ÉTICA E TRABALHO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Lílian do Valle*
Apesar de todas as tentativas em sentido contrário, realizadas sobretudo a partir da Modernidade, é impossível negar que toda reflexão sobre as relações entre ética e trabalho se assenta, a rigor, sob um paradoxo, estabelecido pela estrita separação entre esses dois domínios. Em virtude dessa necessária, porém abrupta entrada na matéria, temo no entanto que a incompreensão inicial, longe de despertar a curiosidade, suscite no leitor a desconfiança e o desinteresse, senão pela filosofia, ao menos pelo texto que, no encerramento desta coletânea, ela inspira. Assim sendo, devo prevenir-me e, para fazê-lo, vou permitir-me um desvio pelo território tão eminentemente filosófico das definições, antes de dar a vislumbrar o cenário contemporâneo em que, enfim, as relações entre ética e trabalho deverão ser examinadas.
Tomemos, pois, esse desvio, não para retardar a discussão, mas para evitar que ela incida sobre o campo da moral – da discussão, normativa ou simplesmente interrogativa, sobre os bons costumes, sobre o código de conduta, sobre o comportamento julgado adequado em ambiente de trabalho.
Seja, pois, por um lado, a ética, como reflexão sobre os princípios – ou, o que vem a dar exatamente no mesmo, sobre os fins últimos, sobre as finalidades do agir humano, sobre o próprio sentido da existência individual e coletiva; seja ainda, por outro lado, o trabalho, como atividade que é meio para produção de alguma coisa, que está relacionada a um fazer eficaz, a uma ação apropriada e conforme a fins que são exteriores à atividade.
Apresentada como reflexão, a ética diz respeito à decisão, que incumbe a cada indivíduo e a cada sociedade, de julgar, escolher e instituir em sua própria existência os princípios, os valores que deverão guiar suas relações com o mundo, com as coisas, com os outros homens, submetendo-os a permanente questionamento. As decisões relativas ao trabalho dependem, quanto a elas, do que se poderia chamar, numa acepção bastante ampla, de técnica: escolha dos saberes a serem convocados, dos instrumentos, dos procedimentos, das ações a serem empregados na consecução do resultado final. Será forçoso constatar que assim definidos os dois termos, não existe uma ética do trabalho, embora possam (e devam!) existir formas éticas de se investir a atividade do trabalho. Mas, nesse caso, essas formas deverão estar continuamente submetidas ao exercício da auto-reflexão e do questionamento constante.
É com tal atitude que o presente artigo se propõe a contribuir.
O trabalho como significação imaginária social
Muito embora sob o termo genérico de «humanidade» possamos reconhecer uma série de características biológicas, funcionais, psíquicas, comuns a todos os humanos, é sempre de maneiras muito diferentes que essas determinações são incorporadas, trabalhadas e retrabalhadas pelas diversas culturas e momentos históricos, sob a forma de costumes, de representações, de formas de encarar o mundo, de definir sua existência e, no caso que nos interessa aqui, de organizar e valorar as atividades humanas. Assim, cada sociedade, cada época, institui aquilo que C. Castoriadis denominava seus «tipos antropológicos» próprios. O modo de ser e de agir dos antigos babilônios não é o mesmo dos revolucionários franceses de fins do século XVIII; as formas de trabalhar, de raciocinar, de sentir, de desejar, de fazer planos, de se afetar, de temer de um tupi-guarani, há quinhentos anos, em nada se assemelhava àquelas do português navegador, ou dos brasileiros e brasileiras atuais.
Encarnando-se em «tipos antropológicos» específicos, os indivíduos formados e socializados em e por uma sociedade específica, dão existência e realidade às significações que cada sociedade institui para si, que a fazem ser como tal sociedade, e não uma outra:
Toda sociedade cria seu próprio mundo, criando, precisamente, as significações que lhe são específicas… O papel dessas significações imaginárias sociais, sua «função» – para empregar o termo sem qualquer conotação funcionalista – é tripla. São elas que estruturam as representações do mundo em geral, sem as quais não pode existir ser humano. Essas estruturas são, a cada vez, específicas: nosso mundo não é o mundo grego antigo, e as árvores que vemos por estas janelas não abrigam, cada uma delas, uma ninfa, é simplesmente madeira, é esta a construção do mundo moderno. Em segundo lugar, elas designam as finalidades da ação, elas impõem o que deve ser feito, ou não deve ser feito: deve-se adorar a Deus, ou então é deve-se acumular as forças produtivas – ainda que nenhuma lei natural ou biológica, nem mesmo psíquica, diga que se deve adorar Deus ou acumular as forças produtivas. E, em terceiro lugar – ponto, sem dúvida, mais difícil de abordar – elas estabelecem os tipos de afetos característicos de uma sociedade. (…) Mas, entre as significações instituídas por cada sociedade, a mais importante é, sem dúvida, a que concerne à própria sociedade.[1]
São precisamente essas significações imaginárias sociais que fornecem, de maneira mais ou menos explícita, e de acordo com o grau de autonomia da sociedade, sentido para as atividades humanas. Ora, a reflexão ética começa, exatamente, quando os sentidos para a existência que nos são fornecidos pela sociedade passam a ser objeto de nosso questionamento consciente e contínuo. Por isso, a relação que buscamos, entre ética e trabalho, nos impõe o questionamento dos sentidos que são associados a essa atividade e da centralidade que lhe foi concedida por toda a sociedade ocidental contemporânea.
Centralidade do trabalho industrial
Foi apenas há relativamente pouco tempo, na história, que aquilo que denominamos de trabalho foi erigido à condição de valor central da existência. É claro que as diferentes sociedades sempre tiveram que lidar com as necessidades relativas à sua sobrevivência, que foram a cada vez instituídas, organizadas e orientadas de acordo com cada cultura específica; é claro também que nenhuma sociedade sobreviveria se não fosse capaz de atribuir significado às atividades que visavam a garantir, exatamente, sua continuidade. Assim, era à própria vida, considerada valor máximo, que o trabalho devia seu reduzido sentido. No entanto, de modo geral, a idéia de que se pudesse passar toda a vida a trabalhar foi a maior parte do tempo encarada com perplexidade: punição dos deuses ou condição dos povos vencidos, reduzidos à escravidão, a consagração integral ao trabalho, longe de conferir dignidade, marcava a fatalidade e o opróbrio que sobre alguns recaía.
Essa é, pois, a grande novidade introduzida pela Modernidade: que o trabalho – e, muito particularmente, o trabalho industrial, tenha se estabelecido como referência absoluta para todas as atividades da vida.
Conhecemos bem as condições objetivas que serviram de base para essa profunda transformação radical: acúmulo de riquezas sob a forma de capital financeiro, rápido avanço da ciência e de suas aplicações tecnológicas, incessante invenção de máquinas e procedimentos destinados à atividade industrial. E conhecemos, também, suas condições históricas e culturais: declínio das formas tradicionais de organização política e social, emergência de nova atitude de confiança indiscriminada na razão humana e suas possibilidades, instituição do projeto de «domínio absoluto da natureza» e de um verdadeiro fascínio pela idéia de «progresso».
Em poucos séculos, o trabalho passou do lugar de desconfiança e desprezo a que foi relegado tradicionalmente para o topo da hierarquia das atividades humanas: entre os séculos XVII e XIX ele se transformou, de fonte de toda propriedade legítima (Locke), em condição da própria humanidade e expressão máxima do homem (Marx). E, em que pesem as recusas que enfrentou, as terríveis polêmicas, as infinitas análises e as tantas vezes sangrentas ações que suscitou, em sua campanha vitoriosa, o trabalho moderno foi, até meados do século XX, não apenas uma realidade inexorável, mas igualmente objeto de uma verdadeira «glorificação teórica»[2].
Isso não significa que não se tenha percebido desde logo que o preço a ser pago por essa ascensão do trabalho era extremamente caro: mas não pareciam restar dúvidas, nem para os teóricos, nem para os «homens de ação», de que a empreitada não só valia a pena como era digna da imensa confiança que nela se depositava. Assim, ainda que as primeiras críticas ao trabalho moderno coincidam com sua instauração, elas não chegam a abalar a crença de que a mudança era um caminho sem volta, uma exigência histórica que se fazia, a partir dali, verdadeiro princípio e condição da emancipação dos indivíduos e da felicidade social.
E, por toda parte onde se espraiou, o trabalho moderno modificou definitivamente os hábitos e as mentalidades, modelando as antigas culturas às suas novas exigências: urbanização, aparelhamento burocrático, «racionalização» dos comportamentos e vínculos. Na tarefa, demonstrou um vigor historicamente inaudito de propagação e, também sob esse aspecto, proclamou-se o advento de uma nova temporalidade, a partir da qual se pôde conceber o destino da espécie e avaliar os méritos de cada sociedade. Redesenhadas, as fronteiras de poder reafirmam a divisão do mundo em áreas desenvolvidas, e áreas que passarão a buscar, permanentemente, o desenvolvimento; em povos e nações que podiam desfrutar imediatamente das benesses da nova era, da nova humanidade, e aqueles que deviam dedicar muito afinco e muito esforço até que pudessem ver realizadas as promessas de inclusão no paraíso moderno.
As últimas décadas do século XX precipitaram, porém, de forma ainda mais brusca todo o edifício construído pela modernidade. Crises de diversas ordens – financeiras, ocupacionais, infra-estruturais – obrigaram ao reconhecimento da fragilidade das bases sobre as quais o projeto de organização social dos modernos fora construído. Até então, a ascensão do trabalho se fez passar, sob certos aspectos, por uma verdadeira conquista do éden: vitória definitiva sobre o tempo cíclico da natureza, pela aquisição do tempo progressivo da produção, todo feito de superação; triunfo, até mesmo, sobre o tempo linear em que se realiza a existência humana, sempre submetido à inexorável lei segundo a qual «tudo que floresce conhece também o declínio»[3], já que o desenvolvimento indefinido da ciência e da técnica tornou-se simplesmente o paradigma a partir do qual se imaginava um tempo fora daquilo que faz, precisamente, existir para nós a noção do tempo: os limites.
A realidade revelou-se, porém, outra: longe de promover um sempre crescente e ampliado bem-estar, o modelo de organização social correspondente ao trabalho moderno só fez acentuar as desigualdades e exclusões, tanto entre os países, como no interior de praticamente todos os países do mundo[4]. Assentado sob a ilusão de uma exploração ilimitada da natureza, o modelo civilizatório que produziu a ascensão do trabalho conduziu à rápida devastação das reservas de matérias primas e de energia necessárias à produção – e não é um detalhe que, ao fazê-lo, colocou em risco as próprias condições de vida no planeta.
O pressuposto fundante, historicamente presente na maior parte das correntes de pensamento econômico, foi o de que é possível a análise do processo de criação da riqueza por meio da abstração da natureza, limitando a visada da teoria aos aportes relativos do capital e do trabalho ou, mais recentemente, ao papel do conhecimento. A partir desse pressuposto se constrói o paradigma de crescimento sem limite, que foi hegemônico na cultura ocidental desde a consolidação da idéia de progresso. Todavia, como argumentou com lucidez Herman E. Daly, a economia é um subsistema aberto que opera no interior de um sistema mais amplo, fechado e com limites finitos que é o planeta Terra, com o qual estabelece relações de permanente intercâmbio. Por meio desses intercâmbios, o subsistema econômico obtém, como insumos, os recursos naturais e energéticos que está a requerer, enquanto descarrega sobre a natureza os resíduos e dejetos de sua atividade. Assim sendo, só é possível abstrair essas relações de intercâmbio na teoria e no cálculo econômico enquanto a dimensão ou escala desse subsistema econômico é pequena, em relação à dimensão do planeta – podendo-se, assim, para propósitos práticos, trabalhar com o pressuposto de uma natureza sem limites. Sem embargo, na medida em que o subsistema econômico cresce e se apropria de uma proporção crescente, tanto dos recursos como da capacidade de carga da Terra, já não é mais possível manter a ficção da economia como um sistema fechado e auto-suficiente. Atingido esse ponto, já não é mais possível ignorar os limites do crescimento.[5]
Tampouco era a capacidade de consumo social inesgotável, sobretudo em vista da lógica de concentração de renda, que levou o capital financeiro a autonomizar-se não somente em relação aos riscos permanentes a que está submetida a atividade produtiva, mas também em relação à forma de organização nacional que lhe era correlata. Assistiu-se, em conseqüência, a uma profunda retração do emprego, contra a qual os governos, apesar de toda a retórica economicista, nada puderam e que vem se revelando quase insuportável em países como o Brasil. Na década de 1950, H. Arendt advertira: «o último estágio de uma sociedade de operários…é a sociedade de detentores de emprego»; e, então, já não é a confiança no progresso, a crença nas promessas da razão, o desejo obscuro de colocar-se fora do tempo que sustentam a relação dos sujeitos com o trabalho, mas apenas o mero instinto de sobrevivência, a requerer «um funcionamento puramente automático» dos indivíduos[6].
Em suma: o trabalho industrial, que pôde se apresentar como figura e modelo não só do trabalho na modernidade, mas de todas as atividades humanas, dá hoje provas evidentes de seu total esgotamento – o que sem dúvida não quer dizer que sua influência não se faça mais sentir sobre a existência individual e coletiva. Antes pelo contrário: paradoxalmente, é ainda o trabalho industrial que serve de figura e de modelo a partir do qual se pensa o conceito mais amplo de trabalho em nossas sociedades.
O trabalho, a ação, o sentido
Marx definia o domínio do trabalho como o da objetivação humana: para ele, o trabalho cria o homem. Mais do que nunca antes, a afirmação é valida para os tempos modernos – e para a contemporaneidade, também. Mas, de forma mais geral, é igualmente verdadeiro que, pelo trabalho, o sujeito faz existir aquilo que não existia anteriormente, que não estava na natureza, que só existe em função da vida social: o mundo objetivo das coisas. H. Arendt afirmava que essa atividade de fabricação se distingue nitidamente das atividades visando a mera sobrevivência, que ela denominava labor, e que, a rigor, não produzem mais do que as condições objetivas de manutenção da vida. O labor guarda, assim, uma estreita associação com a dimensão natural, diríamos, fisiológica do humano. O trabalho, no entanto, cria a artificialidade da vida humana, ele é
a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana… O trabalho produz um mundo «artificial» das coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora este mundo se destine a sobreviver e transcender todas as vidas individuais. (…) O trabalho e o seu produto, o «artefato humano» emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.[7]
Em comparação à objetividade do produtos do trabalho, os «produtos» da atividade direta entre os homens – da atividade ação, que já não se realiza sobre a natureza ou com a matéria, mas com a linguagem, sobre si próprio e sobre os outros – aparecem como extremamente «fúteis», isso é, frágeis e intangíveis.
…a ação, o discurso e o pensamento… não «produzem» nem geram coisa alguma: são tão fúteis quanto a própria vida. Para que se tornem coisas mundanas, isso é, feitos, fatos, eventos e organizações de pensamento ou idéias, devem primeiro ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida transformados, «coisificados», por assim dizer, em ditos poéticos, na página escrita ou no livro impresso, em pintura ou escultura, em algum tipo de registro, documento ou monumento. Todo o mundo fatual dos negócios humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que lembrarão; e em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas.[8]
Tudo aquilo que, para o humano, é sentido, a começar por sua própria auto-representação, sua identidade, mas também o mundo de significações que o fazem existir, suas crenças, seus objetivos, seus valores, suas relações, depende de uma certa objetivação que é garantida, em primeiro lugar, pelo outro, pela comunidade em que o indivíduo se insere e com a qual compartilha, por via da socialização, esses sentidos; e, em seguida, pelas diferentes coisas que, constituindo o mundo objetivo dos humanos, sem esses sentidos seriam apenas «um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo»[9].
E é também obra dessa comunidade a construção da significação atribuída à própria materialidade de que a vida humana não pode se passar. Em outras palavras, se o trabalho é condição para emergência da realidade mundana, a criação de um mundo comum de significações é a condição de possibilidade para a construção, pelo sujeito, do sentido de sua existência individual, que sempre parte dos sentidos coletivos que essa sociedade põe a disposição de seus membros.
Os muros da cidade, os monumentos, as casas, os utensílios cotidianos e os objetos rituais, as obras de arte, os livros, tudo isso faz existir um mundo mais ou menos durável de coisas materiais, fornece tangibilidade à experiência humana no mundo. No entanto (e é bem por essa razão que grifei, duas citações acima, a palavra «certa») mesmo esse sentimento de permanência concedida à existência pela materialidade dos frutos do trabalho jamais puderam se comparar à imperecibilidade daquilo que Arendt denomina a ação – a atividade de constituição do espaço comum, a política, que cria a esfera pública, que é condição para a emergência da memória e da história que sobreviverão a nós.
Subsiste, pois, uma contínua tensão entre o movimento de criação dos sentidos da existência coletiva e individual e a necessidade de sua materialização, de sua realização como produtos objetivos do trabalho humano. Ora, dizer que o trabalho assumiu, a partir da Modernidade, uma crescente centralidade no seio da vida social implica dizer que essa tensão tendeu a ser rompida: que o «fazer coisas» prevaleceu sobre o «agir», que houve perda do sentido comum da existência, reduzida agora à materialidade dos produtos objetivos do trabalho. E, de fato, às incertas conquistas que a ação realizou, nos tempos modernos, correspondeu nos primeiros momentos a triunfante e inquestionável evidência dos avanços do fazer humano.
Foi só então que se acreditou que, ao invés de receber seu sentido da ação, o trabalho poderia, ele próprio, passar a fornecer sentido para a existência e a convivência humanas: não é outro o movimento de retração da esfera pública, ou de «racionalização» da sociedade que o liberalismo apregoa. O político é substituído pelo especialista, a frágil matéria das deliberações coletivas pela objetividade da lógica de mercado – tudo, enfim, parece poder ser dominado pelo fazer instrumental:
E, realmente, entre as principais características da era moderna, desde o seu início até o nosso tempo, encontramos as atitude típicas do homo faber: a «instrumentalização» do mundo, a confiança nas ferramentas e na produtividade do fazedor de objetos artificiais; a confiança no caráter global da categoria de meios e fins e a convicção de que qualquer assunto pode ser resolvido e qualquer motivação humana reduzida ao princípio da utilidade; (…) o equacionamento da inteligência com a engenhosidade, ou seja, o desprezo por qualquer pensamento que não possa ser considerado como o primeiro passo… para a fabricação de objetos artificiais, principalmente de instrumentos para fabricar outros instrumentos e permitir a infinita variedade de sua fabricação; e, finalmente, o modo natural de identificar a fabricação com a ação.[10]
Assim, o trabalho passa a ser o que há em comum entre os homens, a «produtividade» critério de todo o valor, o correlato objetivo, universalmente válido e inapelavelmente fiel a partir do qual todos os homens devem passar a ser medidos e hierarquizados, tanto em sua representação de si quanto em seu lugar na sociedade. Ocorre que o desaparecimento da esfera pública, que é correlativo à expansão desmesurada da atividade privada, resulta na própria fragilização do sentido da existência: pois é agora o modelo de uma produção de objetos cada vez mais efêmeros, prontos a serem consumidos e substituídos, que serve de base para a criação das referências e valores que estabelecem o mundo comum. Um mundo do qual a perenidade, a estabilidade foram inteiramente banidas.
Privatização, crise do sujeito, crise da ética
Não somente a esfera pública tendeu a desaparecer no mundo moderno, sob o impacto da «racionalização» da sociedade e do conjunto de atividades humanas; também as certezas, os valores, as instituições, as verdades, as referências culturais e históricas sobre as quais o mundo comum se apoiava passam a ser objeto de um radical questionamento. Relacionando-se cada vez mais com os outros na esfera do trabalho e quase que somente aí, o homem moderno descobriu-se só na tarefa de fornecer sentido e direção para sua existência.
Analisando os impasses da ética na sociedade atual, M. R. Kehl considera que o sujeito contemporâneo é, na verdade, um ser duplamente dividido: apartado dos outros, ele foi instituído como «indivíduo», ser solitário para quem já não contam as dimensões coletivas da existência humana. A ausência do outro priva o sujeito de «modos de pertinência, de produção de sentidos para a vida, de filiação, de amparo simbólico»[11], enfim, das referências que forneciam sustentação à sua constituição como sujeito social, à sua socialização. Mas é também da própria experiência de si, que tanto depende dos outros, que o sujeito contemporâneo se encontra privado: ele se desconhece, não entende mais o que determina seus próprios impulsos, tendências, não reconhece o seu desejo.
É essa a outra face da privatização: o aprisionamento do sujeito em uma subjetividade anônima – que não encontra nenhum correlato na cultura, na vivência social.
…ao final do processo assistimos à emergência de um sujeito que passa a desconhecer tanto suas determinações íntimas como o caráter coletivo, social, das forças que o atravessam. Para se acreditar independente, «individual» entre seus semelhantes, ele tem que ignorar (recalcar?) todas as evidências de sua dependência.[12]
O sujeito contemporâneo está só, com seus apetites e desejos: ao invés de um sentido mais perene e durável para sua existência, ele quer apenas a segurança e o conforto; ao invés de construir um projeto para sua vida, interessa-lhe usufruir ao máximo, evitar ao máximo toda dor e frustração.
Dessa forma, à crise «objetiva» do mundo que se ergueu sob as bases do trabalho moderno, soma-se a crise da subjetividade, a falência dos processos de identificação e dos modelos de socialização que faziam existir os indivíduos e serviam de referência para suas atividades. «Como pode o sistema, nessas condições, continuar a existir?» pergunta-se C. Castoriadis. Sua resposta é, no mínimo, embaraçosa:
Ele se mantém por que se beneficia ainda de modelos de identificação produzidos no passado: o matemático que acabo de mencionar, o juiz «íntegro», o burocrata legalista, o operário consciencioso, o pai responsável por seus filhos, o professor que, sem qualquer razão, ainda se interessa por seu trabalho. Mas nada no sistema tal como é justifica os «valores» que estes personagens encarnam, que eles investem e que se espera que persigam em sua atividade. Mas por que um juiz deveria ser íntegro? Por que um professor deveria se cansar com seus guris, ao invés de deixá-los passar o tempo, salvo em dia de visita do inspetor? Por que um operário deveria se matar tentando apertar o centésimo qüinquagésimo parafuso, se ele pode dar um jeitinho face ao controle de qualidade? Não há, nas significações capitalistas, desde o começo mas, sobretudo, em vista do que se tornaram atualmente, nada que possa fornecer uma resposta a esta questão.[13]
Eu comecei afirmando que os domínios da ética e do trabalho são separados: não há uma ética que derive espontaneamente do trabalho, não é da lógica do trabalho que se pode implicar uma ética capaz de fornecer sentido à existência. Ao insistir no contrário, a modernidade fez mais do que tornar a distância entre ética e trabalho ainda mais descomunal: ela levou a sociedade e os indivíduos por ela socializados a uma existência cada vez mais esvaziada, cada vez mais empobrecida. É isso que faz Castoriadis afirmar que a sociedade se mantém às custas da contraditória sobrevivência de valores e de sentidos do passado, às custas de «modelos de identificação produzidos no passado». Triste a sociedade que é forçada a se amparar nas ruínas daquilo que conscienciosamente destruiu, pois ela reserva a seus membros uma única e dolorosa alternativa: continuar se agarrando a valores que não mais se objetivam nas produções, instituições e comportamentos sociais – valores que carecem, pois, de qualquer visibilidade, que são continuamente desacreditados pela lógica social; ou, então, viver uma vida ancorada na efemeridade e na instabilidade dos «valores» disponíveis, na expectativa de um consumo e de uma fruição que não vêm para a maioria dos indivíduos, mas que condena a todos à frustração.
Mas, valeria a pena continuar buscando no trabalho um sentido que ele não pode fornecer? Parece-me que não! No entanto, isso não implica necessariamente – como tantos já pensaram – em adotar a atitude contrária, imaginando outro éden, este agora em que os homens estariam todos libertos do trabalho, do labor, da pena relativa à labuta diária. Em que condições poderá, então, a atividade do trabalho assegurar a necessária objetivação à existência humana, sem por isso cobrar dessa existência sua integral submissão ao que, por si só, carece de sentido?
Esse parece ser, a meu ver, o grande desafio da atualidade: a construção de sentidos mais duráveis, mas estáveis, mais generosos para a existência depende da reconstrução dos laços sociais, e esses, por sua vez, se tecem pela experiência de participação em uma obra comum. Ser-me-á objetado que essa afirmação nada tem de novo, que há muito os sociólogos do trabalho já «descobriram» – pelo menos desde meados do século passado – que a valorização das relações humanas, o cuidado com o outro, o estabelecimento de condições de trabalho satisfatórias eram essenciais para o desempenho do trabalhador. Mas, a rigor, esses sociólogos jamais puderam comprovar suas teses; muito ao contrário, face à crise do trabalho, que não previram, elas revelaram-se inteiramente infundadas. Ora, onde essa sociologia errou foi em acreditar que se poderia extrair da lógica do trabalho moderno um sentido de humanização que limitasse seus excessos, que suavizasse sua inflexível busca de lucro, que ponderasse sua irrefreável tendência a tudo reduzir ao critério da produtividade. Em outras palavras, errou em buscar justificar pelas próprias exigências do trabalho uma ética de humanização, em propor uma compatibilidade entre a ética e as exigências de eficácia e rendimento. Não nos preocupamos com a felicidade dos outros porque isso nos tornará mais eficazes e racionais, mas porque somos humanos, e escolhemos nos preocupar com os humanos; não investimos na auto-construção humana porque essa é uma exigência do desenvolvimento técnico e científico, pelos ganhos materiais que daí advirão, mas porque decidimos acreditar que o desenvolvimento técnico e científico, que os ganhos materiais não têm sentido em si, mas só valem a pena ser buscados se deles puder usufruir toda a sociedade.
Em suma, a ética que pode, hoje ainda, significar o trabalho depende de outra coisa, que não é o próprio trabalho, por si só: depende de uma decisão que, tomada solitariamente, é insuportável; depende da consciência de que o sentido da existência individual se ancora nos sentidos coletivamente construídos; depende da decisão de conceber a verdadeira finalidade da atividade humana no mundo como sendo muito mais do que a produção de bens materiais ou imaterais; como sendo, antes de mais nada, o da auto-criação, por parte de cada humano, de sentidos mais generosos para sua existência individual e coletiva. E como dessa auto-criação, o outro tem, necessariamente, que participar, penso que a ética depende, finalmente, da decisão de abandonar os móveis de fruição e gozo individuais pelo projeto de construção comum da sociedade em que habitaremos.
* Professora titular de Filosofia da Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana; autora, entre outros, de Escola Imaginária (Rio de Janeiro: DPA, 1997) e Enigmas da Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2002).
[1] C. Castoriadis, Encruzilhadas do labirinto IV – A ascensão da insignificância. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 148-149.
[2] Hannah Arendt, A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987, p. 12.
[3] Tucídides, A Guerra do Peloponeso, II, 64, 3.
[4] Cf. E. Lander, «Conhecimento para quê? conhecimento para quem? Reflexões acerca da geopolítica dos saberes hegemônicos», in Globalização excludente. Desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 74.
[5] Id., p. 78.
[6] Hannah Arendt, A Condição Humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987, p. 335.
[7] Id., p. 15-16.
[8] Id., p. 106-107.
[9] Id., p. 17.
[10] Id., p. 319.
[11] Maria Rita Kehl, Ética e psicanálise. Rio São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 53.
[12] M. R. Kehl, op. cit., p. 64.
[13] C. Castoriadis, op. cit., p. 156.
Fonte: http://www.uff.br/trabalhonecessario/Lilian%20do%20Valle%20TN3.htm
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