quarta-feira, 22 de março de 2023

O rei está nu



Gisele Leite

O rei está nu. Quem ousasse dizer tal coisa pela história de Hans Christian Andersen em “A nova roupa do imperador” seria considerado uma pessoa destituída de inteligência e inapta para ocupar os cargos no reino.

O imperador era um perfeito dandi e gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as do que se ocupando das coisas do reino.

Aí, surgiram dois espertalhões dizendo que possuíam uma roupa que não apenas tinha cores deslumbrante mas também dotada de qualidade única: somente as pessoas especiais poderiam vê-la e apreciá-la propriamente... E, os destituídos de inteligência e nobreza iriam dizer que a roupa era invisível ou que esta não existia.

O estranho equilíbrio entre cegueira e sabedoria traça a sua saga, e, então o rei ansioso pelas novas vestes ordena que seus ministros supervisionem a tecelagem e a elaboração de tão esperado traje.

Em lá, chegando, um dos ministros intimamente pensava: não vejo nada. Mas temendo ser exonerado de seu cargo, e diante dos tecelões espertalhões declara extasiado: - Quão maravilhoso é esse tecido, que padronagem, que cores! Vou relatar ao imperador que fiquei deverasmente encantado!.

Assinala bem Affonso Romano de Sant’Anna  que além da trapaça financeira, observamos que a palavra ocupa o lugar da coisa, e é muito comum, percebemos que o discurso cria uma invenção verbal de coisas inexistentes e quiçá impossíveis.

E nisso, os sofistas são mestres impressionantes. E, quando o próprio imperador decide verificar com seus próprios olhos a tal fabulosa vestimenta, defrontando-se com coisa nenhuma, pensou exatamente como o velho ministro e ao conselheiro que antes já haviam visitado os tecelões.

Até mesmo o imperador apesar de nada ver não desejava passar por estúpido ou imbecil e, então, começou a exclamar frases fascinantes a exortar o traje tão almejado. E, aí, toda a corte passou a fingir a ver o referido traje, e até mesmo os auxiliares fingiam carregar o manto invisível do imperador.

Consuma-se a alucinação quando diante do espelho, o próprio imperador dotado de poder e cegueira proposital admirava-se com a roupa que simplesmente não via. Esse conto é muito interessante de ser analisado principalmente no carnaval sob o brilho intenso de lantejoulas, paetês e trajes tão soberbos que nos permite ver a nudez e a crueza da realidade brasileira.

Então toda corte fingia ver a vestimenta inexistente e, na ocasião da apresentação oficial do traje ocorrera que uma criança que descompromissada, grita : - O rei está nu. Ele está sem roupa. É a visão pura da criança que desnuda a realidade e a denuncia aos berros.

E, o povo começa a abrir os olhos, a desanuviar a visão e concordar com a visão do infante.

A multidão urrava exasperada e acuado o imperador intimamente pensava que tinha que levar até o fim o desfile com toda pompa e circunstância. E, prosseguiu a caminhar garboso e orgulhoso cercado de seus cavaleiros e aios e ainda o camareiro real que seguiam e entravam numa carruagem que igualmente não existia.

A versão do conto de Andersen no folclore lusitano ganha em vez auxiliares competentes pela visão do traje, somente os filhos legítimos poderiam ver a roupa invisível do imperador. Seria assim como diversos mitos, uma seleção e uma senha para se apurar a legitimidade da sucessão ao trono.

E, no folclore lusitano quem é o denunciante do embuste é o estrangeiro negro. E passa então ser enjeitado.

A lenda narrada por Andersen desfia o pacto de cegueira, onde todo o povo brinca de avestruz e alguém (os tecelões trapaceiros) lucram com tal cegueira estimulada. E, porque todos temem a opinião ou a visão do outro, todos deixam de ver ou de ter opinião que caracteriza bem a chamada cegueira social.

È muito comum em partidos políticos, agremiações religiosas, cultrais onde ocorre a produção de discurso que ordena e coordena o que deve ser visto e ou não ser.

O que segundo La Boétie seria a chamada servidão voluntária, quando arrendamos nossos sentidos aos desejos e ao poder do outro. Mas quando se liberta da servidão voluntária do fanatismo podem os humanos envidar esforços em revoluções, dissidências , resistências e articulações tão bem demonstradas no filme recentemente estreiado chamado “Operação Valquíria”.

Mas, afinal, se havia tantos detalhes descritos, tantos pormenores ,e havia tanto espanto ante o traja inexistente ou invisível, o rei afinal está ou não nu?  Está nu aos olhos da corte. Está nu aos olhos da realidade. Mas, está vestido aos olhos de sua vaidade e egocentrismo.


Está trajado com o imaginário. Apenas isso. Trajado apenas para si mesmo.

Restam ainda algumas cruciais indagações: quem lucra verdadeiramente com a cegueira social brasileira? Quem será que dotado de visão pura e desvinculada poderá nos indicar a realidade? Sigamos a perseguir as respostas, a diligenciar nossos sentidos para apurá-los e fugir sempre que possível da alienação que cega, emburrece e desumaniza.

Referências

SANT´ANNA AFFONSO ROMANO DE. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro, Rocco, 2006.

Gisele Leite

Denise Heuseler

A revolução fantasiosa faz do sambista um príncipe aonde a nobreza vive na miséria e alienação. O samba ditando o ritmo, roupas e paixões numa euforia inexplicável e no aroma incessante de um lirismo popular regado a álcool, drogas e endorfinas...

O lado bom existe do carnaval, a inocência das antigas marchinhas , as fantasias que brincavam com o povo, e o fazia rir mesmo que fosse para rir da própria tristeza.

Mas, da onde vem tanta alegria? Tanta energia incontida. E, em quatro dias há o exaurimento dos sonhos, dos delírios e de amores tão instantâneos quanto nescafé...

E, dizem que o ano só começa mesmo no Brasil depois do carnaval...

Mas o carnaval é festa da carne, do pecado, dos excessos que esgotam e registram a história com ironias e paetês. Antigamente havia mais glamour, as belezas eram mais naturais, a dança, a música e tudo enfim eram mais brasileiros, mais autênticos. Agora, tudo virou um megashow pirotécnico e americanesco... bem longe da saga tupiniquim e da intensa miscigenação que temos em nosso povo.

Ademais, é impressionante que os negros queiram mais se parecerem com os negros norte-americanos do que com seus próprios ascendentes africanos muitas vezes nobres e mais dignos do que os ianques.

O carnaval é uma festa multi-racial, e ao mesmo tempo, é  quando senzala que toma de assalto a casa grande, que seduz o senhor de engenho, o capataz, o português enfim, o colonizador. Que esquece o “vira” e ensaia uns passos requebrados cheios de cintura, manejos e adornos.

Mas, donde brota tanta alegria de um povo esquecido, oprimido e pobre? De um povo onde as crianças não conseguem ler corretamente, escrever com clareza e, enfim, conhecer intimamente a velha e boa aritmética? Aonde a velhice é relegada aos parcos privilégios ou asilos infectos e homicidas.

Donde flui tanta euforia em desfile pelos sambódromos? E, a porta-bandeira e o mestre-sala? E, a rainha, princesa, duquesa ou condessa da bateria?

Suas curvas poderosas encharcadas de adrenalina expostas num corpo sem alma, sem dor, sem dó nem piedade diante realidade crua, fria e feia exposta todos dias na janela da vida.

Carnaval deve ser motivo de comemoração, além de toda a simbologia, é espontâneo, e seu lado financeiro também deve ser considerado.

Movimenta uma quantidade incalculável de recursos em todas as áreas, indústria, bares, restaurantes,  hotéis, num verdadeiro encantamento, além de chegar bem na época mais quente do ano. O que por si só, favorece a amostragem de algumas partes admiráveis do corpo humano.

Há uma extraordinária valorização, não só dos atributos do corpo, mas também do artesão e do artesanato local, até mesmo a ala das baianas a mais tradicional de todas, esquecida por boa parte do ano, ressurge qual phênix com seu esplendor magnífico para sumir novamente na poeira da quarta-feira de cinzas.

Carnaval, são quatro dias de inteira e intensa folia, com exceção de alguns lugares, onde temos folia o ano inteiro, até os que não gostam de sambar ou pular, se revestem de grande animação e saem atrás trio elétrico. É, inegavelmente contagiante. E quem não se recorda do gringo com os dois dedinhos em riste tentando alcançar o ritmo. É mesmo hilário.

Ao cair na folia, há uma democracia racial, todos estão na mesma forma, quer sejam brancos, índios, orientais, negros, todos reunidos significam uma “nova raça’’ que surge durante os quatro dias, a raça dos foliões.

Não podemos esquecer daqueles animados homens e mulheres que não se abatem, não se entregam ao cansaço e, mesmo precisando empurrar, com uma força descomunal, o carro alegórico na avenida, tendo que conduzir sem acidentes e sem perder o ritmo, e ainda conseguem tirar uns ensaios de samba no pé na avenida da alegria, sem atravessar o samba.

Os bastidores das escolas de samba devem mesmo receber honrosas homenagens... e nem sempre são foco da mídia nacional.

Até hoje ainda não sabemos quantos idiomas existem no mundo, ibo, yorùbá, kimbundo, kikongo, harari , zulu, inglês, francês, hebraico, grego, os idiomas germânicos, hindi e persa, tupi, guarani, mas, durante o carnaval a nova raça que se forma esquadrinha em sintonia um só idioma, movido ao ritmo inebriante do samba e sob o brilho de paetês e lantejoulas.

Inaugura-se um a nova linguagem repleta de metáforas e lirismos. Aliás, uma curiosidade: a África é o continente que maior número de dialetos possui no mundo...  daí ser tão rica em expressão e manifestações populares.

O carnaval carioca, não dura só quatro dias, é que durante o ano todo movimenta os barracões e os foliões, sua festa é curta, diante de um ano inteiro de dedicação, é nessa festa composta da alegria e o empenho onde as costureiras viram princesas, que os soldadores e operários viram reis ou príncipes, tudo isso, dentro das abóboras, castelos e varinhas mágicas que eles constroem com suas próprias mãos. É um show de criatividade.

Viva o carnaval! Não é perfeito, ainda temos tragédias, acidentes, homicídios, entre outros delitos, menores ou piores, mas é o melhor que o ser humano pode fazer! E vale mencionar: - Salve, salve todas as velhas guardas ! ( a da Portela, a da Mangueira, a do Salgueiro, do Império Serrano, da Imperatriz, da Viradouro, da Carpichoso de Pilares.) Mas, se eu esqueci de alguma me perdoem...sintam-se igualmente homenageados!

Salvem o carnaval! Tradição que precisa manter-se viva, para a sobrevivência de todos que precisam dele. Todo aquele que gosta, continue a gostar, nem precisam fazer esforço, dizem que está no sangue e na alma!

Aqui, todos são iguais durante o carnaval, a festa é para todos, o pobre, o rico, o bom, o mau, imperador da isonomia!

Brasil, país de enorme diversidade( tanto humana como natural), torna-se mais colorido e alegre nesta época do ano e, ainda consegue contagiar outros povos, outros idiomas para criar a nova raça “o folião”. É a única época do ano em que o rei é gordo e não é out fashion. Ninguém no mundo tem o carisma e a alegria do povo brasileiro!

Continua o carnaval a ser um grande enigma. De onde vem tão intensa alegria? Onde ritmicamente os símbolos, os signos e os sentidos bailam tontos ao redor da grande manifestação popular.

Fernando Machado da Silva Lima*


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