ISSN 1413-8557 versão impressa
Psicol. esc. educ. v.8 n.2 Campinas dez. 2004
Flavia Lopes1
Universidade São Francisco
O desenvolvimento da consciência fonológica e sua importância para o processo de alfabetização.
A consciência fonológica pode ser entendida como um conjunto de habilidades que vão desde a simples percepção global do tamanho da palavra e de semelhanças fonológicas entre as palavras até a segmentação e manipulação de sílabas e fonemas (Bryant &Bradley, 1985). Fazendo parte do processamento fonológico, que se refere às operações mentais de processamento de informação baseadas na estrutura fonológica da linguagem oral. Assim, a consciência fonológica refere-se tanto à consciência de que a fala pode ser segmentada quanto à habilidade de manipular tais segmentos, e se desenvolve gradualmente à medida que a criança vai tomando consciência do sistema sonoro da língua, ou seja, de palavras, sílabas e fonemas como unidades identificáveis (Capovilla &Capovilla, 2000b).
Enquanto a consciência de segmentos suprafonêmicos desenvolve-se de modo espontâneo, o desenvolvimento da consciência fonêmica necessita da introdução formal a um sistema de escrita alfabético (Morais, 1995). A precedência da consciência suprafonêmica em relação à consciência fonêmica é devida ao fato de que sílabas isoladas são manifestadas como unidades discretas da fala, o que não ocorre com os fonemas. Segundo Morais (1995), para a consciência de fonemas são necessárias instruções expressas sobre a estrutura da escrita alfabética, no intuito de familiarizar a criança com o mapeamento que esta escrita faz dos sons da fala. Vale ressaltar que as instruções para o desenvolvimento da habilidade de manipular os sons da fala, bem como as instruções para desenvolver a habilidade de converter esses sons em escrita e viceversa, devem ser realizadas de modo a tornar explícito à criança estas correspondências (Capovilla &Capovilla, 2003).
De acordo com Frith (1985), há três estratégias básicas para se lidar com a palavra escrita. A primeira é a logográfica. O uso desta estratégia implica no reconhecimento das palavras por meio de esquemas idiossincráticos. Desta forma, os aspectos críticos para a leitura podem não ser as letras, e sim dicas nãoalfabéticas. A segunda estratégia é a alfabética, e implica em analisar as palavras em seus componentes (letras e fonemas) e em utilizar, para codificação e decodificação, regras de correspondência grafofonêmicas. Finalmente, a estratégia ortográfica implica na construção de unidades de reconhecimento no nível alfabético. Com isso, partes das palavras podem ser reconhecidas diretamente, sem conversão fonológica. Assim, resumidamente, segundo Morton (1989), a leitura se dá de acordo com um modelo de duplo processo: o acesso ao som e ao significado pode ocorrer por meio de um processo direto ou por meio de um processo indireto, envolvendo mediação fonológica.
A rota fonológica, que se desenvolve com a estratégia alfabética, é essencial para a leitura e a escrita competentes, pois faz uso de um sistema gerativo que converte a ortografia em fonologia e vice-versa, o que permite à criança ler e escrever qualquer palavra nova, apesar de cometer erros em palavras irregulares (Alegria, Leybaert, &Mousty 1997). A geratividade, característica das ortografias alfabéticas, permite a autoaprendizagem pela criança, pois ao encontrar um novo item a criança poderá fazer leitura/escrita por (de)codificação fonológica. Esse processo contribuirá para a criação de uma representação ortográfica do item que posteriormente poderá ser lido pela rota lexical.
De acordo com o Relatório Francês “Aprender a Ler”, à medida que a criança inicia o processo de aprendizado da leitura por decodificação grafo-fonêmica e passa a encontrar as mesmas palavras escritas, aos poucos vai construindo um léxico mental ortográfico 1 Psicóloga; mestranda em Avaliação psicológica no programa de pós-graduação stricto sensu em Psicologia da Universidade São Francisco Sugestões Práticas 242 (Observatoire National de la Lecture, Centre National de Documentation Pédagogique, 2001).
A instrução direta da consciência fonológica, combinada à instrução da correspondência grafemofonêmica, acelera a aquisição da leitura. No Brasil já foram realizados estudos no intuito de desenvolver a consciência fonológica em crianças, demonstrando que, também na ortografia da língua portuguesa, a consciência fonológica é um pré-requisito para a aquisição de leitura e escrita (Capovilla &Capovilla, 1997; Capovilla, Capovilla &Silveira, 1998). Instruções de consciência fonológica e instruções fônicas mostraram-se eficazes em melhorar a leitura e escrita quando introduzidas em diferentes níveis escolares.
Segundo Capovilla &Capovilla (2003), diversos trabalhos têm relatado que esta habilidade se correlaciona com o sucesso na aquisição da linguagem escrita, de forma que a importância da consciência fonológica para o processo de aquisição da leitura e da escrita tem sido bem reconhecida. Desta forma, em diversos estudos já conduzidos no Brasil, foi adotado um procedimento para desenvolver a consciência fonológica e ensinar correspondências grafo-fonêmicas a escolares. Este foi aplicado em crianças de níveis socioeconômico médio e baixo e mostrou-se eficaz em aumentar o desempenho em consciência fonológica, leitura e escrita de crianças no início da alfabetização (Capovilla &Capovilla, 2000a).
Este procedimento para desenvolver consciência fonológica e ensinar correspondências grafo-fonêmicas abrange diversos níveis de consciência, desde a consciência de rimas e aliterações até a consciência de fonemas (Capovilla &Capovilla, 2000b).
O procedimento consta de 38 atividades, distribuídas da seguinte forma: 13 atividades de consciência de palavras, rima e aliteração; 10 atividades de consciência de sílabas; 5 atividades de consciência fonêmica; e 10 atividades de manipulação fonêmica. A partir da atividade 24, a criança é submetida ao treino das relações grafo-fonêmicas sem, contudo, precisar utilizar a escrita. Todo procedimento é realizado oralmente e os exercícios são feitos por meio das correspondências entre o som das palavras e figuras que as representam. Utiliza-se também de figuras geométricas com o objetivo de representar simbolicamente as figuras, palavras, sílabas e fonemas trabalhados.
Como exemplo de atividades propostas para esse treino em rima, propõe-se que a criança identifique palavras que terminem com o som pedido pelo aplicador, por exemplo: “Diga o nome de um animal que termine com to, ou diga o nome de uma fruta que termine com ana”. Nessa atividade é esperado que a criança demonstre, falando, que percebeu que as palavras terminam com o mesmo som. Em uma das atividades de aliteração, o aplicador começa contando uma história curta com aliterações, em seguida deve fazer um jogo em que pede às crianças que falem itens que comecem por um determinado som, por exemplo, palavras que começam com /a/; animais cujos nomes começam com /ma/, é necessário que possamos dizer à criança várias palavras com uma mesma sílaba, para que ela possa compreender a atividade, espera-se que a criança fale ao menos uma palavra que comece com o som solicitado. Como exemplo de atividade de consciência de palavras e segmentação de frases, o aplicador deve falar uma frase e depois a repete sem a última palavra, a criança deve dizer, então, a palavra que faltou, por exemplo, /Eu passeio de bicicleta. Eu passeio de ____/ . É preciso salientar que, apesar do comando da atividade ser a segmentação de frases, o aplicador não deve segmentar a frase, palavra por palavra. A frase deve ser enunciada por inteiro, sem interrupções, no intuito de evitar a desnaturalização da fala.
A consciência de sílabas é trabalhada, por exemplo, em uma atividade em que o aplicador e as crianças cantam músicas familiares batendo palmas a cada sílaba falada. A consciência de sílaba pode ser trabalhada também em atividades que apresentem a síntese silábica. Como exemplo pode-se usar um jogo com fantoches em que esses dizem palavras separando as sílabas, sendo que as crianças devem dizer a palavra inteira, unindo as sílabas faladas pelo fantoche.
A identidade fonêmica pode ser trabalhada em atividade na qual inicialmente, é proposto à criança trabalhar com histórias em que um fonema aparece repetidamente em várias palavras, mostrando-se a letra correspondente a esse fonema, sendo solicitado em seguida à criança que repita as palavras ditas pelo aplicador e logo depois que faça a identificação do fonema inicial de cada palavra.
Como exemplo de atividade de consciência fonêmica pode-se utilizar o teatro de fantoches, em que um deles é caracterizado como aquele que fala “palavras bobas”, ou seja, fala palavras trocando um fonema, por exemplo, em vez de /menino/, dizer /benino/. As crianças devem, então, assistir ao teatro de fantoches e interagir corrigindo as “palavras bobas”, dizendo as suas formas corretas. Sugestões Práticas 243 A atividade cobre tanto sons consonantais como vocálicos.
A consciência fonêmica pode também ser trabalhada com a síntese de fonemas em jogos nos quais o aplicador deve apresentar palavras ou pseudopalavras em que cada fonema é representado por uma forma geométrica. Adicionam-se, então, formas geométricas no início, fim e meio dos itens para formar diferentes palavras. O aplicador deverá apresentar os cartões para as crianças e informar que cada um dos cartões irá representar um fonema distinto. Essa atividade possui como principal objetivo mostrar que, pela modificação na arrumação dos fonemas nas palavras pode-se formar outras palavras distintas.
No procedimento deverá ser feita no máximo uma atividade por dia, sendo realizado também um treino do alfabeto em paralelo. É importante lembrar que sempre que trabalhar com pseudopalavras deve-se dizer à criança que se trata de palavras inventadas. O treino pode ser administrado individualmente ou em grupos em sessões no consultório por psicólogos ou pelos professores nas classes, sendo estes capacitados para tanto.
No intuito de verificar a eficácia do procedimento descrito foram Capovilla e Capovilla (2003) comparouse o desempenho de crianças na habilidade de consciência fonológica, na aquisição da leitura e escrita antes e depois de serem submetidas ao treino. As crianças que participaram das atividades de consciência fonológica e de correspondência grafo-fonêmicas apresentaram ganhos significativos, tanto em consciência fonológica quanto em leitura e escrita quando comparadas às do grupo controle. Isto confirma a importância e a necessidade de programas de ensino de leitura e escrita que incluam atividades de consciência fonológica.
Referências
Alegria, J., Leybaert, J. &Mousty, P. (1997) Aquisição da leitura e distúrbios associados: Avaliação, tratamento e teoria. In J. Grégoire &B. Piérart (eds), Avaliação dos problemas de leitura: Os novos modelos teóricos e suas implicações diagnósticas (pp. 105-124). Porto Alegre: Artes Médicas.
Bryant, P. E. &Bradley, L. (1985). Bryant and Bradley Reply. Nature, 313, 74.
Capovilla &Capovilla (1997). Treino de Consciência Fonológica e seu impacto em habilidades fonológica, de leitura e ditado de pré 3 a 2ª série. Ciência Cognitiva: Teoria, Pesquisa e Aplicação, 1(2), 461-532.
Capovilla, A. G. S. &Capovilla, F. C. (2000a). Efeitos do treino de consciência fonológica em crianças com baixo nível socioeconômico. Psicologia Reflexão e Critica 13 (1), 7-24.
Capovilla, A; Capovilla, F. (2000b) Problemas de Leitura e Escrita: como identificar, previnir e remediar, numa abordagem fonológica. São Paulo, SP: Memnon.
Capovilla A. G. S. &Capovilla, F. C. (2003) Alfabetização: Método fônico. São Paulo, SP: Memnon.
Capovilla, Capovilla &Silveira (1998). O desenvolvimento da Consciência Fonológica, correlações com leitura e escrita e tabelas de estandardização. Ciência Cognitiva: Teoria, Pesquisa e Aplicação, 2(3), 113-160.
Frith (1985). Beneath the surface of developmental dyslexia. In K. Patterson, J. Marshall &M. Coltheart (Eds.) Surface dyslexia: Neuropsychological and cognitive studies of phonological reading. London, UK: Erlbaum.
Morais, J. (1995). A arte de ler. São Paulo, SP: Editora Unesp.
Morton, (1989). An information-processing account of reading acquisition. In A M. Galaburda (Ed.), From reading to neurons (43-68). Cambridge, MA: MIT Press.
Observatoire National de la Lectura (2001) Apprendre à lire. Centre National de Documentation Pédagogique, Editions Odile Jacob. [On line] Acessado em maio/2004. .Disponível em
http://www.inrp.fr/onl/ressources/publi/ regard_tot.htm .
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