs controladas pelo dinheiro internacional decidirão tudo sem que precise passar por tediosos debates legislativos por deputados e senadores que foram eleitos para isso.
Os coletivos estão à frente deste debate desde os anos 2000. Durante o governo Dilma, o Marco Civil da Internet teve como base as mesmas discussões, capitaneadas por membros de movimentos relacionados com o alto escalão do petismo.
Como começou o debate e onde ele está
Não há como antecipar medidas práticas e jurídicas, que só o governo irá decidir. No entanto, revisando parte da discussão que amparou a proposta, é possível compreender até onde ela pode chegar.
Uma busca genérica nos diz apenas que a “democratização da Comunicação é o processo de popularização dos meios de comunicação através da pluralização das bases controladoras dos veículos de comunicação”. De maneira mais geral, esse debate começou nos anos 1990, quando a internet dava seus primeiros passos. Nessa época, o assunto era ampliar o acesso à TV e ao rádio, seguido do sinal da Internet e, atualmente, parte dessa abordagem cita o 5G, entre outros aspectos mais técnicos. No entanto, desde aquele momento, falava-se na quebra de paradigmas representados pela interatividade proporcionada pela TV digital ou a própria internet. Para a esquerda, a participação popular via internet mudaria, para melhor, o processo revolucionário. Nesse aspecto, eles viram sua utopia ir por água abaixo.
Indo para o ponto mais social da questão, fala-se em pluralização no sentido de “libertar” comunidades mais vulneráveis da influência econômica e “colonizadora” dos grandes grupos. Em lugares como sudeste asiático, África e América Latina, a democratização da comunicação se dá pelo investimento em iniciativas populares para que essas populações dependam menos dos grandes grupos. Mas qual o problema dos grandes grupos. Ora, há uma série de problemas, mas para os segmentos mais à esquerda que conduzem esse debate, não há problema maior que a chamada influência neocolonizadora do imperialismo norte-americano.
Isso quer dizer que o debate pela democratização levou a grupos e entidades filantrópicas a investir em uma estrutura alternativa de mídia para que essas comunidades não sofressem com a nefasta influência norte-americana. Sim, estamos falando de um debate que ganhou fôlego no período imediatamente após o “fim da guerra fria”.
Acontece que o debate é muito anterior. Essa exata perspectiva foi a que norteou o livro Meios de Comunicação: realidade e mito, de 1979, organizado pelo sociólogo Jorge Werthein, e prefaciado por Fernando Henrique Cardoso. Nele, os autores falam abertamente nesse processo de “descolonização”.
O primeiro problema deste debate, portanto, surge da proposta de pluralidade e descentralização econômica da comunicação, sendo que a imensa maioria dos grupos, coletivos, ONGs e movimentos sociais envolvidos é financiada por um pequeno grupo de entidades filantrópicas, da mesma forma como ocorre com o autointitulado “jornalismo independente”, como temos explicado aqui.
Isso explica a uniformidade ideológica do debate em torno da “democratização da comunicação”. No site da FNDC, fica evidente o alinhamento da pauta com as agendas dos financiadores da maior parte dos grupos envolvidos e militantes dessa “causa”. Para muitos deles, os direitos de minorias sexuais, racismo e tantas outras pautas identitárias, surgiram de legítimas e espontâneas reivindicações. A grande maioria dos ativistas desconhece que o aporte financeiro investido para custear a atividade revolucionária, na verdade, cria e alimenta um conjunto de narrativas que favorece o conflito social para preparar processo que, em última análise, não possuem nada de libertador, mas representam iniciativas de controle. Isso fica evidente pelo paradigma dos seus financiadores, tecnocráticos por definição, e capitalistas no pior sentido da palavra. Para os ativistas, porém, o importante é que o dinheiro está entrando e o trabalho pode ser feito.
Vejamos o que diz o site da FNDC sobre si mesmo:
A partir das propostas da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), uma conquista histórica do movimento, ocorrida em 2009, o FNDC lançou, em parceria com entidades do movimento social, a Plataforma para o Marco Regulatório das Comunicações, baseada nas mais de 600 proposições aprovadas no encontro. Vale lembrar que a I Confecom teve grande representatividade, com a participação de entidades da sociedade, do empresariado e do poder público. O movimento nacional de democratização da comunicação recebeu então o reforço de novos atores, como coletivos de comunicação, blogueiros e jornalistas independentes; e movimentos sociais que não o da comunicação, como o movimento sindical, das mulheres, movimento negro, movimento LGBTT, entidades ligadas à juventude e dos trabalhadores do campo, dentre outros.
Em 2016, quanto a entidade completou 25 anos, lançou a campanha “Calar Jamais!, para denunciar violações à liberdade de expressão em curso no país”. Atualmente, apoia a proposta de regulação e revisão do Marco Civil da Internet, provavelmente já ultrapassado em matéria de “democratização”.
Nas redes sociais, o FNCD retuíta posts sobre a esquerda, como o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, no qual pretende debater o fortalecimento da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) para espalhar rádios comunitárias por todo o país. Não é preciso dizer qual será a mensagem distribuída a essas rádios por meio do financiamento de coletivos na defesa das agendas dos seus patrões internacionais.
Entre as campanhas nas redes sociais, esteve em pauta o movimento “anistia não”, pela punição de manifestantes que foram a Brasília em 8 de janeiro. Ao mesmo tempo, pedem a libertação de um jornalista preso pela Polícia Militar por estar participando de uma ação de “ocupação” do movimento Povo Sem Medo, em Curitiba (PR).
O FNDC diz defender a democracia, mas considera “golpe” o impeachment de Dilma Rousseff, tese compartilhada por petistas que desacredita o funcionamento das instituições sem nenhuma cerimônia.
Portanto, mesmo sem sabermos ao certo o que será proposto no projeto do governo Lula sobre a regulação das redes sociais, sabemos o que o embasa de longa data. A ideia, como admitiu o próprio Flávio Dino, não será a mera remoção de conteúdos. Ou, melhor dizendo, não se resumirá nisso, mas essa será a sua base de início, isto é, não precisar remover nada porque não haverá espaço para o questionamento da base comum de suas crenças e teses impulsionadas pelo dinheiro do grande capital.
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