quarta-feira, 31 de julho de 2024

Prof. Dr. Fernando Capovilla comenta sobre iniciativas para maior acesso a Libras no Brasil


Autor de mais de 60 livros e 400 trabalhos científicos, o Prof. Dr. Fernando Capovilla tem um extenso currículo que o credencia como um dos principais especialistas na área de desenvolvimento e distúrbios de comunicação e linguagem oral, escrita, e de sinais.

Capovilla é professor Titular da Universidade de São Paulo, presidente da Comissão de Alfabetização do Conselho Nacional de Educação, livre Docente em Neuropsicologia clínica (USP, 2001), PhD em Psicologia (Temple University of Philadelphia, 1984), Mestre em Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento (Universidade de Brasília, 1984) e já orientou 50 mestrados e doutorados (Nível 7 da Capes).

Foto: Reprodução da internet

Na entrevista a seguir, o professor recorda os trabalhos pioneiros que realizou a respeito da Língua de Sinais Brasileira (Libras), como estes influenciaram em legislações nacionais em favor das pessoas com surdez ou com deficiência auditiva no Brasil, relembra o processo de avaliação com 9.800 alunos surdos no País e comenta sobre seu trabalho com leitura labial em Português. Capovilla ressalta, ainda, sobre o histórico da comunicação por sinais no Cristianismo.  

O SÃO PAULO – Em 10 de novembro é comemorado o Dia Nacional de Prevenção e combate à surdez. Na avaliação do senhor, além de ser uma data para se alertar sobre hábitos que podem ser danosos à audição, este é um dia que deve envolver quais reflexões a respeito da condição das pessoas surdas no Brasil?

Fernando Cesar Capovilla – O Brasil tem atualmente uma população de 10 milhões de pessoas com surdez ou com deficiência auditiva. Apesar disso, foi apenas em 2001 que o primeiro dicionário da Língua de Sinais Brasileira (Libras) foi publicado. Até então apenas as igrejas mantinham viva a Libras como meio de educação e instrução e cultos e celebrações, nas missas e nos cultos e reuniões em Libras, e no ensino escolar em Libras. No que diz respeito aos sinais e à educação de surdos, as igrejas sempre estiveram à frente de seu tempo. Mas no tempo certo, que é o tempo de Deus. Nas universidades tudo demorou muito mais. A publicação de nosso DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA (LIBRAS) (Capovilla & Raphael, 2001) pela Editora da USP (finalista do Prêmio Jabuti, 2002) deu substância à Libras, permitindo a Lei nº 10.436/2002, que reconhece Libras como veículo de comunicação da população surda brasileira, na gestão Fernando Henrique Cardoso; e, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva, o Decreto 5.626, de 2005, que prevê a inserção da Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de fonoaudiologia.  Na gestão Lula, nosso dicionário foi distribuído a todas as escolas brasileiras onde estivesse matriculado pelo menos um aluno surdo. Além disso, publicamos 8 volumes de enciclopédia (ENCICLOPÉDIA DA LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA) com cerca de 8 mil páginas para permitir verter o currículo escolar para alunos surdos desde o início do Ensino Fundamental até o Ensino Superior. Publicamos dois outros dicionários, o NOVO DEIT LIBRAS, e o DICIONÁRIO DA LÍNGUA DE SINAIS DO BRASIL: A LIBRAS EM SUAS MÃOS, que ganhou o prêmio de 1º lugar da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Prêmio ABEU 2018). Todo esse trabalho foi importante para permitir, na gestão Dilma Rousseff, leis como a 13.005 de 25 de junho de 2014 que garante a oferta de educação bilíngue, em Língua de Sinais Brasileira (Libras) como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos alunos surdos de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Possibilitou, por fim, na gestão Jair Messias Bolsonaro, a Lei nº 14.191 de 3 de agosto de 2021 (derivada do  PL proposto pelo Senador Flávio Arns), que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Também temos auxiliado nas políticas em defesa da Libras e da educação bilíngue de surdos no Conselho Nacional da Educação.

Dito isso, aproveitamos para dizer que o “Dia Nacional de Prevenção e Combate à Surdez” deveria ser renomeado para “Dia Nacional de Prevenção à Perda Auditiva Adquirida e Congênita por Fatores Pré-Natais”. Isso porque a Surdez é um fenômeno de dois lados: (1) o lado médico, da deficiência auditiva a ser prevenida e mitigada (e é neste sentido que se inspira a campanha); e (2) o lado linguístico e cultural, o da língua de sinais e cultura surda (teatro em sinais, filme sinalizado, por exemplo). Esse lado cultural e linguístico jamais deve ser prevenido ou combatido, mas apoiado e fomentado, claro. Pois é cultura nativa essencial à educação da maior parte da população escolar surda brasileira. Como é claro que o nome da data comemorativa é feito no espírito louvável e humanitário de prevenção e combate à deficiência auditiva, sugeri ao deputado Diego Garcia, que é sensível aos temas da educação e da surdez, que propusesse ao Ministro da Saúde a mudança do nome do que se comemora no dia 10 de novembro para “Dia Nacional de Prevenção à Perda Auditiva Adquirida e Congênita por Fatores Pré-Natais”, deixando, assim, de lado o termo “Surdez” que, em inicial maiúscula, tem os dois sentidos, em especial o da coletividade de pessoas surdas com sua língua e cultura. O deputado prontamente atendeu à nossa solicitação e encaminhou o referido requerimento ao senhor ministro da Saúde, que deverá examiná-lo nos próximos dias.

Conte-nos sobre seu trabalho com língua de sinais e sobre a importância da Libras

Libras é a língua da população surda brasileira, aquela com que os surdos se comunicam, pensam, oram, sonham. Avaliando pessoalmente o histórico de 9.800 crianças surdas brasileiras, descobrimos que 95% delas nasceram em famílias de ouvintes que desconhecem Libras. Temos feito esforços para fomentar políticas públicas que determinem a criação de escolas de educação infantil sinalizadoras, que acolham as crianças surdas desde o teste da orelhinha e ensinem a auxiliar os pais e familiares a se comunicar com essas crianças surdas no cotidiano do lar. Isso é essencial para o bom desenvolvimento linguístico, cognitivo, emocional, bem como da personalidade e do comportamento social da criança surda. É também importante à felicidade e coesão da família de surdos. Durante 15 anos, avaliamos 9.800 alunos surdos de todo o Brasil, e descobrimos que quanto mais cedo essas crianças têm acesso a Libras, maior tende a ser seu desenvolvimento da linguagem. A criança que tem Libras como Língua Materna pode fazer uso dela para aprender a ler e escrever Português. Quanto maior a competência linguística em Libras, mais facilmente a criança poderá aprender o significado das palavras, de modo a poder ler com compreensão e escrever com significado. Nosso trabalho mostra que a criança surda aprende mais e melhor em escolas bilíngues, em que Libras é usada como veículo de educação e instrução, que nas demais escolas. Por isso, nosso trabalho foi usado como base para subsidiar a criação, na gestão Dilma Rousseff, das Escolas Bilíngues de Educação de Surdos, nas quais Libras é usada como veículo de educação e instrução para aprender Português escrito, e para favorecer a compreensão de todo o conteúdo curricular. Dada a importância de Libras, nos últimos 32 anos temos trabalhado intensamente na área, desenvolvendo pesquisas e publicações devidamente chanceladas pela Coordenação de Cursos de Libras da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos. Nessas três décadas, publicamos três grandes dicionários da Libras premiados nacional e internacionalmente com um total de 7 volumes (cerca de 7 mil páginas), além de uma grande enciclopédia de 8 volumes (com cerca de 8 mil páginas), e de softwares para tradução de sinais entre Libras e Português, dentre muitas outras coisas.

O evangelho de Marcos (7,32-35) descreve o episódio em que Jesus age na vida de um homem surdo e este passa a escutar. Esta passagem bíblica e outras indicam que o ideal da inclusão é parte do Cristianismo. De algum modo a práxis cristã lhe inspirou na escolha dessa atividade profissional e acadêmica que tornou o senhor tão consagrado?

Em Romanos 10,17 Paulo nos diz que “a fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo”. Mas o modo como a palavra de Cristo é recebida não tem a menor importância. O que importa é que seja a palavra dele, como registrada nas Escrituras. A fé vem por receber a mensagem contida nas palavras de Cristo. Essa mensagem pode ser lida diretamente das Escrituras, que é quando ouvimos mentalmente a voz interior proferindo aquelas palavras. Isso evoca a fé. A mensagem pode ser transmitida pela fala de um padre no altar ou de um leitor no púlpito, e recebida por audição ou pela visão pela igreja ou congregação. De fato, a palavra falada do padre ou leigo leitor ao proferir as palavras de Cristo contidas nas Escrituras pode ser recebida por surdos videntes que fazem a leitura orofacial visual dessa fala. Isso evoca a fé.

A palavra falada do padre ou leigo leitor ao proferir as palavras de Cristo contidas nas Escrituras pode, além disso, ser recebida por surdocegos que fazem a leitura orofacial tátil dessa fala, exatamente do mesmo modo que a surdocega Helen Keller fazia e milhões de surdocegos fazem hoje no mundo todo. Isso, certamente, evoca a fé. Nosso Senhor fala a todos, os alfabetizados e os analfabetos, os surdos e os ouvintes, os cegos e os videntes, e os surdocegos. Assim é o nosso Deus, que nos mandou pregar as boas novas a todos os povos e a todas as nações para que todos tenham acesso à salvação.

Em Marcos 16,15, Nosso Senhor nos exorta: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura.” E em Marcos 13,10, Nosso Senhor diz que “importa que o Evangelho seja primeiramente pregado entre todas as nações.” Fica claro que essa pregação deve se dar na língua de cada um desses povos, como bem sabia Padre Anchieta, que cruzou o Atlântico e subiu a Serra do Mar de batina e agarrado às touceiras, tudo para aprender a língua Tupi dos indígenas, de modo a poder ensiná-los e alfabetizá-los em sua própria língua. De fato, nem todas as criaturas podem ler, nem todas podem ouvir. Há povos e culturas em que a língua falada não existe. Em vez dela, existe língua de sinais. Então, a fé vem do receber sinais. Por isso, desde sempre, o Evangelho nas missas e nos cultos vêm sendo ministrado em sinais. Mas como nem todos os surdos enxergam, a mensagem do Evangelho durante missas e cultos e pregações é ministrada em sinais táteis que são recebidos por surdocegos. Isso é certamente agradável ao Nosso Senhor. Não surpreendentemente a educação de surdos nasceu em mosteiros jeronimistas espanhóis que tinham quase um milhar de sinais monásticos para manter o silêncio beneditino.

O senhor e sua equipe avaliaram 9.800 alunos surdos de 7 a 40 anos de idade em todos os estados brasileiros, durante 20 horas por aluno. Essa pesquisa envolveu 15 anos de trabalho. Quais são as coisas mais importantes descobertas nesse trabalho? Como é possível usar as descobertas para ajudar na educação de crianças surdas no Brasil?

Descobrimos muitas coisas de imenso valor. Por exemplo:

(1) 95% dos surdos nascem em lares de ouvintes que desconhecem Libras, e se essas crianças não tiverem acesso a Libras na Educação Infantil, de nada adianta colocar intérpretes para elas quando forem matriculadas no Ensino Fundamental comum inclusivo;

(2) Quanto mais cedo a criança tem acesso a Libras, melhor se dá seu desenvolvimento, melhor a leitura com compreensão e a escrita com significado, e a idade ideal para ser imerso em comunidade linguística sinalizadora é de 12 a 18 meses, a idade aceitável é entre 1,5 a 3 anos de idade, a idade tolerável é entre 4 e 5 anos;

(3) Crianças surdas aprendem mais e melhor em escolas bilíngues para surdos do que em escolas comuns, mesmo com intérprete;

(4) Crianças com deficiência auditiva aproveitam o ensino nas escolas comum significativamente mais que as crianças surdas; para estas o ideal é uma escola bilíngue integral.

(5) Ao longo do Ciclo 1 (6 a 10 anos de idade) se observa que a criança surda precisará de Libras como principal veículo de Educação e Instrução. Mas à medida que os anos progridem, a carga do Português lido e escrito vai aumentando progressivamente. A criança que tem boa base em Libras pode se beneficiar de ter carga horária em Português cada vez maior, de modo que a partir do Ciclo 2 do Ensino Fundamental, Libras passa a ser usada mais como apoio.

Conte-nos sobre seu trabalho com leitura labial do Português. Como esse trabalho ajuda na educação, alfabetização, e inclusão das crianças?

Mapeamos todos os sons (fonemas) do Português, do mais comum ao mais raro. Mapeamos todas as formas de escrever (grafemas) cada um desses fonemas, da forma mais comum à mais rara. Descobrimos que, na leitura em voz alta, o leitor tende a pronunciar sempre os sons mais comuns para cada segmento das palavras (grafema). Quando as palavras escritas são comuns, há menos erros. Mas quando as palavras são muito raras, então a raridade da pronúncia de um dado segmento da palavra quase sempre provocará um erro de pronúncia. E nesse erro o leitor quase sempre pronunciará um som mais comum quando deveria ter pronunciado um mais raro. Por exemplo, como a pronúncia da letra “x” mais comum é aquela de “bexiga”, e a menos comum é aquela de “exército”, quando a criança em alfabetização tem de ler em voz alta a palavra “êxodo”, ela tende a pronunciar o “x” em “êxodo” do mesmo modo que ela pronunciaria o “x” em “bexiga”. Do mesmo modo, descobrimos que, na escrita sob ditado ouvido, o leitor tende a grafar os sons dos modos mais comuns (isto é, com os grafemas mais comuns para aqueles fonemas). Quando as palavras ouvidas e escritas são comuns, há menos erros. Mas quando as palavras ouvidas são muito raras, então será preciso escrever de ouvido. E nesse caso a raridade da escrita  de um dado segmento da palavra falada quase sempre provocará um erro de grafia. E nesse erro o escritor quase sempre grafará um som do modo mais comum quando deveria grafar de um modo mais raro. Por exemplo, como o som /z/ escrito com “x” é mais raro que o som /z/ escrito com “z”, a criança em alfabetização tende a escrever a palavra “exército” com a letra “z” em vez de com a letra “x”. Descobrimos um modo de prever e de evitar todos os erros de leitura e de escrita de palavras raras do Português. Fizemos o mesmo trabalho com o surdo vidente. Mapeamos todas as formas de boca na fala que ele vê na face das pessoas à sua volta. Descobrimos o grau de legibilidade orofacial visual de qualquer palavra do Português por parte de ouvintes. E como escrever cada forma de boca. Descobrimos um modo de prever e de evitar todos os erros de leitura e de escrita de palavras do Português por parte de surdos videntes. Isso é ciência rigorosa, útil, humanitária. E plenamente alinhada com os dois principais mandamentos que Nosso Senhor nos legou em Mateus 22: 37 e 39: (37) “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento”. (39) “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

(Entrevista concedida ao jornalista Daniel Gomes/ O SÃO PAULO)



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