quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Desafios e possibilidades para inovar em reportagem multimídia

Inovação em Jornalismo

Projetos desenvolvidos na disciplina “Inovação, Tecnologia e Sociedade” do Mestrado Profissional em Produção Jornalística da ESPM-SP

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Muito além do texto, o ambiente digital oferece ao trabalho jornalístico a oportunidade de apresentar conteúdos mais ricos e complexos, em que fotografias, vídeos, áudios, animações, infográficos, games, entre outros, surgem para contextualizar, elucidar e ampliar o conhecimento sobre os temas escolhidos

Fabio Saraiva

Se no início era o verbo, ou melhor, o texto, os avanços tecnológicos mais recentes têm permitido que palavras numa reportagem digital ganhem cada vez mais a companhia de imagens (na forma de fotos e vídeos), áudios, animações, infografia, mapas ou games. Tais combinações propiciam um terreno produtivo para narrativas inovadoras. Uma das missões aqui é oferecer conteúdo de qualidade e que se apresente relevante a um público que talvez seja até mais exigente em comparação ao passado, uma vez que está inserido num cenário de super oferta de informação e formatos. Se esta maior exigência pode ser questionada, a concorrência pela atenção da audiência com certeza nunca foi tão grande.

Assim, as múltiplas oportunidades atuais representam ao mesmo tempo um desafio, já que o jornalista precisa cada vez mais ter noções de novas técnicas que vão muito além do apurar e escrever, mas também proporcionam um campo para projetos jornalísticos inovadores, a exemplo de reportagens multimídias realizadas nos anos mais recentes por veículos como Folha de S. Paulo, na série Tudo Sobre, pelo Estado de S. Paulo, em seus projetos especiais, ou no produto semanal UOL TAB, do portal UOL.

Tela inicial da reportagem multimídia "A Batalha de Belo Monte", da Folha de S. Paulo | Reprodução/FSP

Há um consenso entre estudiosos que o ponto de partida para esta nova fase no jornalismo digital ocorreu em 2012 com o lançamento da célebre reportagem Snow Fall — The Avalanche at Tunnel Creek pelo jornal norte-americano New York Times, influenciando tudo o que viria a seguir. Inovadora, Snow Fall é uma reportagem multimídia sobre uma avalanche no Estado de Washington em dezembro de 2012. Premiada com o Peabody Awards 2013 e o Pulitzer 2013, Snow Fall é, segundo Bertocchi (2013), um exemplo espetacular de formato narrativo no jornalismo. Com seis partes narrativas, a reportagem também traz gráficos e mapas interativos, vídeos, entrevistas, biografias e textos contendo em torno de 18 mil palavras.

Tela inicial de Snow Fall — The Avalanche at Tunnel Creek, célebre reportagem multimídia do jornal New York Times | Reprodução/NYT

Já em sua abertura, a reportagem apresenta um vídeo com vento soprando sobre uma montanha coberta de neve o que transmite ao leitor a sensação de uma foto em movimento. Bertocchi destaca em Snow Fall o chamado efeito de “rolagem paralaxe” (parallax scrolling), um modo de rolamento especial feito a partir de camadas visuais e de informações que criam no leitor a impressão de profundidade e imersão na tela. Sucesso de crítica, a reportagem também se destacou entre o público. “Snow Fall teve 2,9 milhões de visitas e 3,5 milhões de page views nos primeiros seis dias de publicação” (AMADO, 2013, apud LONGHI; WINQUES, 2015, p. 8).

Ito e Ventura (2016a) consideram que a grande surpresa em torno de Snow Fall talvez esteja mais no sucesso com o número de acessos conquistado do que no formato em si, porque, na visão dos dois pesquisadores, se não houvesse o boom de visitas ao site, muito provavelmente a questão da originalidade do modelo de reportagem que ele representa estaria atualmente restrito às experimentações.

Mapa interativo que integra a reportagem “Snow Fall” | Reprodução/NYT

Para alguns autores, como Malik (2013 apud LONGHI, 2014, p. 915), "projetos de peso como Snow Fall também representam oportunidades para organizações tradicionais como o New York Times se destacarem numa época de acirramento na disputa pela atenção do público leitor com concorrentes novos, como Buzzfeed e o Huffington Post, ou até mesmo com as redes sociais, como foi sinalizado no dossiê Innovation, do próprio Times".

Vídeo do New York Times sobre "Snow Fall" | Reprodução/Youtube

Depois de Snow Fall

Com a publicação de Snow Fall e seus resultados positivos, multiplicaram-se os produtos jornalísticos que investiram no formato a fim de proporcionar aos leitores experiências narrativas mais intensas. Entre as publicações que adotaram tal caminho, estão a National Geographic, o portal ESPN, e o jornal The Chicago Tribune. No Brasil, Bertocchi aponta uma das primeiras reportagens com o efeito paralaxe no portal UOL, a produção Baú do Rock, em 2013, sobre as edições do Rock’n’Rio. A partir deste início, a evolução do uso no jornalismo brasileiro também se mostrou evidente.

Formatos noticiosos hipermidiáticos vêm se destacando no ambiente online, com estratégias de navegação e interatividade evoluindo ano após ano. As crescentes possibilidades tecnológicas e o desenvolvimento dos produtos webjornalísticos têm permitido que a grande reportagem que os leitores estavam acostumados a encontrar no jornal impresso também marque presença no ambiente digital. (WINQUES, 2015, p. 2)

Com tais avanços, a grande reportagem multimídia tornou-se o lugar “onde o jornalismo online mais tem explorado as possibilidades de convergência de linguagens do meio digital”, estando marcada ainda, no cenário atual, pelo texto longform e as narrativas imersivas (LONGHI, 2014, p. 900). A estabilização da linguagem de programação HTML5 para a produção de textos longos e mais imersivos permitiu esta evolução, segundo a autora, o que não era possível antes, com o Flash. A maior contribuição do HTML5 para o jornalismo digital, porém, teria sido a padronização, aponta Longhi.

O design responsivo também se configura no grande definidor do momento de virada e de adaptação da grande reportagem ao meio. Essa característica diz respeito aos sites que se adaptam ao suporte que o usuário está usando, ou seja o design e as informações se adaptam ao celular, tablet, televisão ou computador. (LONGHI; WINQUES, 2015, p. 9)

Tais avanços tecnológicos têm permitido que projetos cheguem aos leitores em todos os lugares, uma vez que não se trata mais, como no passado, do consumo de um conteúdo feito exclusivamente diante de uma tela fixa de computador. Tudo agora está ao alcance da mão, dentro do bolso. "O design responsivo é essencial para conteúdos pensados para o acesso via dispositivos móveis, como é o caso do TAB" (ITO; VENTURA, 2016b, p. 130).

Investir é preciso

Vale observar, no entanto, que a produção de reportagens multimídia requer um considerável investimento das empresas jornalísticas, fator que nunca deve ser menosprezado, sobretudo em tempos de crise nos modelos de negócios com quedas consideráveis nas receitas. Numa época em que os cortes de pessoal são sucessivos e expressivos sob a justificativa de equilibrar as contas, o mantra “fazer mais com menos” parece se chocar com o desejo de produzir grandes reportagens multimídia.

Avaliemos um exemplo: a primeira grande reportagem multimídia produzida pela Folha na série Tudo Sobre consiste em um especial sobre a usina de Belo Monte, intitulado A Batalha de Belo Monte, de 2013. Para chegar aos leitores, foram 10 meses de trabalho, com a veiculação de dossiês digitais precedendo a reportagem. Ao todo, ela tem cinco capítulos, 55 fotografias, 24 vídeos, 18 infográficos, cerca de 15 mil palavras e um game sobre a hidrelétrica brasileira, a terceira maior do mundo. O trabalho envolveu uma equipe de 19 pessoas, em diferentes fases da produção, e ganhou em 2014 a medalha de prata no Malofiej, uma das mais importantes distinções de infografia e design mundiais (LONGHI; WINQUES, 2015, p. 10).

Vídeo da reportagem multimídia "A Batalha de Belo Monte", da Folha de S. Paulo | Reprodução/Youtube

Outro produto jornalístico digital fruto de investimento e que tem se destacado é a série UOL TAB, que desde 2014 traz uma nova reportagem multimídia às segundas-feiras no portal UOL. O TAB, cuja equipe é formada por 12 profissionais, conta com grandes reportagens disponibilizadas na página, cujos temas variam entre cotidiano, tendências, curiosidades e temas atuais. A diferença entre UOL TAB e Tudo Sobre é que as reportagens do TAB não estão divididas em capítulos; os leitores seguem a leitura apenas pelo rolar do scrolling. O diretor de conteúdo do UOL, Rodrigo Flores afirma que "150 mil visitantes únicos clicam nas homes web e mobile das grandes reportagens TAB por edição" (FLORES, 2014, apud LONGHI; WINQUES, 2015, p. 11). Ainda segundo Flores, o “TAB é a resposta do UOL para a necessidade do nosso público de consumir conteúdo de qualidade em formatos criativos, interessantes e interativos” (FLORES, 2014 apud ITO; VENTURA, 2016b, p. 124).

A redação do TAB, em especial, surgiu após a análise de uma empresa de consultoria de inovação que indicou um protótipo do produto e a necessidade de se formar uma equipe que só trabalhasse com as reportagens. Portanto, os profissionais que trabalham para o TAB não executam outras pautas do UOL. Em março de 2016, a equipe do TAB era composta por jornalistas, editores, designers/UX, videografistas e programadores. (ITO; VENTURA, 2016a, p. 152)

Tela de reportagem do UOL TAB | Reprodução/UOL

Ao pesquisar as redações do UOL e do Estado de S.Paulo, Ito e Ventura (2016b) também destacam a flexibilidade no deadline para a finalização de reportagens. No TAB o tempo de produção pode variar entre três semanas a mais de um mês, dependendo da complexidade do tema abordado. Já no Estadão, projetos especiais, como reportagens multimídia interativas ou infográficos, podem levar, da apuração dos dados até a entrega, de três a cinco meses.

Vídeo que integra reportagem do UOL TAB | Reprodução/Youtube

Jornalistas multitarefa

Mas e quanto aos profissionais da área, o que é preciso para se inserir nesta nova realidade? Se no passado, numa redação de jornal, saber escrever e apurar bem eram imperativos, no cenário atual tais habilidades não perderam importância, mas há novas exigências que também são bem-vindas.

Tanto no UOL quanto no Estadão foi identificada a existência de pessoas — jornalistas ou não — multiespecializadas, que se destacam dos demais por acumularem conhecimentos e competências não apenas do campo jornalístico, como também de outras áreas, como a estatística ou a linguagem de programação. (ITO; VENTURA, 2016a, p. 153)

García Avilés e Carvajal (2008 apud ITO; VENTURA, 2016a, p. 155) apontam que "uma redação com jornalistas de múltiplas habilidades oferece flexibilidade aos gestores no planejamento diário da produção noticiosa e torna possível realocar cada profissional em diferentes plataformas de mídia, quando necessário". Para fazer produtos jornalísticos diferenciados, como os do TAB e no Estadão, a presença de profissionais polivalentes, jornalistas ou não, parece, segundo os autores, se configurar também como uma vantagem importante para o aprofundamento do conteúdo e a sofisticação em sua apresentação.

"Na atualidade, a aposta em conteúdo jornalístico relevante, como a reportagem multimídia interativa, vem tornando-se um diferencial de empresas jornalísticas de maior porte, algo que vai ao encontro do que defende Canavilhas (2014 apud ITO; VENTURA, 2016, p. 155). Para os autores, o investimento em formatos especiais se relaciona à manutenção de duas questões-chave para a sobrevivência dos veículos de mídia estudados: a credibilidade e a monetização.

Enquanto no TAB a quantidade de acessos é bastante significativa, nos projetos especiais do Estadão, apesar do volume menor, ainda assim há interesse de patrocinadores em apresentar esse tipo de conteúdo. O patrocínio, por sua vez, ocorre porque há um reconhecimento das marcas sobre os índices de audiência web descritos no TAB e no Estadão, segundo Ito e Ventura.

Portanto, é possível concluir que os avanços tecnológicos recentes alteraram de muitas formas e consideravelmente a estrutura do trabalho jornalístico. Por um lado, eles propiciam a criação de reportagens cada vez mais complexas e inovadoras, que têm encontrado público consumidor e, consequentemente, potencial para monetização. Ao mesmo tempo, isso também requer que sejam feitos investimentos pelas empresas jornalísticas para a formação de equipes multidisciplinares e, para quem trabalha na área, exige que novos conhecimentos e capacidades sejam incorporados à prática profissional. Um cenário cada mais rico, multifacetado e desafiador inserido num mundo que parece girar em velocidade crescente.

Referências

BERTOCCHI, Daniela. Dos Dados aos Formatos: o sistema narrativo no jornalismo digitalCompós, XXIII Encontro Anual da Compós, Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Belém/PA, 28 e 29 maio 2014.

ITO, Liliane de Lucena. VENTURA, Mauro de Souza. A Reportagem Multimídia Interativa: inovação, produção e monetização. Brazilian Journalism Research, v. 12, n. 3, 2016a.

ITO, Liliane de Lucena. VENTURA, Mauro de Souza. Inovação no jornalismo brasileiro: o caso das reportagens multimídia Tab, do UOLComunicação & Inovação, PPGCOM/USCS. v. 17, n. 35. 2016b.

LONGHI, Raquel Ritter. O turning point da grande reportagem multimídiaRevista FAMECOS. Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 897–917, set.-dez. 2014.

LONGHI, Raquel; WINQUES, Kérley. O lugar do longform no jornalismo online. Qualidade versus quantidade e algumas considerações sobre o consumo24º Encontro Nacional da Compós, Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, Universidade de Brasília. 2015.

WINQUES, Kérley. Apuração e inovação: uma análise da série UOL Tab, do portal UOL6º Simpósio Internacional de Ciberjornalismo, UFMS, Campo Grande, 2015.

Fabio Saraiva é jornalista com mais de 15 anos de vivência em redações, com passagens pelo Diário de S. Paulo (Infoglobo), Agora (Folha de S. Paulo) e Metro (Rede Bandeirantes), onde cobriu de chacinas a celebridades, de cultura a saúde e sexualidade. É pós-graduado em Jornalismo Digital pela ESPM e foi aluno ouvinte do Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da ESPM, na linha de pesquisa “Lógicas e Modelos de Gestão em Jornalismo”, no segundo semestre de 2018.




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