Você já se perguntou o que realmente motiva o ódio generalizado, os linchamentos ou até mesmo muitas manifestações políticas? Neste texto falaremos um pouco sobre os conceitos fundamentais da Teoria Mimética concebida por René Girard. Com ela, talvez você encontre alguma resposta para essas e muitas outras perguntas semelhantes.
Nascido em Avignon no dia 25 de dezembro de 1923, René Girard foi um historiador, antropólogo e crítico literário francês, conhecido por ter sistematizado o que chamou de Teoria Mimética.
Em meio a suas pesquisas sobre as obras de autores como William Shakespeare, Fiódor Dostoiévski e Miguel de Cervantes, Girard notou que havia alguns pontos que os conectavam de maneira bastante curiosa. Como autores tão distantes poderiam dialogar sobre um mesmo tema de maneira tão semelhante?
Foi nesse momento que Girard percebeu que aquilo que os unia era uma mesma compreensão da natureza humana. Esses autores perceberam que o ser humano deseja mediante inveja e que, devido a esse desejo, constantemente se envolve em rivalidades, que em sua grande maioria terminam em tragédia.
De maneira simples, Girard compreende que o ser humano não deseja de forma autônoma, ou seja, ele não é livre para desejar aquilo que quer, no momento em que quer e da forma como quer.
René Girard percebeu, através do estudo de autores como Shakespeare, Cervantes e Dostoiévski, que o ser humano é mimético – daí o nome teoria mimética –, pois ele deseja a partir do desejo alheio. O professor João Cezar de Castro Rocha diz que:
O ‘eu’ não deseja a partir de uma subjetividade autocentrada, capaz de impor suas regras. O ‘eu’ deseja a partir de um outro, tomado como modelo para a determinação do objeto de desejo.
João Cezar de Castro Rocha, Culturas Shakespearianas, p. 51.
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Ao perceber o mimetismo intrínseco ao ser humano, René Girard identificou que ele gera o que mais tarde chamou de triangularidade do desejo: certo indivíduo começa a desejar determinado objeto porque notou outra pessoa desejando o mesmo objeto.
O problema é que existe apenas um objeto e temos dois indivíduos desejando-o. Obviamente, mais cedo ou mais tarde, existirá algum tipo de conflito entre esses dois indivíduos para descobrir qual deles irá finalmente possuir o objeto desejado.
A maneira impulsiva de acabar com esse conflito seria eliminando um bode expiatório, sobre o qual se canaliza a violência generalizada. Eliminando o bode expiatório, elimina-se também o conflito, fazendo com que a paz volte a reinar.
Girard afirma que o desejo é imitativo ou ‘mimético’, e não inato: os seres humanos copiam os desejos uns dos outros.
Richard J. Golsan, Mito e Teoria Mimética, p. 22
Esses são os principais pontos que você precisa conhecer se quiser começar a se aprofundar na obra desse que é tido por muitos como o Darwin das ciências humanas.
Neste texto, abordaremos um pouco mais esses pontos e, por fim, indicaremos uma bibliografia básica para você que deseja – por influência de outra pessoa, obviamente – aprofundar-se no pensamento girardiano.
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Teoria mimética – O que é o desejo mimético?
A teoria do desejo mimético, embora tenha sido sistematizada por René Girard, aponta a algo intrínseco ao gênero humano e, por isso, não foi uma “invenção” de Girard, como muitos poderiam inferir.
O termo mimesis foi utilizado por diversos pensadores durante a história, tais como Aristóteles, Platão, Erich Auerbach, Paul Ricouer, Jacques Derrida, Sigmund Freud e até mesmo o conhecido biólogo Richard Dawkins, que cunhou o termo meme.
Embora todos eles tenham usado a mimesis de forma semelhante – com o sentido de cópia ou imitação –, com René Girard esse termo recebeu uma aplicação de alcance mais abrangente.
Como já vimos no início deste texto, Girard compreende o ser humano como mimético porque ele não possui a autonomia de desejar livremente, mas apenas se mediado por um outro indivíduo.
Neste ponto, como sabiamente percebeu o teólogo James Alison em O Pecado Original à Luz da Ressurreição, Girard dá as mãos para o grande Pai e Doutor da Igreja Santo Agostinho.
Os dois pensadores entendem que a natureza humana carrega o fardo da vontade cativa, porém, enquanto Santo Agostinho identifica esse cativeiro com o pecado, conforme compreendido pela Tradição Cristã, Girard vai além e entende que é esse pecado o que gera o mimetismo.
A vontade de ser alguém que não você mesmo é a característica principal desse mimetismo, que por sua vez é fruto do pecado, assim como compreendido por Santo Agostinho.
Cássio: Bondoso Bruto, / Podeis acaso ver vosso conspecto?
Bruto: Cássio, o olho a si mesmo não se enxerga, / senão pelo reflexo em outra coisa.
William Shakespeare, Júlio César.
O mimetismo, identificado por Girard na Teoria Mimética primeiramente na alta literatura, com o tempo foi identificado também nas antigas mitologias. Em outro de seus livros, A Violência e o Sagrado, Girard viu que esse mimetismo aparecia também nas grandes religiões da antiguidade, como nas tradições veda, grega, judaica e cristã.
Os deuses arcaicos não são o verdadeiro Deus, evidentemente, tampouco são invenções gratuitas, mas interpretações inexatas, embora necessárias, de violências sociais, entendimentos sem os quais, para mim, jamais teria existido a humanidade.
René Girard, Deus: uma invenção?, p. 65.
Logo que a teoria mimética foi tomando corpo mais sólido, Girard foi se deparando com alguns problemas que, mais cedo ou mais tarde, deveriam ser encarados.
Se o ser humano é mimético e, por esse motivo, envolve-se constantemente em conflitos devido a esse mimetismo, como ele não se extinguiu? Foi diante deste problema que René Girard concebeu a teoria do bode expiatório.
O que é o Bode Expiatório na Teoria Mimética?
Em debate com o teólogo André Gounelle e o pastor Alain Houziaux sobre se Deus é ou não uma invenção, René Girard nos presentou com um de seus textos mais difundidos, chamado O Bode Expiatório e Deus.
Ali se mostra que os Evangelhos expõem todo esse problema por ele identificado com a teoria mimética. Contudo, eles não param simplesmente na exposição do problema, eles caminham também para a exposição de uma solução.
O sistema do bode expiatório identificado por Girard permeia toda a mitologia e as antigas religiões.
A ideia do bode expiatório, segundo René Girard, aparece da seguinte forma: um problema aparece em determinada comunidade, muitas vezes por um motivo banal, e esse problema acaba gerando conflitos, como é possível perceber no mito de Eros e Psique ou até mesmo com o mito de Édipo, bastante utilizado por René Girard.
Como então acabar com esses conflitos? Ora, a solução óbvia é solucionando o problema inicial, certo? Contudo, como solucionar esse problema? O sistema utilizado pelas antigas sociedades era o do bode expiatório, em que se sacrificava uma vítima compreendida por todos como culpada, trazendo assim a paz novamente.
Esse problema inicial é chamado por Girard de Crise Mimética, durante a qual a rivalidade se alastra entre os indivíduos, o que acaba gerando uma onda intensa de violência.
Quando dois indivíduos desejam a mesma coisa, virá juntar-se a isso um terceiro; quando há três, logo chegará um quarto, e a partir desse momento, já se pode prever, as sociedades primitivas tendem todas a se mobilizar em lutas insanas. Passam então a ser ameaçadas pela destruição total.
René Girard, Deus: uma invenção?, p. 69.
Quando Girard percebeu esse mecanismo do bode expiatório, percebeu também que ele aparecia nos evangelhos de forma um pouco diferente. Embora nos antigos mitos a vítima fosse sempre tida como culpada por todos, Girard compreende que ela era, na realidade, inocente.
Diante disso, René Girard mostra que nos evangelhos a vítima sacrificial é nitidamente inocente e todos sabem disso: desde aqueles que a estão acusando até o leitor e os próprios narradores.
René Girard nota que foi em Cristo que o mecanismo do bode expiatório alcançou seu ápice e foi desmascarado. É nos evangelhos que esse problema é descoberto e colocado de forma tão explícita que, como bem identifica Girard, chega a ser desconcertante.
Diferentemente dos outros mitos existentes, Cristo entrega-se conscientemente como bode expiatório, para nos mostrar que somos todos, naturalmente, propagadores da violência mimética.
Tendo isso em mente, Girard percebe em Cristo um exemplo a se seguir para cessar essa corrente de violência mimética. Contudo, nós nunca conseguimos acabar completamente com o mimetismo, ainda que estejamos conscientes dele – diferentemente de Cristo, que do começo ao fim negou a rivalidade intrínseca ao ser humano.
Por esse motivo, Girard reconhece o valor da narrativa cristã, segundo a qual Deus interferiu pessoalmente na história da humanidade pela figura de Jesus Cristo.
Graças à Paixão, Cristo quer que os homens reconheçam o seu papel de criadores de vítimas, de perseguidores. É por proclamar as regras do Reino e renunciar totalmente à violência sacrificial que o próprio Cristo é sacrificado. O que é preciso compreender, então, é essa inversão absoluta do sacrifício que faz de Cristo uma pessoa absolutamente única. Aliás, a Paixão está cheia de fórmulas que nos dizem exatamente o seguinte: ‘A pedra desprezada pelos construtores tornou-se a pedra angular’.
René Girard, Deus: uma invenção?, p. 73.
Desejo triangular
No livro Mito e Teoria Mimética, Richard J. Golsan, ao falar da dinâmica de desejo de dois indivíduos pelo mesmo objeto, mostra que:
se desejo um objeto em particular, não o cobiço por aquilo que é, e sim porque imito o desejo de alguém que optei por tomar como modelo. Essa pessoa – seja real ou imaginária, lendária ou histórica – se converte em mediador de meu desejo, e então me envolvo numa relação essencialmente triangular.
Richard J. Golsan, Mito e Teoria Mimética, p. 26.
Essa triangularidade é posta por René Girard no centro de sua teoria. Um indivíduo não desejará de forma autônoma, mas mediado pelo desejo de um Outro, que, por sua vez, também deseja a partir de outro mediador.
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Girard, em seu livro Mentira Romântica e Verdade Romanesca, chama essa dinâmica de triângulo do desejo, que por sua vez é dividido em mediação interna e mediação externa.
A mediação interna é aquela que gera uma rivalidade mimética e eventualmente um confronto entre o sujeito e o mediador; a mediação externa é aquela que contém uma distância entre eles, seja uma distância geográfica ou até mesmo intelectual, e por isso não gera nenhuma rivalidade entre os dois indivíduos.
A mediação externa tem mais a ver com alguma espécie de devoção a uma figura idealizada, já a mediação interna tem maior ligação com a disputa por algo ou alguém.
Mediação externa
A fim de ilustrar essas duas formas de mediação, Girard se utiliza de algumas personagens consagradas da alta literatura. Um exemplo de mediação externa exposto por Girard em Mentira Romântica e Verdade Romanesca é a relação de Sancho Pança e Dom Quixote.
Sancho tem Quixote como o exemplo a ser seguido quase de forma religiosa, o que o faz almejar o que aparentemente Quixote também almeja. Contudo, existe uma distância intelectual e até mesmo social entre eles, que não provê um solo para a existência de uma rivalidade mimética.
Dom Quixote e Sancho estão sempre fisicamente próximos um do outro, mas a distância social e intelectual que os separa permanece intransponível. Nunca o criado deseja o que deseja o amo. Sancho cobiça os víveres abandonados pelos monges, a bolsa de ouro encontrada no caminho e outros objetos mais que Dom Quixote lhe cede sem qualquer pesar. Quanto à ilha fabulosa, é do próprio Dom Quixote que Sancho calcula recebê-la, na qualidade de fiel vassalo que tudo possui em nome de seu senhor. A mediação de Sancho é assim uma mediação externa. Nenhuma rivalidade com o mediador é viável. A harmonia nunca fica seriamente afetada entre os dois companheiros.
René Girard, Mentira Romântica e Verdade Romanesca, p. 33.
Você pode conferir, clicando no próximo link, o próprio René Girard falando sobre Dom Quixote!
A mediação externa do desejo triangular é o que poderíamos chamar de devoção. O sentimento que Sancho Pança nutre por Dom Quixote e o que este nutre por Amadis é o mesmo: ambos têm o mediador como um exemplo a ser seguido, como um ideal de perfeição, não como um obstáculo.
Mediação interna
A mediação interna é a responsável pelo surgimento dos conflitos. Enquanto o objeto a ser alcançado na mediação externa é um ideal, na interna ele pode ser desde um objeto físico até uma pessoa.
Na mediação interna, nós nos deparamos com duas pessoas desejando a mesma coisa e, necessariamente, uma das duas ficará com o objeto ou nenhuma das duas. Golsan diz que a mediação interna:
(…) envolve um modelo ou mediador que não foi separado do sujeito pelo tempo, pelo espaço ou por outros fatores, tornando-se rival e obstáculo na busca do objeto por parte do sujeito.
Richard J. Golsan, Mito e Teoria Mimética, p. 26.
Enquanto na mediação externa o mediador é tido como um exemplo romantizado de um ideal a ser alcançado, na mediação interna o mediador, devido a sua proximidade, torna-se um rival.
Um bom exemplo para ilustrar a mediação interna, utilizado pelo próprio René Girard em A Violência e o Sagrado, é o conhecido complexo de Édipo, estruturado por Freud, criticado e reestruturado por Girard.
Enquanto para Freud a criança desenvolve um desejo de forma autônoma pela mãe, tendo então o pai como uma espécie de “inimigo”, para Girard é justamente o inverso. René Girard mostra que esse desejo não é autônomo, mas copiado mimeticamente do pai.
Dessa forma, o conflito mimético da mediação interna está estabelecido: um sujeito que copia o desejo de outro, por um objeto que apenas um dos dois poderá obter.
Neste texto, passamos por alguns do principais pontos da Teoria Mimética e seus conceitos fundamentais. Como já era de se esperar, não há possibilidade de esgotar tudo o que se tem para falar sobre a Teoria Mimética de René Girard em em um simples artigo.
Aqui foram apresentados apenas alguns pontos da Teoria Mimética, como a triangularidade do desejo, a teoria do bode expiatório e a definição girardiana de mimetismo.
Se você se interessou por tudo o que falamos até aqui e quer se aprofundar mais no pensamento desse fantástico autor, daremos algumas dicas sobre por onde começar as suas leituras e pesquisas.
Livros mais importantes sobre a Teoria Mimética
– Evolução e Conversão
– Dostoiévski: do Duplo à Unidade
– Mito e Teoria mimética
– Teoria Mimética: Conceitos Fundamentais
– Deus: uma invenção?
– René Girard: retrato intelectual
– Édipo Mimético
– Mentira Romântica e Verdade Romanesca
– Shakespeare: teatro da inveja